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ENTREVISTA EXCLUSIVA: Geslaney Brito
ENTREVISTA EXCLUSIVA:
Geslaney Brito - música, política e as
raízes ancestrais profundas de um Brasil em luta
"Fernanda Torres, ao receber o prêmio "Globo de Ouro" de melhor atriz no filme "Ainda estou aqui", fez uma observação crucial sobre isso: precisamos consumir mais arte brasileira. Ela foi perspicaz, apontando que, apesar de todos os ataques e da indústria tentando empurrar a arte externa, a arte brasileira resiste."
*por Herberson Sonkha
No âmago da complexa teia cultural, histórica e política do Brasil, encontra-se Geslaney Brito, um talentoso musicista, compositor e geógrafo natural de Vitória da Conquista, Bahia. Sua obra vai além das notas musicais: é um convite à reflexão sobre os desafios do Brasil contemporâneo, suas feridas históricas e as possibilidades de emancipação. Nesta entrevista, acolhida via WhatsApp pelo editor do Blog do Sonkha, Geslaney Brito cita um dos mais respeitados pesquisadores brasileiros sobre a extrema-direita no Brasil, o historiador e escritor João Cezar de Castro Rocha em entrevista recente a Revista Carta Capital e compartilha suas ideias sobre a política nacional, o papel da música como instrumento de resistência e os caminhos para superar os traumas do passado recente do país.
BS – Herberson Sonkha: Geslaney, você mencionou recentemente que a anistia concedida aos militares de 1964 teve consequências graves para o Brasil atual. Poderia explicar essa visão?
Geslaney Brito: Certamente. A anistia, que deveria ser um marco de reconciliação, acabou perpetuando uma lógica de impunidade. Ela não apenas perdoou os crimes cometidos durante a ditadura militar, mas também permitiu que os ideais autoritários continuassem vivos em nossas instituições. Isso é evidente nas estruturas de poder que ainda favorecem práticas antidemocráticas. Esse pacto de silêncio, selado por acordos políticos, foi uma escolha perigosa. Não enfrentar esse passado abriu espaço para que os golpistas voltassem mais organizados e violentos, como vimos nos últimos anos.
BS - Herberson Sonkha: Você acredita que o golpe de 1964 ainda não terminou?
Geslaney Brito: Não. Ele continua em andamento, embora em formas adaptadas aos tempos atuais. Muitos pensam que 1964 foi um evento isolado, mas, na verdade, suas raízes começaram antes, em 1961, com articulações que pavimentaram o caminho para a ruptura institucional. Segundo afirma em entrevista recente (23/12/2024) do maior pesquisador sobre a extrema direita no Brasil, o historiador e escritor João Cezar de Castro Rocha para o canal de CartaCapital no YouTube. O golpe não foi apenas militar; ele foi financiado e articulado por elites econômicas e setores internacionais, principalmente os Estados Unidos, interessados em manter o Brasil submisso aos seus interesses. Essa submissão ainda está presente, tanto na política quanto no comportamento da sociedade brasileira.
BS - Herberson Sonkha: Você mencionou o "comportamento subserviente" dos brasileiros. Pode aprofundar essa ideia?
Geslaney Brito: Esse comportamento é um reflexo de nossa herança colonial. Fomos condicionados, ao longo de séculos, a aceitar um papel de dependência e obediência a potências estrangeiras. Não é apenas uma questão de economia ou política; é uma mentalidade que permeia nossas relações sociais. Enquanto países africanos avançam na descolonização, enfrentando seus desafios com coragem, o Brasil ainda se rende ao imperialismo, seja pela manutenção de elites coniventes ou pela incapacidade de romper com a lógica capitalista excludente.
BS - Herberson Sonkha: Você também apontou a conivência de parte da classe artística com essas estruturas. Como vê essa questão?
Geslaney Brito: É um tema delicado, mas necessário. Em Vitória da Conquista, por exemplo, vejo muitos artistas que, mesmo reconhecendo os impactos negativos do capitalismo, acabam reproduzindo discursos e práticas alinhados aos interesses imperialistas. Isso se dá, em parte, por falta de consciência política, mas também por medo de romper com o status quo. Alguns artistas preferem o conforto de uma posição neutra, que na prática significa omissão diante das injustiças.
BS - Herberson Sonkha: E como a música pode contribuir para essa conscientização?
Geslaney Brito: A música é uma ferramenta poderosa de resistência e transformação. Ela tem o poder de tocar as emoções e despertar consciências. Segundo sua perspectiva (do entrevistador) a nossa obra busca fazer isso: trazer à tona questões sociais e políticas, mas de uma forma que envolva o ouvinte emocionalmente. A música não é só entretenimento; é também um ato político. E, em tempos como os nossos, cada acorde, cada verso, pode ser uma semente de mudança.
