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domingo, 31 de março de 2013

COTAS NO CONCURSO PÚBLICO, UM PASSO NECESSÁRIO


 
* Por Flávio Passos

Não é nossa culpa, nascemos com uma benção.
               Mas isso não é desculpa pela má distribuição(...)
 ....cadê  tua fração?!”

                                             (Até quando esperar, Plebe Rude, 1984)

 

“Ao não proporcionar bases efetivas à sua reprodução física e cultural, o Estado relegou o negro à condição de pária, patamar a partir do qual deveria começar sua escalada na sociedade de classes, sendo seu sucesso ou insucesso creditados a méritos ou deméritos que nada têm a ver com a questão da cor, tornando extremamente difícil a luta pela conquista da cidadania”. (“A QUESTÃO DO NEGRO – velhos e novos desafios”, Josildeth Gomes Consorte, 1991).

 

 

UMA DÉCADA HISTÓRICA


Há exatos 10 anos, ainda nos primeiros meses do primeiro governo Lula, estávamos sob o efeito da promulgação da Lei 10.639/03, uma das mais importantes ações afirmativas do país, ao exigir que os sistemas de ensino público e privado garantissem tanto a inclusão da temática de história e cultura africana em todo o currículo escolar, quanto a educação das relações étnico-raciais. Eu vinha de Passos, no Sudoeste de Minas Gerais, desembarcando na rodoviária de Vitória da Conquista, indo atuar na Semana Santa de 2003, na Paróquia de São João Batista, em Jânio Quadros, a menos de dois meses de me transferir para aquela desafiadora e acolhedora realidade. Mudanças paradigmáticas o bastante em si. Mas, havia uma mais forte ainda, estampada nas manchetes dos jornais de circulação estadual expostos na rodoviária: “UNEB adota cotas raciais”. Iniciava-se a discussão das cotas no ensino superior brasileiro, não mais a partir de possibilidades hipotéticas ou remotas, mas sim da adoção efetiva das cotas na maior universidade estadual da Bahia. Começávamos a sentir os desdobramentos da Constituição de 1988, quando o Estado brasileiro rompe com a neutralidade do Estado Liberal, o qual garantia apenas a igualdade formal e, a partir daí, “fixa objetivos favoráveis às ações afirmativas, que nada mais são que a promoção da igualdade material, e até mesmo, em alguns casos, expressamente as institui” (REZENDE, 2010, p. 17).




Retrospectivamente, as cotas na UNEB – e, concomitantemente, na UnB e na UERJ – foram como que as primeiras faíscas em um palheiro de dimensões continentais. O Estado com maior percentual de população negra dando um passo significativo em nossa história na superação das desigualdades raciais historicamente acumuladas. De 2003 pra cá, são mais de 186 instituições públicas de ensino superior que adotaram alguma medida de acesso diferenciado buscando corrigir desigualdades sociais, raciais, históricas e regionais (vide mapa das ações afirmativas em: http://www.educafro.org.br/site/cotas-mapa.html). Dentre os principais beneficiados encontram-se indígenas, quilombolas, negros autodeclarados (pretos e pardos), mulheres, pessoas com deficiência e pobres.

As cotas na universidade democratizaram um profícuo debate sobre o racismo e o lugar do negro na sociedade brasileira. Segundo pesquisas veiculadas por jornais de circulação nacional, em 2006 e 2013, mais de 60% da população aprovam a adoção de cotas sociais e raciais na universidade. Outro fator considerável nesses 10 anos de cotas é o desempenho acadêmico dos cotistas, igual ou superior aos não optantes. Em Conquista, o perfil das cotas no IFBA, na UFBA e na UESB estão acima da média dos percentuais adotados no Brasil. A UESB, desde 2008, reserva 50% das vagas para oriundos de escola pública e, dessas, 70% para autodeclarados negros. Além da reserva, há as vagas adicionais para quilombolas, indígenas e pessoas com deficiência.

Entretanto, uma década depois, no Estado com maior população negra em termos absolutos, a adoção de cotas pelas universidades estaduais paulistas tem sido pauta de um projeto estruturado e imposto de cima pra baixo, sem discussão prévia com a sociedade civil ou com os movimentos sociais negros. Segundo os críticos, o projeto denominado PIMESP mais representa uma estratégia de contenção do que de inclusão de negros e pobres na Unicamp, Usp,  Unesp e Faculdade de Medicina de Marília, instituições marcadas pela quase total ausência de negros e pobres. O professor Kabengele Munanga, em texto desta semana, no artigo intitulado “Considerações sobre o PIMESP e cotas nas universidades paulistas”, disponível na página do Geledés (www.geledes.org.br), critica as intenções elitistas desse novo programa. A proposta, além da reserva de 50% das vagas para oriundos de escola pública, com 35% delas reservadas para negros, meta a ser alcançada em três anos, é a criação de um “College” destinado a alunos vindos de escola pública e a partir do desempenho nesse curso técnico (70%, no mínimo) o candidato poderia concorrer a uma vaga na universidade. Segundo Frei David, da Rede Educafro, o debate em torno do PIMESP tem sinalizado sobre o papel das ações afirmativas no cenário de disputa presidencial de 2014, mostrando, além da importância decisiva do movimento negro organizado, mas do próprio eleitor negro, maioria da população.

Qualquer ação afirmativa que se proponha efetivamente a promover inclusão e reparação racial no Brasil, em seu formato, precisa levar em conta três recentes marcos regulatórios. A aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, através da Lei 12.288, de 20 de julho de 2010; a aprovação das cotas pelo Supremo Tribunal Federal no primeiro semestre de 2012, “transformando as ações afirmativas em um princípio constitucional sólido” (SANTOS, 2013), quando derrubou, por unanimidade, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 impetrada pelo DEM contra as cotas na UnB; e a aprovação das cotas nas universidades e instituto federais pelo Congresso Nacional sancionada pela Presidenta Dilma, em outubro de 2012, através da Lei 12.711.

A aprovação do Estatuto da Igualdade Racial encerrou uma década emblemática no amadurecimento de toda a sociedade brasileira quanto a adoção de medidas compensatórias em favor da população negra após séculos de escravidão, discriminação e alijamento do processo produtivo e da vida social do país (parafraseando a prova de redação da UESB no processo seletivo de 2010.2). O Estatuto passa a ser uma lei federal que orienta, indica e sugere aos organismos públicos e privados a implementação de ações afirmativas que visem a superação das assimetrias raciais que estão na base das desigualdades sociais do país. O Estatuto mostra que as cotas no ensino superior são apenas um dos passos nessa “desconstrução” de uma nação reservada a poucos e negada a uma maioria, mais de 50% da população, negra. A ausência de negros no ensino superior e nos postos de trabalho de relevância em nossa sociedade, como também as diferenças de salário entre negros e brancos, mesmo quando em condições iguais de formação, realidades demonstradas pelas reiteradas estatísticas, só confirmam a dívida histórica do Brasil para com a população negra, principalmente com o processo de abolição da escravatura que não contemplou o negro enquanto cidadão brasileiro.

 
O NEGRO E OS CONCURSOS PÚBLICOS

É visível, a olho nu, a ausência (paradoxalmente, chamada de “invisibilidade”) de negros nos cargos públicos, nas três esferas, nas carreiras docentes universitárias, nos cargos eletivos, diplomáticos e administrativos, no setor público, na iniciativa privada, nos altos escalões dos governos, nas assembleias legislativas, no judiciário, na mídia, na publicidade, no comércio, enfim, em todos os espaços estratégicos de estruturação, conservação ou celebração de uma pretensa supremacia racial branca nacional. Por mais miscigenados que somos na base da pirâmide social, há uma distância abismal entre negros e brancos em termos de acesso a esses espaços, distância que urge ser desconstruída a partir de ações afirmativas, condição para que nos transformemos efetivamente em um país democrático. Caso contrário, continuaremos sendo uma parte do planeta na qual as oportunidades nunca foram iguais e, inclusive depois que se instituíram processos seletivos, concursos e vestibulares, baseados unicamente na meritocracia a qual, em uma perspectiva totalmente descontextualizada, não respeitando nossa diversidade e, principalmente nossas desigualdades históricas e acumuladas, acaba por perpetuar e cristalizar nossas assimetrias. Quando a UNEB definiu cotas raciais também na pós-graduação, aquela decisão paradigmática não foi seguida pelas demais instituições que vieram a adotar cotas.

