Translate
Seguidores
quarta-feira, 23 de maio de 2012
1964: Golpe Militar a serviço do Golpe de Classe
maio 23, 2012
|
por
Vinícius...
|
* Por Leonardo Boff
"Para que a missão da Comissão da Verdade seja completa e satisfatória, caberia a ela fazer um juízo ético-político sobre todo o período do regime militar"
O objeto da Comissão da Verdade deve, sim, tratar dos crimes e dos desaparecimentos perpetrados pelos agentes do Estado ditatorial. É sua tarefa precípua e estatutária. Mas não pode se reduzir a estes fatos. Há o risco de os juízos serem pontuais. Precisa-se analisar o contexto maior que permite entender a lógica da violência estatal e que explica a sistemática produção de vítimas. Mais ainda, deixar claro o trauma nacional que significou viver sob suspeitas, denúncias, espionagem e medo paralisador.
Neste sentido, vítimas não foram apenas os que sentiram em seus corpos e nas suas mentes a truculência dos agentes do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação brasileira. Para que a missão da Comissão da Verdade seja completa e satisfatória, caberia a ela fazer um juízo ético-político sobre todo o período do regime militar.
Importa assinalar claramente que o assalto ao poder foi um crime contra a constituição. Configurou uma ocupação violenta de todos os aparelhos de Estado para, a partir deles, montar uma ordem regida por atos institucionais, pela repressão e pelo estado de terror.
Bastava a suspeita de alguém ser subversivo para ser tratado como tal. Mesmo detidos e sequestrados por engano como inocentes camponeses, para logo serem seviciados e torturados. Muitos não resistiram e sua morte equivale a um assassinato. Não devemos deixar passar ao largo os esquecidos dos esquecidos que foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre 1964 e 1979.
O que os militares cometeram foi um crime lesa-pátria. Alegam que se tratava de uma guerra civil, um lado querendo impor o comunismo e o outro defendendo a ordem democrática. Esta alegação não se sustenta. O comunismo nunca representou entre nós uma ameaça real. Na histeria do tempo da guerra-fria, todos os que queriam reformas na perspectiva dos historicamente condenados e ofendidos – as grandes maiorias operárias e camponesas– eram logo acusados de comunistas e de marxistas, mesmo que fossem bispos como o insuspeito Dom Helder Câmara. Contra eles não cabia apenas a vigilância, mas para muitos a perseguição, a prisão, o interrogatório aviltante, o pau-de-arara feroz, os afogamentos desesperadores. Os alegados "suicídios” camuflavam apenas o puro e simples assassinato. Em nome do combate ao perigo comunista, assumiu-se a prática comunista-estalinista da brutalização dos detidos. Em alguns casos se incorporou o método nazista de incinerar cadáveres, como admitiu o ex-agente do Dops de São Paulo, Cláudio Guerra.
O grande perigo para o Brasil sempre foi o capitalismo selvagem. Usando palavras de Capistrano de Abreu, nosso historiador mulato, "capou e recapou, sangrou e ressangrou” as grandes maiorias de nosso povo.
O Estado ditatorial militar, por mais obras que tenha realizado, fez regredir política e culturalmente o Brasil. Expulsou ou obrigou ao exílio nossas inteligências e nossos artistas mais brilhantes. Afogou lideranças políticas e ensejou o surgimento de súcubos que, oportunistas e destituídos de ética e de brasilidade, se venderam ao poder ditatorial em trocas benesses que vão de estações de rádio a canais de televisão.
Os que deram o golpe de Estado devem ser responsabilizados moralmente por esse crime coletivo contra o povo brasileiro.
Os militares já fora do poder garantiram sua impunidade e intangibilidade graças à forjada anistia geral e irrestrita para ambos os lados. Em nome deste status, resistem e fazem ameaças, como se tivessem algum poder de intervenção que, na verdade, é inexistente e vazio. A melhor resposta é o silêncio e o desdém nacional para a vergonha internacional deles.
Os militares que deram o golpe imaginam que foram eles os principais protagonistas desta façanha nada gloriosa. Na sua indigência analítica, mal suspeitam que foram, de fato, usados por forças muito maiores que as deles.
