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quarta-feira, 30 de maio de 2012

O valor de um sonho



Ocorre que à minha tia, paralelamente às demandas do lar, houve por bem produzir e comercializar, em Vitória da Conquista, geladinho, que, em alguns lugares, chama-se din-din. Ela não era a única que o fazia, claro. Vender picolé e geladinho na minha terra é prática que se vê em todas as ruas, em que pese a fama que a cidade tem de ser fria (refiro-me ao clima). O certo é que ela vendia seu produto e, assim fazendo, angariava algum recurso para bancar, com meu tio, as despesas da casa.

Ela morava na avenida Paramirim, e mainha, volta e meia, nos levava a sua casa, para um passeio. Eu devia ter meus 7, 8 anos nesta ocasião. Márcia, minha irmã, é afilhada desta mesma minha tia e, por isso mesmo, sempre desfrutou de certa predileção, certa preferência por parte da madrinha. Por força disso mesmo, minha tia nomeou-a tesoureira-mor de seus negócios, função que Márcia procurava cumprir com toda firmeza, todo denodo e austeridade.


Um dia em que Márcia fora contabilizar as vendas, eu estava nas adjacências, curiosamente postado próximo ao caixa. A operação não era das mais difíceis. Bastava a Márcia verificar se havia, para a quantidade de produtos vendidos, valor correspondente nos cofres de minha tia. Depois, era só separar as moedas agrupando-as conforme seu valor, contorná-las com uma fita durex e – ato contínuo – prestar contas à minha tia.

Ora, em meio às operações, menos por má fé e mais pelo ânimo de deixar Márcia com uma diferença importante nos registros contábeis (e provocar, com isso, toda uma busca), num momento de distração dela, subtrai uma das moedas do caixa. Era uma dessas moedas grandes de 50 cruzeiros (equivalente, no tamanho, à nossa atual de 1 real). Fiquei com a moeda no bolso por um bom tempo, até que Márcia – feita a contabilidade – deu notoriedade a todos acerca da diferença contábil detectada, alarmando com isso minha tia, que punha naquele negócio todos os seus esforços. 
Sim, naquele negócio estavam depositados mais que seus parcos recursos. Ela via nele um aceno que lhe dava a liberdade financeira em relação a meu tio. Ali estava o portal por onde poderia transportar-se para além do modelo patriarcal ao qual estava submetida. Sim, era pouco. Mas, na voz dela, “pouco com Deus é muito”. Ora, nos dias de hoje, se ela vendesse 20 geladinhos, sendo cada um no valor de 50 centavos, seriam 10 reais por dia, 70 por semana, 200 por mês (talvez mais, considerando que, nos finais de semana, a demanda aumentava substancialmente). Mulher de poucos estudos, ela via na sobrinha e afilhada a figura mais que indicada para a função de tesoureira. Em Márcia estavam depositadas a sua confiança e sua liberdade econômica. Ora, se num sábado ela lucrasse 15 reais, ela poderia, no dia seguinte, na feirinha do bairro Brasil, comprar todas as frutas e verduras necessárias para a semana, sem que, para tanto, tivesse que comunicar ou prestar contas a meu tio que, evidentemente, deveria estar alegre e satisfeito com esse valor agregado ao orçamento familiar. 

O certo é que, os que ali estávamos, tivemos nossa atenção agora voltada para Márcia, em cólicas com a referida diferença. Contou novamente as moedas, ao tempo em que vasculhava toda a casa em busca da moeda perdida. Minha tia que, até ali, ocupava-se com o almoço, interrompera a gastronômica atividade para, em comunhão com sua pupila, localizar a famigerada moeda.

Eu – única pessoa naquela casa que conhecia o paradeiro da moeda infame – inicialmente estava com aquele sentimento vaidoso de quem reconhece em si o motivo de toda uma movimentação, fosse ela qual fosse. Mas isso foi só inicialmente. Agora, com o desespero patente nos olhos de Márcia (que devia ter seus 11, 12 anos), e com a mais que visível frustração de minha tia, que falava ininterruptamente sobre a possibilidade de forças diabólicas estarem conspirando contra seu empreendimento, nascia em mim um desespero diferente do de Márcia, mas igualmente desesperador. 
Feitas todas as buscas pela casa e recontadas as moedas diversas vezes, a equipe de resgate deu por inútil novas buscas. Ocorre que o meu desespero e o de Márcia (motivados por causas bem diferentes mas igualmente desesperadores) se encontraram num olhar que demos um para o outro. Márcia, num átimo, encontrou nos meus olhos uma confissão, uma revelação, uma rendição. Vi seus olhos tirando os meus de seu foco e dirigindo-se para meu short jeans. E pude ler seus pensamentos: “Claudinho pegou a moeda e colocou no bolso”. Não, ela não tinha uma visão infra-vermelha nem mesmo o dom da visão além do alcance, nem mesmo o de profecia. Qualquer um que tivesse olhos para ver e sensibilidade para sentir saberia, sem dúvida alguma, que aquele menino, de seus 8 anos, com seu short Jeans, seu Kichute e seu cabelo cortado a Pelé (lembram do topete?) era o responsável pelo desaparecimento do vil metal.