Entre as décadas de 60 e 70, um jovem negro com menos de 25 anos teria mais chance de ingressar em algum serviço público, na área administrativa ou militar e conseguir promover-se até alcançar patamares hoje bem mais competitivos de ascensão profissional e social. No entanto, os concursos públicos, a cada ano, tem se profissionalizado, elitizando-se e impulsionando o fenômeno da rentosa e famigerada “indústria dos cursinhos”, ao conjugarem desempenho na prova objetiva com apresentação de um currículo que corresponda ao acúmulo de títulos por parte dos que tiveram maiores possibilidades de se graduar, pós-graduar e condições de incrementar sua formação das mais diversas formas. O racismo institucional, expresso pela cotidiana incapacidade das instituições, públicas ou privadas, em garantir igualdade de tratamento aos diversos grupos e segmentos sociais, também se manifesta na forma como essas mesmas instituições promovem uma grave distorção de nossa diversidade étnico-racial, ao privilegiar um segmento social no acesso à composição de seus quadros, a partir de concursos e seleções de caráter extremamente meritório, segmento este historicamente melhor oportunizado nos processos educacionais. Assim, nossas instituições incorrem duplamente no racismo. 

Pensar a adoção de cotas no serviço público municipal na terceira maior cidade da Bahia, na cidade que mais cresce no Nordeste, em uma região na qual a presença de negros, segundo o IBGE, é de 67% (pretos e pardos), significa garantir que daremos um passo decisivo na mudança do cenário no qual se encontra a desigualdade racial presente no mercado de trabalho, seja ele privado ou público. No nosso caso, a empresa que mais emprega no município, a prefeitura, que no próximo concurso, previsto para os próximos meses, disponibilizará quase 2.000 vagas em seu edital. Não obstante a Bahia possuir mais de 70% da população negra – em muitos municípios esse percentual ultrapassa os 80% – o serviço público baiano é reflexo das assimetrias já tratadas neste texto. No caso da Bahia, o racismo ganha contornos de maior eficiência. No Estado mais negro do país o poder é branco, independente do governo ou grupo político hegemônico. É o Estado reproduzindo a estratificação racial brasileira. Não a partir de uma legislação explicitamente excludente, mas fruto de mais de um século de processos sociais que levaram à ascensão de uma pequena parcela da sociedade brasileira, em detrimento do alijamento da maioria, negra, índiodescendente, quilombola, moradora das periferias urbanas e rurais.

Adotar cotas em um concurso público municipal é cumprir o Estatuto da Igualdade Racial que no artigo 39 diz: “O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas”. Estados como Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul, alguns deles cujo percentual de negros é bem inferior que o da Bahia já definiram cotas no serviço público estadual. Na última década, diversos municípios já o adotaram também. Nova Iguaçu (RJ), Piracicaba (SP), Porto Alegre (RS), Vitória (ES), Criciúma (SC), Betim (MG), Colombo (PR) e Viamão (RS) e outros adotaram tais medidas como forma de democratizar os quadros do funcionalismo público municipal. O Governo Federal está prestes a adotar cotas nos concursos públicos federais como forma de efetivar o Estatuto da Igualdade Racial. Alguns setores do serviço público, como o Instituto Rio Branco, responsável pela formação de diplomatas já tem adotado medidas de ações afirmativas para mudar o perfil de quase totalidade de brancos como representantes da nação através do Itamaraty mundo afora.

AVANÇAR EM QUALIDADE NA INCLUSÃO E REPARAÇÃO

Na Bahia, além da adoção de questões relacionadas à diversidade étnico-racial e sexual nas provas de concursos públicos estaduais, apenas o município de Salvador teve o projeto de Lei (02/2009) de autoria do Vereador Gilmar Santiago (PT) aprovado na Câmara em setembro de 2012 e vetado pelo então prefeito João Henrique. Em janeiro, o atual prefeito da capital mais negra fora da África, em um gesto populista, sem considerar o projeto já aprovado na câmara, decretou cotas nos próximos concursos públicos municipais soteropolitanos. A mesma Bahia que ostenta ter a primeira mulher negra, Luislinda Dias de Valois Santos a se tornar juíza federal, não obstante inúmeros negros já terem tentado carreira em Direito. Em Vitória da Conquista, o último concurso, de 2007, ofereceu mais de 1.600 vagas. No entanto, além de não ter tido nenhum tipo de cota, também não utilizou o quesito raça/cor nos formulários de inscrição para o concurso, o que impossibilitou termos uma maior precisão de quantos negros se inscreveram e quantos lograram aprovação e convocação. Em setembro de 2012, o vereador Beto Gonçalves (PV), integrante do Conselho Municipal de Igualdade Racial (COMPIR), apresentou um projeto de lei (n. 62/2012) na Câmara Municipal, o qual se encontra na Comissão de Justiça e Cidadania. O presente projeto apresenta uma proposta de adoção de cotas de 20% nos processos de seleção para composição dos quadros efetivos e temporários do setor público municipal, ou seja, os próximos concursos públicos municipais e também as seleções temporárias.

Vitória da Conquista é uma das principais referências, se não a principal referência municipal baiana em termos de desenvolvimento de Políticas de Promoção Igualdade Racial. Tal constatação se dá nas atividades promovidas pelo Fórum Estadual de Gestores (as) Municipais de Políticas de Igualdade Racial, organização da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia e que reúne representações mais de 80 municípios baianos. Dentre o que nos faz sermos referência estadual está a manutenção de uma equipe de assessoria técnica que atua articulando ações de Igualdade Racial, em diálogo com diversas secretarias municipais, na realização de quatro conferências de Igualdade Racial desde 2005 e, principalmente, na estruturação do COMPIR.

O COMPIR, Conselho Municipal de Políticas de Igualdade Racial de Vitória da Conquista, criado em 20 de novembro de 2011, mensalmente tem se debruçado sobre o Plano Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ainda tramitando aprovação no legislativo e executivo, e elenca dentre as prioridades para a Política de Igualdade Racial em Vitória da Conquista, a execução do Plano, em um diálogo com todas as secretarias municipais, a partir do órgão gestor de políticas de igualdade racial. Mas, também entende a importância de medidas e ações que precisam ser implementadas ou apoiadas porque já em curso. Uma delas, o Pré-Vestibular Quilombola, ao garantir o funcionamento de um projeto que anualmente mobiliza com a Associação da Juventude Quilombola, mais de 250 jovens quilombolas de Conquista e do Território. Outra ação é a reflexão por dentro da administração municipal, junto à Câmara Municipal e com os segmentos da sociedade civil organizada sobre a adoção de cotas no concurso público municipal previsto para 2013.               Os conselheiros do COMPIR tem uma posição unânime sobre a relevância e urgência da adoção das cotas pela Prefeitura de Conquista. Posição que encontra respaldo em diversos setores do primeiro e segundo escalões do governo municipal.

O projeto do COMPIR para adoção de cotas no Concurso Público Municipal de Vitória da Conquista, primeiro município do interior baiano a aprovar cotas no concurso público municipal e primeiro município da Bahia e do Nordeste a efetivamente adotá-las em um concurso, o de 2013, teria como principais características: cotas de 30% de vagas para autodeclarados negros em todos os níveis da Administração Municipal; adoção do quesito “raça/cor” no formulário de inscrição; utilização da Classificação Geral como critério principal, ou seja, os candidatos às vagas reservadas concorrem também às vagas universais, pelo mérito do desempenho nas provas; duração de 10 anos, a partir do concurso de 2013; criação de uma comissão (COMPIR, Igualdade Racial e empresa responsável) de acompanhamento do processo; utilização do critério de fenotipia (traços que identifiquem o candidato a cotas como socialmente "negro"); termo de autodeclaração no ato de inscrição do concurso: "pretos e pardos" e traços fenotípicos; perda da vaga por parte de quem se autodeclarar negro e não o for; envio de Relatório ao Prefeito por parte da Comissão e da SEMAD a cada concurso realizado.

O protelar a adoção de cotas no próximo concurso municipal poderá ter um efeito político negativo, seja pela visibilidade do município no cenário nacional e estadual, seja pelos avanços das políticas de igualdade racial já implementadas no município, seja pelo risco iminente de virmos constatar, assim que sair a primeira chamada dos aprovados no concurso de 2013, a ausência de negros, seja para as vagas de maiores salários, seja para as vagas de cargos médios e até mesmo para os cargos de alta procura, muitas vezes preenchidos por candidatos com bem maior escolarização do que a exigida no edital.

Os argumentos contrários às cotas no concurso público se assemelham e muito às críticas, já superadas, contra as cotas na universidade. Dentre elas, a ideia de que não há diferença entre negros e brancos no país. Outra é a de que as cotas poderiam comprometer o desempenho acadêmico (universidade) ou a qualidade do serviço público (concurso). No caso do concurso, como medir a qualidade de competência e desempenho de um funcionário público antes mesmo dele ser integrado à instituição? Outra seria a de que a constituição não prevê nenhum tipo de discriminação. Mas a própria Constituição Federal prevê a garantia do acesso à cidadania a todos os brasileiros. O debate sobre as ações afirmativas, seja no modelo norte-americano, seja no Brasil, chama a atenção para uma resignificação do próprio mérito. Não mais a hegemonia do mérito acadêmico e de títulos, que sempre se ancorou juridicamente no conceito de igualdade formal, mas a emergência do mérito democrático, socialmente justo e razoável, condição para a promoção da igualdade material. Segundo Rezende (2010, p. 16), “na reserva de cotas para negros o critério "raça" prepondera sobre o conceito tradicional de mérito, abrindo espaço para o denominado mérito democrático, fruto da combinação com o princípio da igualdade material”.