René Armand Dreifuss escreveu em 1980 sua tese de doutorado na Universidade de Glasgow com o título "1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe" (Vozes 1981). Trata-se de um livro com 814 páginas das quais 326 de documentos originais. Por estes documentos fica demonstrado: o que houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da força militar.
A partir dos anos 60 do século passado, se formou o complexo IPES/IBAD/GLC. Explico: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC). Compunham uma rede nacional que disseminava ideias golpistas, composta por grandes empresários multinacionais, nacionais, alguns generais, banqueiros, órgãos de imprensa, jornalistas, intelectuais, a maioria listados no livro de Dreifuss. O que os unificava, diz o autor, "eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado” (p.163) para que fosse funcional a seus interesses corporativos. O inspirador deste grupo era o General Golbery de Couto e Silva, que já em "1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao poder” (p.186).
A conspiração, pois, estava em marcha há bastante tempo. Aproveitando-se da confusão política criada ao redor do presidente João Goulart, tido como o portador do projeto comunista, este grupo viu a ocasião apropriada para realizar seu projeto. Chamou os militares para darem o golpe e tomarem de assalto o Estado. Foi, portanto, um golpe da classe dominante, nacional e multinacional, usando o poder militar.
Conclui Dreifuss: "O ocorrido em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um movimento civil-militar; o complexo IPES/IBAD e oficiais da ESG (Escola Superior de Guerra) organizaram a tomada do poder do aparelho de Estado” (p. 397). Especificamente, afirma: "A história do bloco de poder multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964, quando os novos interesses realmente tornaram-se Estado, readequando o regime e o sistema político e reformulando a economia a serviço de seus objetivos” (p.489). Todo o aparato de controle e repressão era acionado em nome da Segurança Nacional que, na verdade, significava a Segurança do Capital.
Os militares inteligentes e nacionalistas de hoje deveriam dar-se conta de como foram usados por aquelas elites oligárquicas que não buscavam realizar os interesses gerais do Brasil; mas, sim, alimentar sua voracidade particular de acumulação, sob a proteção do regime autoritário dos militares.
A Comissão da Verdade prestaria esclarecedor serviço ao país se trouxesse à luz esta trama. Ela simplesmente cumpriria sua missão de ser Comissão da Verdade. Não apenas da verdade de fatos individualizados; mas, da verdade do fato maior da dominação de uma classe poderosa, nacional, associada à multinacional, para, sob a égide do poder discricionário dos militares, tranquilamente, realizar seus propósitos corporativos de acumulação. Isso nos custou 21 anos de privação da liberdade, muitos mortos e desaparecidos e de muito padecimento coletivo.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra e escritor.
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Buscar neste blog
+Lidas na Semana
por autor(a)
Arquivo
-
▼
2012
(295)
-
▼
maio
(137)
- Para Paulo Paim, a discriminação racial no Brasil ...
- APNs se destacam em sessão afro na Câmara de Maceió
- Waldenor discute seca no Brasil em Debate
- PGE SE PRONUNCIA SOBRE DECISÃO DO TJ ACERCA DA GRE...
- EXCLUSIVO: Justiça manda Wagner devolver salários
- Precisamos ler Sun Tzu
- TRÁFICO E SOCIEDADE
- Ocupa Banco do Brasil - MPA (Movimento dos Pequeno...
- UM ENCONTRO COM O HELINHOCENTRISMO
- Xote da melhor qualidade com a banda: FORRÓ NA HORA
- O valor de um sonho
- Quem é Karl Heinrich Marx?
- Pablo Neruda assassinado? O que sabemos talvez sej...
- Keynes, keynesianos, mainstrean
- Marx: A História acontece de duas formas: a primei...
- Crise de 1929 - A grande Depressão
- Carta a Mirella ou – faça como Severino de Aracaju...
- Salvador: PCdoB se antecipa ao PT e anuncia data d...
- Eu quero ver quando Zumbi chegar! [ATUALIZADO]
- Waldenor assume Presidência da Comissão da Lei de ...
- A SEDE DO CAPITALISMO...
- Jornada Nacional de Lutas Camponesa do MPA
- A Crise sem fim
- Ecologia de Marx e da compreensão das mudanças na ...
- FENOMENOLOGIA EM COMUNICAÇÃO COM O AMOR
- América Latina: 100 anos de opressão e utopia revo...