Prevendo uma revista, pus a moeda sob a língua e me coloquei à disposição das autoridades para, se lhes aprouvesse, quebrar meu sigilo fiscal. 

- Claudinho, deixa eu ver se você colou o dinheiro no bolso!
- Pode ver! 

Ao pronunciar estas duas palavras, a moeda deslocou-se de sob a língua indo parar na garganta. Num espasmo, tentei fazer com que ela retornar-se ao ponto de origem. Mas foi em vão. Num segundo, Márcia e todos os circundantes tiveram conhecimento de que aquele espasmo e aqueles olhos arregalados eram a denúncia clara de que eu – além de gatuno – era um abestalhado. Todos agora acorriam para mim, uns para me salvar (mainha, por exemplo) outros para testemunhar meu papel de besta. A moeda estava entalada em minha garganta e eu agora estava desesperado, desesperadíssimo. 

- Bate nas costas dele! Gritou alguém. 

Petrônio levou muito a sério a recomendação, desferindo-me um murro como nunca dantes. A alegria que vi nos olhos dele me fez crer que ele o fizera menos para ajudar-me a expelir a modela infame e mais para vingar-se do fato de eu ter perdido, no jogo, boa parte de seu patrimônio de gudes. 

- Dá farinha para ele!

Eis-me com a boca cheia de farinha, com lágrimas rolando pela face e uma pequena multidão de curiosos em torno a mim. Ouvi algumas frases soltas em meio ao me pavor: “Tá vendo como Deus castiga?!”. “Menino num é gente, viu!”. “Bem que eu vi ele muito quieto...”. “Deixa essa peste morrer!”.

A moeda estava instalada agora no pescoço e doía. O número de curiosos reduzira e eu – sofrendo como estava – tive que ouvir um prolongado sermão de mainha.
A moeda avançou e alcançou meu peito e, logo depois, o intestino. Eu não sentia mais dor e passei a noite tranqüilo, exceto pelo fato de saber que virara o assunto predileto em todas as rodas familiares e na minha rua, que toda ficara sabendo do ocorrido.
Na manhã seguinte, indo para a escola, pude ler em todos os olhares, em casa e na rua, a acusação associada a pensamentos e comentários jocosos. Não adiantou eu dizer que só queria “brincar com Márcia”. 

Do colégio, voltei para casa, desolado. Flagrei Petrônio comentando aquilo que eu suspeitei desde o início. “Dei um murro fortão nele!”. De fato, foi um murro e tanto. Muito caras aquelas gudes. Só encontrei compaixão em mainha, que me acolheu e me deu forças para continuar lutando.

No segundo dia, eu já não sofria mais com as aporrinhações. A vida ganhou seu curso natural, embora eu soubesse que toda a meninada – antenada – aguardava, ansiosa, o desenrolar dos fatos. E sei que todos os que me lêem sabem o que isso significa.
Chegamos do colégio em torno do meio dia, almoçamos e fomos, eu e Petrônio, jogar bola no campinho (que ficava dentro de uma mata nas proximidades do aeroporto). Por motivos de força maior, pedi a um dos meninos que me substituísse na posição de meio-campo (sempre fui meio-campo), considerando que precisaria ausentar-me momentaneamente para lugar reservado e discreto em meio ao matagal. Petrônio, que jogava no meu time, tendo conhecimento do meu requerimento de temporária substituição, lançou-me um sorrisinho safado. Não gostei da pirraça, mas não tinha condição de demorar-me muito ali, ou seria protagonista de um parto prematuro. 
Cumprida a tarefa, constatei que a moeda infame veio à luz. Tomei providências para afastá-la do ambiente hostil e que se encontrava, envolvi-a num plástico e voltei para o campinho para anunciar que me ausentaria definitivamente do jogo. Ocorre que Petrônio, aquele engraçadinho, no intervalo em que me ausentei, deu conhecimento a todos os meninos, inclusive aos do time adversário, de todos os fatos ocorridos antes deste último ato, que culminaria com minha ausência do jogo. Fui objeto de muita gozação, até que consegui ir para casa, para submeter a moeda infame a um processo mais rigoroso de limpeza.

Agora eu tinha em mãos, limpa, a moeda que me causara tantos transtornos. E me perguntava qual seria o destino da mesma. Devolver aos cofres de minha tia parecia, à luz de minha consciência mais profundamente ética, o caminho legítimo a ser trilhado pela moeda infame (ela que já trilhara tantos caminhos e descaminhos). Por outro lado, justamente pelo muito que sofri, seria justo que eu fizesse dela o que bem entendesse. Um consenso se fez em torno dessa última alternativa. Petrônio, Minéia, Fábio e Maurício foram unânimes: “Gasta, seu besta!”. 

Encorajado por meus irmãos, fui correndo para a venda de Valdemar. Era final de tarde, hora da merenda (mainha instituíra um lanche que ficava em horário eqüidistante ao almoço e o jantar). Com a moeda pude comprar cinco sonhos (sonho é um bolinho em formato de charuto). Voltei para casa, onde mainha já havia feito uma jarra de vitamina de abacate, coadjuvante mais que adequado para a merenda. A gente fez seu lanche e, fazendo um retrospecto dos fatos ocorridos até aquela parte, demos muita, muita risada juntos.

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