A partir do Estatuto da Igualdade Racial a garantia da cidadania plena aos afro-brasileiros precisa ser sustentada por ações que desconstruam a falácia da democracia racial que, por um século, serviu de apanágio de nossa sociedade, na tentativa de encobrir as nossas mazelas e postergar ações de reparação. Acredito que ainda podemos juntar forças, ouvir a sociedade, amadurecer o debate – já bem adiantado com as cotas na universidade – e aprovar na Câmara um projeto já há seis meses tramitando. Assim, teremos avançado em qualidade na promoção de um serviço público municipal que continuará a ser referência, agora também por ter a coragem de promover a pluralidade étnico-racial de nossa sociedade por dentro dos seus quadros efetivos. Daqui a alguns anos, olharemos para este momento e perceberemos nitidamente quando o Estado brasileiro, buscando superar o racismo, também conseguiu minimizar suas consequências, ao garantir iguais oportunidades para todos os cidadãos e para todas as cidadãs.

P.s.: Agradeço a Maurício Sousa Matos, aluno do IFBA e companheiro no COMPIR, pela atenta leitura, proposição e correção de algumas informações importantes contidas neste texto.
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Flávio Passos, militante negro, mestre em Ciências Sociais pela PUC SP (ex-bolsista da Fundação Ford), funcionário concursado da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, BA (Assessoria de Igualdade Racial) e do Estado da Bahia (Professor de Filosofia no Colégio Carlos Santana, em Belo Campo, BA), vice-presidente do Conselho Municipal de Políticas de Igualdade Racial de Vitória da Conquista (COMPIR).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CONSORTE, Josildeth Gomes. A questão do negro – velhos e novos desafios. Revista São Paulo em Perspectiva: 5 (1), 85-92, jan. 1991. Disponível em:
http://www.seade.gov.br/produtos/spp/v05n01/v05n01_12.pdf. Acesso: 29.03.13.
ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm
MUNANGA, Kabengele. Considerações sobre o PIMESP e cotas nas universidades paulistas. Disponível em: www.geledes.org.br. Acesso: 28.03.13.
REZENDE, Vanessa Elkhoury. Ação Afirmativa e Concurso Público: Reserva de Cotas para Afro-brasileiros. Disponível em:
http://www.projustica.com.br/viewcontent.php?m=mainlist&cod=114Acesso: 28.03.13
SANTOS, David Raimundo dos. PIMESP e o debate: cotas, mérito ou meta? Disponível em www.afropress.org.brAcesso: 29.03.13.
sexta-feira, 29 de março de 2013

Francisco de Assis e Francisco de Roma


* Por Leonardo Boff 

Publicação pelo leonardoboff.com, em 29/03/2013.

Desde que  assumiu o nome de Francisco, o bispo de Roma eleito e, por isso,  Papa, faz-se inevitável a comparação entre os dois Franciscos, o de Assis e o de Roma. Ademais, o Francisco de Roma explicitamente se  remeteu ao Francisco de Assis. Evidentemente não se trata de mimetismo, mas de constatar pontos de inspiração que nos indicarão o estilo  que o Francisco de Roma quer conferir à direção da Igreja universal.


Há um ponto inegável comum: a crise da instituição eclesiástica. O jovem Francisco diz ter ouvido uma voz vinda do Crucifixo de São Damião que lhe dizia:”Francisco repara a minha Igreja porque está em ruinas”. Giotto o representou bem, mostrando Francisco suportando nos ombros o pesado edifício da Igreja.

Nós vivemos também grave crise por causa dos  escândalos, internos à própria instituição eclesiástica. Ouviu-se o clamor universal (“a voz do povo é a voz de Deus”): “reparem a Igreja que se encontra em ruinas em sua moralidade e em sua credibilidade”.  Foi então que se confiou a um cardeal da periferia do mundo,  Bergoglio, de Buenos Aires, a missão de, como Papa,  restaurar a Igreja à luz de Francisco de Assis.

No tempo de São Francisco de Assis triunfava o Papa Inoccêncio III (1198-1216) que se apresentava como “representante de Cristo”. Com ele se alcançou o supremo grau de secularização da instituição eclesiástica com interesses explícitos de “dominium mundi”, da dominação do mundo. Efetivamente, por um momento, praticamente, toda a Europa até a Rússia estava submetida ao Papa. Vivia-se na maior pompa e glória. Em 1210, sob muitas dúvidas, Inocêncio III reconheceu o caminho de pobreza de Francisco de Assis. A crise era teológica: uma Igreja-Império temporal e sacral contradizia tudo o que Jesus queria.

Francisco viveu a antítese do projeto imperial de Igreja. Ao evangelho do poder, apresentou o poder do evangelho: no despojamento total, na pobreza radical e na extrema simplicidade. Não se situou no quadro clerical nem monacal, mas como leigo se orientou pelo evangelho vivido ao pé da letra nas periferias das cidades, onde estão os pobres e hansenianos e no meio da natureza,  vivendo uma irmandade cósmica com todos os seres. Da periferia falou para o centro, pedindo conversão. Sem fazer uma crítica explícita, iniciou uma grande reforma a partir de baixo mas sem romper  com Roma. Encontramo-nos face a um gênio cristão de sedutora humanidade e de   fascinante ternura e cuidado pondo a descoberto o melhor de nossa humanidade.

Estimo que esta estratégia deve ter impressionado a Francisco de Roma. Há que reformar a Cúria e os hábitos clericais e palacianos de todas a Igreja. Mas não se precisa criar uma ruptura que dilacerará o corpo da cristandade.

Outro ponto que seguramente terá inspirado a Francisco de Roma: a centralidade que Francisco de Assis conferiu aos pobres. Não organizou nenhuma obra para os pobres, mas viveu com os pobres e como os pobres. O Francisco de Roma, desde que o conhecemos, vive repetindo: o problema dos pobres não se resolve sem a participação dos pobres, não pela filantropia mas pela justiça social. Esta diminui as desigualdades que castigam a América Latina e, em geral, o mundo inteiro.

O terceiro ponto de inspiração é de grande atualidade: como nos relacionar com a Mãe Terra e com os bens e serviços escassos? Na fala inaugural de sua entronização, Francisco de Roma usou mais de 8 vezes a palavra cuidado. É a ética do cuidado, como eu mesmo tenho insistido fortemente em vários escritos a que vai salvar a vida humana e garantir a vitalidade dos ecossistemas. Francisco de Assis, patrono da ecologia, será o paradigma de uma relação respeitosa e fraterna para com todos os seres, não em cima mas ao pé da natureza.

Francisco de Assis entreteve com Clara uma relação de grande amizade e de verdadeiro amor. Exaltou a mulher e as virtudes considerando-as “damas”. Oxalá inspire a Francisco de Roma uma relação para com as mulheres, a maioria da Igreja, não só de respeito, mas de valorização de seu protagonismo, na tomada de decisões sobre os caminhos da fé e da espiritualidade no novo milênio. É uma questão de justiça.

Por fim, Francisco de Assis é, segundo o filósofo Max Scheler, o protótipo ociental da razão cordial e emocional. É ela que nos faz sensíveis à paixão dos sofredores e aos gritos da Terra. Francisco de Roma, à diferença de Bento XVI, expressão da razão intelectual,  é um claro exemplo da inteligência cordial que ama o povo, abraça as pessoas, beija as crianças e olha amorosamente para as multidões. Se  a razão moderna não se amalgamar à sensibilidade do coração, dificilmente seremos levados a cuidar da Casa Comum, dos filhos e filhas deserdados e alimentar  a convicção bem franciscana de que abraçando afetuosamente o mundo, estaremos abraçando a Deus.

* Leonardo Boff é autor de Francisco de Assis: ternura e vigor, Vozes  1999.
Fonte:http://leonardoboff.wordpress.com/2013/03/29/francisco-de-assis-e-francisco-de-roma/

A Beleza que pagamos

Narciso (1594-1596), por Caravaggio



* Por Marcelo Lopes

Eco e Narciso são duas figuras míticas que, como arquétipos, desenham muito bem histórias contadas e recontadas através dos tempos. A primeira personagem era uma bela ninfa, apaixonada pelo segundo, um jovem de beleza incomparável, cuja consciência da sua graça o levava a se achar semelhante a um deus. Eco, sem ter seu amor correspondido, definhou melancolicamente, o que fez a deusa Némesis lançar sobre Narciso uma lição à altura da sua frivolidade: o jovem apaixonou-se por seu próprio reflexo na água na lagoa de Eco, onde se deitou num banco, admirando seu próprio reflexo, embelezando-se, enquanto consumia-se pouco a pouco. Mais tarde, ao procurarem seu corpo, encontraram apenas uma flor, que hoje leva o seu nome.