- Ariano Suassuna recebe apoio do Senado para indica...
- Marcão: “Não se decide a política em Conquista sem...
- Tempos e ritmos de ver: cegueira e visibilidade no...
- BLOG DO NAPOLEÃO: INFORMAÇÃO COM RESPONSABILIDADE
- Dilma veta partes do Código Florestal que favoreci...
- Professores em greve literalmente dão sangue pela ...
- FRENTE NACIONAL CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE
- Keen versus Krugman: capitalismo, instabilidade e ...
- CinePet apresenta: "O sorrizo de Monalisa"
- A maconha, a política e a saúde – Parte I
- O que é o Decrescimento?
- Ensaios de Economia
- AS CRISES ECONÔMICAS
- Agronegócio, agrotóxico e “agrocâncer”
- 1964: Golpe Militar a serviço do Golpe de Classe
- A raiz nordestina no Hip Hop
- O fracasso da Oposição Conquistense
- O PAPA E A UTILIDADE DO MARXISMO
- Nome, definição e objeto da Economia
- Carta Compromisso
- Carta a Juventude
- As eleições municipais e o desenvolvimento de Vitó...
- Ousar escrever...
- Secretário considera racista publicidade do Govern...
- Vitória da Conquista terra de gente forte.
- Conheça a lista de prováveis candidatos do PT à Câ...
- ANDRÉIA OLIVEIRA: “Estamos construindo um sonho de...
- Assista: Parada do Orgulho LGBT
- O QUE É CHURRECO?
- 25 de Maio: Dia da África
- ABBA vende mais de 5 milhões de cópias de álbum 'G...
- Menino que ficou 'negro' é suspenso de escola
- AS ELEIÇÕES COMO ESPAÇO PARA O DIÁLOGO ABERTO COM ...
- Louis Althusser ( 1918-1990)
- Brumado: professores estaduais fazem manifestação
- Joel e Ataíde fora da disputa
- Vereadores afirmam: não sabiam da audiência
- José Murilo de Carvalho: “Dilma precisa injetar re...
- “Os lírios não nascem da lei”
- PABLO MILANÉS: UM MITO DA MÚSICA CUBANA
- AINDA HÁ ESPERANÇA
- Marcio Pochmann: ‘Ascensão da classe trabalhadora ...
- Que brilho é esse Negro? É o brilho da Paz! É o br...
- CARTA DO RIO DE JANEIRO Desenvolvimento Sustentáve...
- As deserções acabam por nos condenar a um quase et...
- Vitória da Conquista deve ter São João reduzido
- Fabrício: “Eu apoiando, ele ganha no primeiro turno”
- III Parada do Orgulho de Ser LGBT tem programação ...
- Professores atacam Wagner e decidem pela manutençã...
- A mídia, as cotas e o sempre bom e necessário exer...
- "A Pastoral Afro-americana e o Documento de Aparec...
- Simposio Educacao na Perspectiva da Inclusao e da ...
- "A Pastoral Afro-americana e o Documento de Aparec...
- SEBRAE/Vitória da Conquista-BA.
- Chamado por uma Jornada Internacional de solidarie...
- NOTÍCIAS DO CONSU
- Desenvolvimento Sustentável e Erradicação da Misér...
- Demétrio Magnoli e o haitianismo revisitado: a tát...
- O trabalho e a construção do belo
- Desenvolvimento e Sustentabilidade no Semiárido Br...
- Professores lançam petição pública para pressionar...
- Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo Na Hist...
- Para os Calourinhos
- No livro "A Alma do Animal Político”, petista faz ...
- Embasa realiza coletiva para tratar sobre racionam...
- Programa Acolher encerra semana das mães
- Nelson Pelegrino se licencia e Emiliano José reass...
- Lamento dos Afro-descendentes: treze de Maio
- Ruralistas barram punição a escravocratas
- Ângela Guimarães, mulher, negra e nordestina é a n...
- DANE-SE ESSA PRETAIADA
- Desenvolvimento e subdesenvolvimento no mundo pós-...
- MÚSICA BAIANA NOS ANOS 80
- As lutas da Juventude Brasileira
-
▼
maio
(137)
0 comments :
Postar um comentário