Venus Anadyomene, óleo por Tiziano Vecelli
Mitos que tem por tema a beleza povoam a história humana e mudam de tempos em tempos, de acordo as transformações do olhar do homem sobre o mundo que o cerca. As beldades da Renascença, por exemplo, tinham por característica o reconhecimento de suas celulites e pneuzinhos à mostra, fartura em carnes e muito lugar para “dar uma apertadinha”, revelando mais do que a voluptuosidade do seu corpo: num tempo em que comer bem e bastante era um privilégio ainda maior que hoje, demonstravam representar o ideal da beleza ao mostrarem-se bem nutridas. Um padrão de beleza estendido por séculos afirmando categoricamente que não haveria coisa mais linda neste mundo que uma gordinha nua.

Se as pinturas e esculturas clássicas perpetuavam padrões corporais ideais, referências máximas a serem seguidas na busca da beleza para homens, e muito especialmente, para mulheres, o acesso popularizado a outras e mais diversas imagens com o advento do cinema e da TV, criou mitos inalcançáveis de outra ordem de beleza, cercados de narrativas heroicas e sedução à flor da pele. Assim, de Rodolfo Valentino a Errol Flynn e Clark Gable, de Rock Hudson a Tom Cruise, passando por Greta Garbo, Rita Hayworth, Marilyn Monroe, Sharon Stone a Charlize Theron e Megan Fox, todos os mitos do cinema carregam para fora das telas doses cavalares de uma beleza que vai além dos próprios atores que os encarnam. Estes, contando do início do século para cá, tiveram seu padrão mudado radicalmente: os homens se tornando mais musculosos; as mulheres emagrecendo até não sobrar mais onde pegar.
A era do Photoshop: ideal de beleza além da beleza

O mundo que antes sustentava a beleza como um ideal, um status e um privilégio de poucos - manipulados no presente e na posteridade -, passou a transformá-lo numa construção que difunde um ideal do belo como algo vendável, comercializável, atingível na medida do bolso de cada um. Esta falsa democracia acirra o desejo humano na busca de um padrão cada dia mais inalcançável. Se anteriormente as revistas da moda e os anúncios já mascaravam com retoques à mão as fotos das modelos, o atual grau de refinamento da manipulação digital das imagens gera reconstruções corporais completamente irreais de tão perfeitas. Para esse novo ideal estético, que corrige as imperfeições, as curvas do corpo, vincos da pele, texturas e rugas, são anulados não apenas o que nos torna humanos, mas também aquilo que nos marca a história do corpo através do tempo. Temos, neste novo modelo, um padrão de tão alto nível de perfeição que não basta recorrer à saúde do corpo, é preciso ir além e nos tornarmos, pelo poder da maquiagem digital e da ponta de um bisturi, a reconstrução modelada de outro tipo de ser humano, edificado para atender não as exigências da saúde, mas aos apelos infinitos do desejo e do consumo.

Desta forma, assim como Narciso, um número cada vez maior de pessoas definha frente a um reflexo cuja imagem exige cada dia uma meta de beleza infinita. Exaltam a frivolidade e a superficialidade, que vem em anexo a um consumo desenfreado, nos estimulando em camadas e camadas de discursos midiáticos. Os reality shows, as modelos bombadas que exibem seus corpos nas TV’s e revistas, e as propagandas - que, sob quilos de maquiagens, cremes e imersões, prometendo o impossível - são reflexo e causa desta busca frenética. Cada dia mais os jovens querem permanecer mais jovens e os mais velhos buscam esticar sua juventude ad infinitum, numa luta desigual contra o tempo e o corpo. Têm, todos eles, flutuando sobre o ombro esquerdo, um capetinha miniatura que sussurra ao seu ouvido que é possível vencer essa peleja, enquanto, no outro ombro, um anjinho bonitinho lhes diz que nunca na vida você pode ficar tão lindo quanto ele.

Casos de inconsequências geradas por essa busca incessante não são poucos. Pipocam pela mídia, histórias em que a odisseia pelo corpo perfeito trazem, ao invés do esperado, deformações provocadas pelo exercício corporal mal feito, pelas cirurgias plásticas nos rostos e no corpo, entortando tudo, inclusive a cabeça de muita gente. Recentemente, em Vitória da Conquista, quatro jovens deram entrada em hospitais da cidade após terem utilizado anabolizantes – usados comumente em cavalos – para turbinarem sua musculatura, compartilhada na mesma seringa. Dois ainda correm risco de morrer e podem, um deles, ter os membros superiores amputados, e o outro, as pernas. Não é incomum, no cotidiano das academias, o uso de recursos extremos como estes. Na verdade, para atender a uma moda tão irreal, o absurdo se incorpora aos meios para alcançá-la.

Pensar o ideal estético do nosso tempo e tudo o que o implica não é possível sem compreender como somos tão fartamente bombardeados na nossa parcela narcisista. Bajulados, aliciados nas ruas, em casa, no trabalho, somos atalhados pela mídia naquilo onde mais somos vulneráveis, o nosso desejo. Vendem-nos o impossível em frascos, em carros, em móveis e imóveis, em estilos de vida e nos sentimos, mesmo sem ter como, parte disto. Entregues, nos deixamos levar. Queremos nos achar mais bonitos do que somos, e mesmo que o sejamos, ignoramos os riscos de querer ter (e não ser) mais. Por isso, tendemos, nessa lógica, a definhar também, sem nunca alcançar o reflexo. E, após tudo isso, não é possível que não sobre nem uma flor com nosso nome.
Fonte:http://sintomadecultura.blogspot.com.br/2013/03/a-beleza-que-pagamos.html









OS DEVERES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA



* Por Oliveira Lima


Minhas Senhoras, Senhores:

Eu só posso atribuir à circunstância de haver regressado há poucos dias de uma demorada viagem à República Argentina a honra que me é feita por profissionais de iniciativa convidando-me para orador desta festa de posse da diretoria da Maternidade Pernambucana que se pretende acertadamente fundar.

A República Argentina é na verdade a única democracia da América Meridional merecedora deste nome porque é o único dos seus países onde as eleições são uma realidade incontroversa, portanto onde existe um regime de opinião manifestando-se calma, legal e dignamente pelo sufrágio, não por alucinados impulsos revolucionários, em que o sangue do povo jorra em borbotões para as coisas continuarem afinal como estavam, com a mudança apenas do rótulo e do nome do farmacêutico: dentro do boião correm a mesma pomada feita com os mesmos ingredientes
.

Não se passou tanto tempo desde que a Argentina se elevou a esse alto nível político, oferecendo o espetáculo de um partido, como o radical, galgando o poder após trinta anos de oposição c algumas tentativas revolucionárias dessa vez, entretanto, sem um tiro ou sequer uma violação de urna; assim como do mesmo partido no poder perdendo eleições segundo não há muito lhe sucedeu em Córdova.

Pode contudo dizer-se que a nação se preparou para tão fecundos destinos, desenvolvendo e cultivando no seu seio o espírito social; daí a segurança da sua transformação. A base é sólida sobre a qual assenta o edifício político. Em matéria de assistência pública, de proteção aos doentes do corpo e da mente, não conheço país que se avantaje à Argentina, possuindo mesmo feições que lhe são peculiares e que seria em extremo desejável que se implantassem noutras terras. Se o progresso se deve, como parece, medir pela condição dos estabelecimentos de benificência dc uma sociedade, comparada com as demais, a sociedade argentina acha-sc certamente no primeiro plano da civilização.

* Conferência pronunciada na inauguração da Liga Pró-Matre, em Pernambuco.

O nosso patriotismo, susceptível e melindroso como qualquer outro, ressentiu-se há alguns anos de haver o Professor Pozzi, o celebrado clínico francês, expressado um tanto enfaticamente sua preferência pelos serviços médicos argentinos com relação aos brasileiros. Não quer dizer que a ciência de um dos dois países valha mais do que a do outro. Nós temos grandes médicos e grandes cientistas e não há país, nem mesmo o que lhe foi berço, em que o nome de Osvaldo Cruz seja mais reverenciado do que na Argentina. O seu culto ali é como se fosse o de um Pasteur. O que nos falta por enquanto é capacidade de organização; é sobretudo um ambiente social propício à organização científica, em que não falte também a piedade, sem a qual a ciência corre o risco de ser rude. Li não há muito um livro cruel. Intitula-se Crimes de Caridade e tem por autor um judeu rumaico domiciliado nos Estados Unidos. Suas páginas envolvem a condenação do modo por que é exercida a caridade por funcionários adrede remunerados, processo que resulta o menos caridoso possível e do qual padece sobretudo a gente estrangeira de poucos ou nenhuns recursos, que nem sempre encontra trabalho num meio indiferente, senão hostil, onde os socorros lhe são fornecidos a troco de humilhações, de maus tratos dc um sistema de espionagem e de sujeição em virtude do qual é vedado, em casos de socorros recebidos, auferir dinheiro de outra fonte, mesmo a de um trabalho ligeiro, porque isso já significaria o poder ganhar a vida sem auxílio. Daí a dissimulação em ocultar pequenos lucros; a minguada alimentação dada aos filhos a fim de não trair outros recursos denunciados pelos espias assalariados; ao mesmo tempo a necessidade de manter a prole de forma a não cair sob a alçada das leis protetoras da infância, que nem sempre são leis que respeitam os laços de família e chegam por vezes a dilacerar o coração dos pais.

Não significa isto que nos Estados Unidos se não pratique o bem sob formas muito variadas. A caridade como ramo de administração e origem de burocracia não pode porém deixar de ser deficiente. Recomendando o que êle chamava "humanizar a caridade oficial", um membro da Junta de Beneficência do Estado de Nova York declarava, há um ano, num inquérito aberto pelo Governador Whitman, que sinceramente acreditava ser preferível para as crianças de um certo asilo morrerem do que viverem. O que diria aquele publicista c este síndico- se tivessem conhecimento de que numa terra que se diz civilizada e se gaba de altruística, raparigas órfãs, culpadas de insubordinação, foram pelos provedores da caridade confinadas como castigo em células do hospício de alienados des-uinadas aos furiosos? Responderiam decerto que essas próprias células constituem um martírio anacrônico, mesmo no caso dos loucos, porque o tratamento destes infelizes, hoje, se procede diversamente — pelo repouso na cama e pelos banhos mornos. Uma das maravilhas da República Argentina é a Colônia de Lujan em que os doentes, como lá se chamam os dementes, vivem soltos, trabalhando, produzindo e distraindo-se, com tantas comodidades, tamanho bem-estar num ambiente tão simpático c tão ameno, que quase dá vontade de lá passar uma temporada.

No caso bárbaro a que me referi e que é infelizmente nacional, a falta não é tanto proveniente de desumanidade quanto de ignorância. A caridade porém não tem mais o direito de ser ignorante. Uma das grandes forças da Igreja Romana consiste na sua fácil adaptação ao progresso dos tempos, na pronta assimilação das conquistas científicas. Longe vai também o tempo em que ser sant era geralmente sinônimo de ser pouco limpo. A humanidade crist" evoluiu como tudo o mais no mundo. Os agiológios do passado encerravam exemplos de cândido desasseio, mas os do futuro conterão exemplos de higiene prática, os quais constituirão outros tantos milagres. São Francisco Xavier, que possuía todas as virtudes, cometeu o grave erro de não se desembaraçar dos parasitas do seu corpo antes de evangelizar o Japão, onde o banho é de rigor duas vezes por dia.

As nossas Santas Casas prestam extraordinários serviços. Não sei o que seria sem elas a assistência pública no Brasil; mas ainda carecem de aprender muito em matéria de profilaxia e de terapêutica. Antes de recorrer ao sobrenatural haverá que esgotar o natural, reservando a religião para aquilo que representa seu campo de ação e seu terreno de eleição, a saber o consolo da alma pelo bálsamo da crença.

A República Argentina resolveu, a meu ver, o problema da caridade oficial, e quem o resolveu foi o seu Presidente Rivadávia, há quase um século, em 1825, entregando às senhoras da aristocracia portenha a direção oficial dos serviços de beneficência pública, a qual elas desde então vêm exercendo gratuitamente. A organização propriamente não variou e essas senhoras dispõem hoje de um orçamento de 20 mil contos, assim subtraídos aos apetites dos políticos e dos seus clientes. Só do Estado recebem elas 11 mil contos, e o atual Presidente Irigoyen, que está dando ao mundo o exemplo, penso que único, de um chefe de Estado que não recebe seus vencimentos, integralmente os transfere à caixa da Beneficência.

O escrúpulo com que aquelas senhoras manejam o seu departamento só tem rival no acerto da sua administração. Não foram lá precisas as experiências da Grande Guerra, para que a mulher argentina desse a medida da sua inteligência e de sua competência. Os médicos do Recife, que entenderam confiar igualmente a um grupo distintíssimo de senhoras a organização da Maternidade pernambucana, tiveram a mesma -inspiração, a mesma intuição que o grande Rivadávia e com certeza não se arrependerão disso.

Nos hospitais e asilos da Argentina a direção técnica cabe, já se sabe, a profissionais; mas estes mesmos andam sujeitos à fiscalização severa das inspetoras da Sociedade, cujo labor meticuloso e excelente me foi dado acompanhar durante semanas de visitas diárias aos estabelecimentos pios da grande capital. Reparei então que ao exercício da caridade nem sequer era mister sacrificar a vaidade. A caridade pode ser praticada com trajes elegantes, fica até mais sedutora, do mesmo modo que as roupas imaculadas dos médicos e das enfermeiras dos hospitais em que há desses requintes como o que prognosticam a cura na sua alva, alegre tonalidade.

As senhoras da alta sociedade de Buenos Aires que tanto timbraram em dar-me a conhecer o resultado admirável dos seus esforços generosos no patrocínio dos enfermos, dos desvalidos e dos órfãos, prestam com suprema distinção, o que quer dizer com simplicidade, e não julgam incompatível com a moda, a sua tarefa humanitária. A observação tem seguramente sua importância, não fossem algumas pensar diversamente e cortar o vôo desta instituição maternal que tão bem se anuncia, reduzindo suas promotoras a personagens de bloco.

Se a resolução dos iniciadores da Maternidade Pernambucana foi previsora e feliz é porque é de ver a sua oportunidade. Não me compete entrar no exame do aspecto restritamente médico da obra projetada, a qual só pelo seu lado social me é lícito encarar. Entretanto, mesmo a um leigo podem falar as estatísticas e estas, como me foram fornecidas, rezam o seguinte: que no Rio de Janeiro, em 1915, o número das parturientes admitidas à Maternidade foi de 1.425, sendo a mortalidade materna de 1 c 1/2 por cento e da prole de 9 por cento, baixando cm 1916 o número cias parturientes a 1.300 c baixando respectivamente a proporção da mortalidade a 1/2 por cento e a 3 e 1/2 por cento. Nos hospitais o número de parturientes foi 419 em 1915, a proporção da mortalidade materna foi de 5 e 1/2 por cento e a da prole de 23,6 por cento: mais do que no estrangeiro em 1840, no caso das mulheres anormais, em que os algarismos proporcionais correspondem a 5 por cento e 16,8 por cento respectivamente.

Incompetência dos cirurgiões? ou falta de condições adequadas? qualquer um formulará a pergunta. A causa só pode ser a segunda — é a única resposta lógica, pois que os médicos do Rio e de Pernambuco saem das mesmas faculdades e estas têm dado provas sobejas da sua eficiência. Agora mesmo, cm Buenos Aires, ouvi da boca de sumidades os mais francos elogios à nossa ciência médica.

Se acreditarmos que no Cemitério de Santo Amaro foram inumadas, em 1918, 807 crianças nascidas mortas — quase tantas como as vítimas da varíola em 1909, que foram 912 — sem falar em 77 falecidas nas primeiras 24 horas de vida, mercê de debilidade congênita e de falta de assistência médica durante a gestação ou de acidentes sobrevindos à nascença, veremos que o problema que nos ocupa tanto tem dc momentoso quanto de urgente.

Faz grande honra à classe médica brasileira a atenção pot ela prestada a essas questões máximas do saneamento, uma vez que se admitiu e reconheceu que o Brasil, por muito bom que seja não é o Paraíso terreal da Bíblia, como acreditou Américo Ves púcio e o propalaram certos cronistas, deslumbrados pela luxurian te vegetação. Ou se o foi os males aí entraram com a explosão da cólera divina. A minha teoria de profano é que como terra tropi cal não há melhor, um sem número de condições a favorecem mas precisa-se de se cuidar muito ao sério em erguer, do seu leito de enfermidades e de privações, uma população degradada. Na Re pública Argentina, a maior preocupação dos profissionais reside em constituir uma raça forte — ainda mais forte que possa explo rar e valorizar os territórios que lhe couberam em partilha. Para isso se oferece rude combate aos males que assaltam a população, desde o impaludismo até a tuberculose. A ciência argentina assim ajuda a a obra da beneficência e ambas entre si disputam, numa santa emulação, a benemerência pública, constituindo os seus tentames combinados um título de honra incomparável e glória bastante para um país.

O que dizer, porém, da obra primordial e essencial de amparar a maternidade, de proteger a fonte da vida? Esta proteção tem que ser ativa e não pode limitar-se a ser passiva. A contemplação mística conduz também ao reino do céu, mas não modifica as condições do campo de ação da humanidade, à disposição da qual o engenho da criatura humana tem ido sempre colocando novos inventos e instrumentos aperfeiçoados de progresso, para exercer a caridade industriosa da forma mais eficaz.

Nem os tempos estão para repouso. Mais do que nunca a humanidade tem que fazer prova das suas virtudes ou dar expansão aos seus vícios e destarte aspirar à recompensa ou merecer a punição. A maior das guerras vai ser causadora da maior das transformações, tendo espalhado por todo o mundo a semente das reivindicações das classes trabalhadoras, que são as classes mais pobres. Os ricos, mesmo os que não forem culpados de iniqüidade ou de ganância, precisam fazer-se perdoar suas riquezas e só o lograrão pondo-se ao serviço da humanidade, lutando para minorar as necessidades e os sofrimentos, que têm sido o melhor quinhão do maior número.

Que soma mais considerável de dores e de angústias do que a consubstanciada na perpetuação da nossa espécie? Uma Maternidade mantida na altura que exige a ciência contemporânea é uma instituição de natureza a atrair mais do que qualquer outra as simpatias gerais, porque pressupõe o aumento da natalidade mediante os cuidados dispensados antes, durante e depois do nascimento e porque exerce um apelo irresistível sobre a nossa mais íntima sentimentalidade.

Fala-se todos os dias na urgência do crescimento da nossa população, com o fim de desenvolver os nossos recursos e no entanto são sacrificadas às centenas, pelo atraso e pelo desmazelo, que nea te caso muito se parecem com um crime, existências preciosas em si, porque cada uma representa uma unidade de cultura e, também, pelo ato de constituírem o fruto de organismos já adaptados ao meio, apenas depauperados pela miséria, freqüentemente associada à ignorância. A tal situação há que resolutamente fazer frente.

Como poderá o cidadão fazer valer o seu direito de trabalho sc não possui saúde para o exercer, se desde o berço tudo se combina para o tornar um enfezado, raquítico, doentio, por vezes anormal e quase sempre infeliz? A chamada indolência nacional é uma das acusações mais injustas que eu conheço e felizmente que tende a desaparecer, desde que se descobriu que o trabalhador nacional não é um preguiçoso, sim freqüentemente um doente e um doente que morre de esfalfar-se, sem possuir energia nem sequer para produzir a sua parte. Êle já nasce doente pela debilidade e pelos estigmas patológicos dos que o procriaram e pela míngua de assistência recebida na sua entrada para o mundo.

É bem tempo de procurar remediar esse estado de coisas, de robustecer os que têm de ser, em suma, os agentes da nossa civilização e forem salvos da morte que os espreita a cada momento, acudindo pressurosa ao seu primeiro vagido. O capital de que vale, sem o trabalho que o faz modificar e, por sua vez, de que vale o trabalho sem a resistência para o afrontar?

No Brasil falta por ora a verdadeira compreensão da questão social que é em boa parte uma questão cuja solução depende do coração. Eu não pretendo dizer que a gratidão seja o sentimento regulador das relações humanas, nem mesmo estou convencido de que seja o homem um animal bondoso; mas o espírito de justiça tem afinal uma influência poderosa sobre os destinos da humanidade. Onde quer que êle impere, serão menos agudas as desavenças, menos odientos os conflitos, mais cordiais os laços da grande solidariedade afetiva que deve constituir o supremo ideal social.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

FOnte:http://www.consciencia.org/os-deveres-da-administracao-publica

O PLANALTO: DESENVOLVIMENTO DA ECONOMIA CAFEEIRA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS. A ARISTOCRACIA DO CAFÉ. IMIGRAÇÃO.



* Por Professor Brasil Bandecchi – 1970.

Julgamos necessário, e mesmo indispensável, que antes de falarmos do café no Planalto, se diga alguma coisa sobre sua introdução no Brasil e sua cultura, no Rio de Janeiro.
A maior consagração oficial que o café recebeu, no Brasil, foi quando, da proclamação da nossa Independência, os heraldistas introduziram o famoso produto como um dos símbolos pátrios. Passou a figurar em nossos brasões.

As cinco quinas lusas deram lugar ao ramo de café.

Está aí, o café, como um dos símbolos das lutas da nossa emancipação, como haveria de ser o mais forte esteio da luta pela nossa independência econômica.

Oficialmente, o café entrou no Brasil em 1727, vindo da Guiana, pelas mãos do oficial brasileiro Francisco de Melo Palheta, o qual recebeu algumas sementes e mudas da esposa do governador daquela possessão francesa.

Melo Palheta foi homem de valor, atingiu o posto de sar-gento-mor do exército português, o que equivale, hoje, a major. Quando se diz ou escreve seu nome, êle logo se associa ao café. No Norte, embora distribuídas as mudas e os grãos em condições de germinar, não teve maior repercussão econômica, o que haveria de acontecer no Rio de Janeiro, em 1760, quando o desembargador João Alberto Castelo Branco, transferido do Pará para a futura capital da nação, trouxe consigo algumas mudas.

Afonso de E. Taunay informa:

"Deu-se, segundo parece, em 1760 a chegada das mudas do chanceler Castelo Branco ao Rio de Janeiro.

Pretendem alguns autores que o primeiro cultivador da ru-biácea em terras fluminenses foi o holandês João Hoppmann, dono dc grande chácara em Mata-Porcos, então nos subúrbios do Rio.

Dizem outros que esses pioneiros da cafeicultura foram os capuchinhos italianos, ou Barbónos, em sua chácara, hoje desaparecida, pois corresponde a uma parte do coração da cidade.

O ilustre botânico Freire Alemão perfilha esta versão. Documentou-a, contando que a plantação dos capuchinhos foi de 1762 e a de Hoppmann de 1770 e realizada a instância do vice-rei marquês do Lavradio.
Em 1782, o cónego Januário Barbosa conheceu duas árvores da primitiva plantação dos capuchinhos, testemunhou-o quarenta anos mais tarde."1

No Rio de Janeiro começa a nova etapa de sua cultura.

Nos primeiros tempos, também no Rio não se dava ao café a importância merecida.
A primeira fazenda de café, ao que tudo indica, foi a do padre Antônio do Couto Fonseca, próspero plantador de cana, e que depois de algum êxito no cultivo da rubiácea, voltou, sem se saber qual o motivo, para a sua antiga lavoura. Assim mesmo, foi um benemérito, pois que distribuiu sementes de café a diversos interessados.

Com a chegada de D. João, em 1808, a cultura do café toma novo rumo. Incentivou sua cultura de tal forma que em 1820 o Rio de Janeiro exportou 97.500 sacas do produto e, 10 anos depois, sendo o Brasil independente há apenas 8, o mesmo porto exportava 391.785 sacas.

Os municípios que mais produziam eram Vassouras, Canta-galo, Valença, Paraíba do Sul etc. O café se transformou em notável fonte de riqueza, e logo a maior do Brasil. Já em 1850 a produção chegava a 1.343.484 sacas e, passados 10 anos, em 1860, atingia 2.127.219. Isto no Rio, até que São Paulo assumiu a liderança, tornando-se o maior produtor de rubiácea do mundo.

Do Rio, o café se irradiou para as províncias de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Atualmente, Paraná.

O período áureo do café no Rio foi a década de 1860-1870, e Vassouras foi a capital do produto. Sobrepujou a cana-de-açúcar que dominava a lavoura.

Zaluar visitou a fazenda de Sousa Breves, ainda em território fluminense, e assim a descreve:
"A casa do sr. comendador José de Sousa Breves, na sua fazenda do Pinheiro, não é uma habitação vulgar de roça; é um palácio elegante, e seria mesmo suntuoso edifício em qualquer grande cidade. Situada sobre uma eminência, domina o vasto anfiteatro de montanhas que a circunda, e revê-se por assim dizer nas águas do orgulhoso Paraíba, que, poucas braças em frente, murmura seguindo o impulso de sua rápida correnteza. Duas pontes, que se encontram sobre uma ilha no meio do rio, dão passagem, mesmo em face da casa do sr. comendador Breves, de uma para outra margem. O aspecto que esta vista apre-senta é realmente pitoresco e faz um efeito admirável a quem contempla com olhos de artista."-
Junto à casa, um belo jardim subia pela colina próxima, e daí partiam duas amplas escadas de mármore que levavam a espaçosa varanda. Num grande salão, entre outras obras do arte, retratos de suas majestades, os imperadores do Brasil, pintados por Cromoeslston. Espelhos de Veneza, candelabros de prata etc, completam os valiosos adornos da casa.

A fazenda é realmente modelar. Possui boas estradas e o café é carregado em sólidos carros de boi e não por escravos, que estão empregados em outros serviços.

Mas não é só o comendador Sousa Breves que quer luxo e bom passadio. Taunay escreve:
"Vendo a prosperidade entrar-lhe pela porta, o lavrador fluminense tornou-se exigente. Quis luxo, melhor passadio, palacete na corte do Império e carruagem; era a aristocracia rural, em que numerosos titulares figuravam no nobiliário do novo império."

Lembra bem o grande historiador quando afirma que o café civilizava o segundo reinado.
Penetremos agora o território paulista e comecemos por conhecer o solo planaltino. O marechal Pedro Müller, em 1838, escreve:

"O território em geral é fértil e ameno: são por isso a maior parte dos habitantes agricultores; porém, a arte da agricultura tem feito pouco progresso; a extensão do terreno, proporcionadamente vasto para seus poucos habitantes, lhes presta meios de escolherem as melhores paragens, donde tirem proveito com manso trabalho. Os campos são destinados para criação de gados; as matas para a cultura, e tanto uns como outros ainda fazem seleção."
Diz que a queimada é um grande mal. E depois de se referir a algumas pequenas serras existentes, aos montes e aos campos naturais e às boas águas que os regam, faz referência ao terreno "para onde corre o rio Paraíba, e seus confluentes". Aqui, além dos "gêneros que plantam para alimento, como milho, feijão, arroz, e mandioca, fazem a força do seu comercio na cultura do café, assim também em aguardente, e tabaco, criação de porcos e gado vacum."3

O vale do Paraíba seria, em breve, a Canaã dos cafeicultores.

"A marcha progresiva da amplidão da lavoura cafeeira em São Paulo, onde tão notável preeminência viria a adquirir, no conjunto da universidade do produto, fêz-se de modo lento, por uma série de causas.

Sobretudo devido a duas circunstâncias de ordem primordial: a dificuldade dos transportes e o receio de grave fenômeno meteorológico: a geada.

Introduzira-se o cafeeiro em São Paulo pelas vias fluminenses do litoral e do planalto (…).
Em 1806 e 1807 haviam sido as exportações da capitania respectivamente 265 e 318 sacas (de sessenta quilos aproximadamente).

Provinha quase toda a exportação do litoral dos distritos de São Sebastião e Ubatuba, escrevia em 1814, o secretário da Capitania, Sousa Chichorro, ao governador conde de Palma.
Por esta época o gênero principal da exportação paulista era o açúcar que correspondera em 1797 a 20.108 sacas, baixara, em 1803, a quase dez mil sacas, para, em 1805, atingir a 23.500, caindo em 1807 a perto de 15.000, assim mesmo quarenta e tantas vezes mais do que o volume da exportação cafeeira."

Em 1835, São Paulo produzia, aproximadamente, 150.000 sacas de café, exportando para outros países, quase 96.500.

A grande força estava no Norte da Província, pois que esta produzia 72,48%, enquanto o litoral produzia 14,39% e o Oeste 13,13%.

No Oeste encontrava-se o grande espantalho: a geada.

Mas o espantalho seria vencido a partir de 1835.

"Depois de 1835, a cultura cafeeira começou a derivar-se para o chamado Oeste, onde vai estender-se rapidamente, favorecida pela terra-roxa e pelo clima adequado. Ainda em 1835-36 o município de Campinas, nessa fertilíssima região, produzia apenas 808 arrobas de café. Mas dentro em pouco, os fazendeiros, seduzidos pelos lucros da Lavoura cafeeira, a ela se dedicaram de preferência, abandonando a cana. De tal arte, já em 1850 a produção do referido município contava mais de 200.000 arrobas de café contra 160.000 de açúcar."4
Em 1854, o café já suplantava a cana-de-açúcar. Assim é que, para 2.168 fazendas daquele havia 667 desta, e o valor da produção do primeiro era de 10.461.173S000 enquanto a segunda era de 1.630.050S000 (açúcar e aguardente).

Na segunda metade do século passado, as vias férreas dariam à rubiácea tal expansão que, em breve, o Rio de Janeiro passaria para segundo plano e São Paulo dominaria, de modo absoluto, o mais notável setor agrícola do Brasil em todos os tempos. Em 1870 sua produção somava 3.342.251 arrobas. E o açúcar caiu tanto que, quase inacreditável, São Paulo passou a importá-lo de outras províncias.

"Quase no fim do regime imperial em 1884-85, quando a corrente imigratória principiou a tornar-se importante, a produção agrícola discrimina-se assim: Café, 9.779.151 arrobas; açúcar, 448.545 arrobas; aguardente, 160.000 hectolitros; algodão, 1.365.551 arrobas; fumo, 133.000 arrobas; vinho, 12.600 hectolitros; e quantidades não conhecidas de milho, feijão, arroz, batatas etc." (…).

O progresso agrícola de São Paulo, a contar das últimas décadas do século passado, foi enorme. "A imigração européia, duplicando a população, proporcionou braços suficientes para incrementar as culturas. As estradas de ferro, avançando pelas florestas e campos, deram transporte vantajoso e fácil à população crescente."5

O braço escravo foi, durante o período colonial e o império, o sustentáculo da nossa lavoura. Em São Paulo o braço era pouco c o transporte difícil. O braço era o escravo, que primeiro arroteou a terra. Depois veio o braço livre, o imigrante. A carga até ao evento da estrada de ferro foi transportada no lombo de burro. Na estatística agrícola do brigadeiro Machado, verificou-se a existência de 35.565 animais de condução. "Mas, contando-se os que existiam nas cidades e que formavam as grandes tropas dos tropeiros, o total de animais de carga devia exceder de 70.000."

Em 1868 foi inaugurada a São Paulo Railway Company, iniciativa do alemão Frederico Fomm, posteriormente encampada por Mauá, São Vicente e Monte Alegre, que cederam seus direitos à empresa britânica. Eram os primeiros 139 quilômetros que cobriam o solo paulista, indo de Santos a Jundiaí. Em 1872, a Companhia Paulista inaugurava a linha Jundiaí-Cam-pinas. Em 1873, a Ituana inicia o seu tráfego. Depois a Sorocabana, a Bragantina e, assim, São Paulo foi formando sua rede ferroviária por onde passou a circular a riqueza da lavoura, e principalmente, o café.

Antes da libertação dos escravos, São Paulo passou a receber imigrantes, que iam para as fazendas de café. Por esse motivo, a abolição não trouxe sérios problemas para São Paulo que pôde continuar o ritmo do seu trabalho, num crescente cada vez maior.

Ao mesmo tempo que São Paulo assumia a liderança da produção do café, o Brasil torna-se o seu maior exportador mundial, pois que de 1871 em diante forneceu ao mercado internacional 56,6% e no decênio de 1881-1890, 61,5%. Neste século manteve sempre margem superior a 50%, sendo que em 1921-1930, a percentagem chegou a 69,9%.

Tal como aconteceu no Rio de Janeiro, o café seria causa de grandes fortunas e, sustentáculo da economia brasileira, deu a São Paulo o grande impulso que o transformou no grande Estado da Federação, e sua Capital, numa das maiores cidades do mundo. A própria indústria nasceu do café.0
São Paulo, de cidade provinciana, se desdobrou em bairros que ostentam na riqueza de suas residências a magnificência da rubiácea. No Império o café fêz nobres e na República criou uma aristocracia. E na trilha do progresso, consolidou o velho espírito democrático das bandeiras, recebendo povos de todas as terras, irmanando-os na comunhão do amor, do trabalho, da inteligência e da cultura.
Imigração

"O desenvolvimento das nossas correntes imigratórias processou-se, como de sobra é sabido, muito lentamente. Portugal, país de pequena densidade territorial, pouco podia povoar sua imensa Colônia sul-americana. Sua população, no século XVI, quando muito, atingia uns quinze habitantes por quilômetro quadrado.
Daí, a imperiosidade de se recorrer ao tráfico escravo, para os reclamos de sua agricultura. Daí, a imposição que incorporou os milhões de africanos trazidos pelas navegações.

As tentativas de colonização branca foram quase nulas, como ninguém ignora. Duas houve mais sérias, como as que levaram a Santa Catarina e ao Rio Grande do Sul, alguns milhares de açorianos e madeirenses. Ou a que encaminhou para a Amazônia Setentrional os refugiados de Mazagão, recém-recuperada pelos marroquinos. A vinda de D. João VI, em 1808, para o seu vice-reinado americano, e, em 1815, reino ultramarino, provocaria a atenção dos dirigentes da monarquia para a necessidade do povoamento por colonos brancos.
Não podia Portugal, sempre despovoado, fornecer senão muito escassos elementos, sobretudo depois da terrível provação por que passou com as guerras napoleónicas.

Poucos ensaios ocorreram, portanto, utilizando reinóis. Cita-se, por exemplo, o caso de Casa Branca, em São Paulo, onde os colonos atirados irracionalmente, a verdadeiro ermo, não poderiam de todo prosperar, como era de esperar e de fato aconteceu. E, aliás, no Brasil o português se adaptou sempre mal às exigências da lavoura, como trabalhador do campo. A escravidão o afastava das culturas."7

A industrialização que se enunciava, embora pàlidamente, no Brasil, em princípios do século XIX e a Revolução Industrial que se sentia de uma forma marcante na Europa, levaram-nos a pensar em substituir o trabalho escravo pelo livre. Mas isto ficou no campo das pequenas iniciativas, pois a libertação dos escravos era ainda considerada remota, e a importação de produtos estrangeiros, devido à deficiência do nosso comércio interno, julgada satisfatória. Foi somente com a perspectiva mais firme da abolição, que se cuidou seriamente da imigração e isto no Sul.

Devido à visão de estadistas e particulares, e suas louváveis iniciativas, deu-se o povoamento da região Sul com imigrantes europeus, o que foi amplamente favorecido pelo clima, que em muito se assemelha às nações superpovoadas de então.

No Rio Grande do Sul, os primeiros colonos, no sentido de imigração orientada, foram os açorianos, que se localizaram no litoral.

No princípio do século XIX, porém, é que começou um movimento migratório mais considerável, com a chegada de alemães, italianos, eslavos e japoneses.8

A primeira colônia alemã no Rio Grande do Sul, foi fundada em 1824, denominou-se S. Leopoldo, e teve êxito. O mesmo não aconteceu com a do Rio Negro (Paraná) que, por ser de difícil acesso, fracassou. Em Santa Catarina organizou-se outra colônia com elementos dessa nacionalidade, a Pedro de Alcântara. E assim se estendeu a colonização alemã no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, até que em 1870, o governo prussiano proibiu a migração para o Brasil.

"Não mais podendo dispor do elemento alemão, resolveu o governo brasileiro solicitar a colaboração do italiano. Em 1870-71 aqui chegou a primeira leva que se localizou no planalto oriental, acima da primeira colônia alemã aqui fundada. Optando pelas terras da mata, próximas aos afluentes do rio Taquari, cuja altitude variava de 600-800 metros, fundam Caxias do Sul, Garibaldi e Bento Gonçalves. A videira aí cultivada se constituiu no principal fator do progresso, que logo se verificou."0
Concomitantemente vieram para São Paulo colonos italianos, na sua grande maioria procedentes do Sul da Itália, região de agricultores.
Como dissemos, a abolição da escravatura que se anunciava cada vez mais nítida, fêz com que os fazendeiros paulistas, com notável descortino, cuidassem de substituir o braço escravo pelo livre.
"Daí a corrente imigratória, sobretudo italiana, cada vez mais intensa, que encaminharam para o porto de Santos. E o empenho em localizar estes imigrantes, radicando-os nas lavouras cafeeiras. Era, aliás, antiga esta política, datava de decênios, inspirada pela clara inteligência e espírito filantrópico do senador Vergueiro, cujo espírito nobilíssimo aborreciam os processos da instituição servil."10

"Em São Paulo a influência de elementos estrangeiros na composição da população pode ser avaliado pela estatística dos imigrantes entrados do Estado durante o período de 1827 a 1921: italianos — 872.705; espanhóis — 332.072; portugueses — 295.802; austríacos — 29.019; diversos — 364.451."11

A partir de 1908, começaram a chegar imigrantes japoneses, tendo o maior número desembarcado entre 1920-1934. Localizaram-se em São Paulo e na Amazônia.

Em um século, o Brasil recebeu, aproximadamente, 5.000.000 de imigrantes, enquanto a Argentina recebeu 7.000.000 e os Estados Unidos 35.000.000, no mesmo período.

A atual legislação brasileira fixou a entrada anual de imigrantes até dois por centro sobre o número dos respectivos nacionais que entraram no Brasil nos últimos 50 anos da promulgação do decreto, que é de 1934, ou seja, de 1884 até aquele ano.

Foi criada uma exceção para os portugueses, que ficaram isentos de qualquer restrição numerária, pois que obedecida aquela porcentagem, o limite à imigração lusa seria de 22.991 pessoas.12
ENTRADA DE IMIGRANTES NO BRASIL NO PERÍODO DE 1819-1959
Portugueses ………………….. 1.718.541 31,04%
Italianos ……………………… 1.614.988 29,17%
Espanhóis ……………………. 694.140 12,54%
Alemães ……………………… 257.114 4,64%
Japoneses …………………….. 222.893 4,03%
Russos ……………………….. 125.688 2,27%
Diversos (com menos de 125.000 cada). 902.671 16,31% Total ………………………… 5.536.035 100,00%
ESTRANGEIROS E BRASILEIROS NATURALIZADOS EXISTENTES NO BRASIL EM 1950
Portugueses ……………………. 336.856 27,7%
Italianos ………………………. 242.337 20%
Espanhóis ……………………… 131.608 10,8%
Japoneses ……………………… 129.192 10,6%
Poloneses ……………………… 48.806 4%
Russos ……………………….. 44.669 4%
Diversas nacionalidades ………….. 148.771 16%
Total …………………………. 1.214.184 100%
Elaboramos os quadros acima com dados colhidos no livro Imigração, Urbanização e Industrialização, de Manuel Diégues Júnior.

AFRICANOS ENTRADOS NO BRASIL
Durante 350 anos, mais ou menos, entraram no Brasil 3.600.000 africanos, assim distribuídos:
Século XVI ………………….. 100.000
XVII ………………….. 600.000
XVIII …………………. 1.300.000
" XIX …………………. 1 600 000
Dados da obra Subsídios para a História do Tráfico Africano no Brasil, de Afonso E. de Taunay.

CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA 1819 A 1970
1819 (conforme Memória sobre a Igreja no Brasil) .. 4.396.000
1920 ( " ) ……………………… 30.635.605
1950 ( *’ ) …………………….. 51.944.397
1965 (estimativa do IBGE) ………………… 82.222.000
1970 (estimativa) ………………………… 94.000.000
Mário da Veiga Cabral dá-nos o limite máximo, anual, de entrada de imigrantes, por nacionalidade: espanhóis — 11.562; italianos — 27.475; japoneses — 3.480; alemães — 2.318; russos — 2.146; e poloneses — 2.035.

E esclarece: "Quanto às quotas dessas três últimas nacionalidades, bem como de todas as outras que não atingem 3.000 pessoas (como sírios, turcos, lituanos etc.) poderá o Conselho de Imigração e Colonização sempre que achar conveniente, elevá-la até esse número."13
De conformidade com a legislação, 80% dos imigrantes de cada nacionalidade deve ser encaminhado para a lavoura, onde deve prestar serviço, pelo menos, durante os quatro primeiros anos.

Esta disposição é sumamente importante e precisa ser rigorosamente aplicada, pois que o excesso de habitantes nas grandes cidades e o despovoamento do interior, ou melhor, das regiões agrícolas, têm trazido sérios problemas ao país. Aumentam as "bocas para comer e diminuem os braços para plantar."

NOTAS
1 — A Propagação da Cultura Cafeeiro, Edição do Departamento Nacional do Café, 1934.
2 — Peregrinação pela Província de São Paulo, São Paulo, 1945, 2? edição.
3 — Ensaio d’um Quadro Estatístico da Província de São Paulo, (reedição literal), São Paulo, 1923.
4 — Paulo R. Pestana, A Expansão Econômica do Estado de São Paulo num Século (1822-1922), Edição da Secretaria da Agricultura de São Paulo, 1923.
5 — Paulo R. Pestana, ob. cit
6 — Sebastião Sampaio, Os Congressos Mundiais do Café, Edição do A. fora de comércio.
7 — Afonso de E. Taunay, Pequena História do Café do Brasil, D. N. C. 1945.
8 — Geografia do Brasil (Roteiro de uma Viagem), organizado por Antônio Guerra e Eloísa de Carvalho. I.B.G.E., Rio de Janeiro, 1960.
9 — Idem.
10 — Afonso de E. Taunay, idem.
11 — Paulo R. Pestana, ob. cit.
12 — Resolução n? 34, de 22 de abril de 1939, do Conselho de Imigração e Colonização.

Fonte:http://www.consciencia.org/o-planalto-desenvolvimento-da-economia-cafeeira-e-suas-consequencias.a-aristocracia-do-cafe.imigracao

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