BS - Herberson Sonkha: Falando em mudança, como você vê o futuro do Brasil diante dos desafios atuais?
Geslaney Brito: Eu sou otimista, mas sei que será uma jornada longa. Precisamos romper com a lógica da impunidade e responsabilizar os responsáveis pelos golpes. Isso inclui a cúpula de militares, empresários, religiosos e gente do judiciário, sejam eles de 1964 ou dos dias atuais. A luta também passa por reeducar nossa sociedade, fortalecer nossa democracia e resgatar nossa soberania. E, claro, a arte tem um papel crucial nesse processo. Ela é capaz de iluminar caminhos e unir forças.
BS - Herberson Sonkha: Geslaney, você tocou em um ponto crucial na sua fala: a apropriação da cultura e da religião pelo poder oligárquico. Como você enxerga essa relação?
Geslaney Brito: Eu acredito que a cultura e a religião sempre foram instrumentos de poder. O Estado, com sua estrutura oligárquica, tem se apropriado dessas duas categorias para manipular a população, de forma a mantê-la alienada. A religião, que deveria ser um espaço de espiritualidade, deve ser respeitada, mas sem se misturar com o Estado. A cultura, por outro lado, sempre foi invisibilizada. Quando falamos de arte no Brasil, não estamos falando apenas de um fenômeno estético, mas de uma ferramenta de resistência. Infelizmente, o que vemos é a tentativa de reduzir essas manifestações a algo superficial, algo que agrada aos interesses do mercado e do poder dominante.
BS - Herberson Sonkha: Como o poder político e o capitalismo afetam a produção cultural no Brasil?
Geslaney Brito: O capitalismo no Brasil tem atuado para desestruturar nossas bases culturais. O exemplo mais claro disso é a música. O samba, por exemplo, teve uma trajetória de invisibilização. O samba de roda, originalmente da Bahia, só foi reconhecido como patrimônio cultural brasileiro há cerca de 20 anos, mas ainda assim, ele não é amplamente consumido pela própria população baiana. Esse processo de apagamento da cultura brasileira é uma estratégia do Estado burguês, que busca distanciar a população de suas raízes e empurrar um consumo massivo de arte industrializada. Hoje, a arte é produzida em larga escala, de forma rápida e sem a profundidade necessária para provocar reflexões reais. E isso não se limita à música. O cinema, a dança e outras linguagens artísticas também sofrem esse processo de desvalorização.
BS - Herberson Sonkha: Você mencionou o golpe de 2016 e como ele afetou a produção artística no Brasil. Pode explicar melhor essa relação?
Geslaney Brito: O golpe de 2016 é um marco nesse processo de desconstrução das nossas bases culturais. Desde então, vimos uma intensificação do ataque a artistas que têm uma relevância histórica, como Chico Buarque e Gilberto Gil. O que está em jogo não é a pessoa desses artistas, mas a significância de suas obras para a construção da nossa identidade cultural. Esses artistas representam uma resistência ao sistema, e é isso que o poder não tolera. Assim como atacam Paulo Freire, cuja obra é reconhecida mundialmente, também atacam nossa cultura e educação. A desvalorização da cultura popular é um reflexo desse processo de alienação em massa, e a classe artística precisa se unir para resistir a isso.
BS - Herberson Sonkha: Você trouxe à tona um ponto importante, que é a relação entre a mídia, a indústria fonográfica e a produção cultural. Como a Globo tem contribuído para essa desvalorização da música brasileira?
Geslaney Brito: A Globo tem um papel central na manipulação do gosto popular. A emissora e outros meios de comunicação têm sido protagonistas na promoção de certos gêneros musicais, como o sertanejo, que nada tem a ver com as raízes culturais do Brasil. Eles investiram pesado na construção dessa identidade, alinhada com os interesses do agronegócio e das forças políticas conservadoras. Isso é uma estratégia de dominação cultural, que afasta a população de suas verdadeiras origens culturais e as condiciona a consumir produtos de arte industrializada. A crítica especializada, sinaliza que o sertanejo que vemos na mídia não tem absolutamente nada de autêntico, mas sim um reflexo de uma indústria musical que visa a massificação do consumo, sem qualquer compromisso com a arte genuína. Por regra, abordo que o sertanejo é uma imposição do mercado externo, sendo mais um dos 'produtos' que fazem parte de uma lógica de sobreposição, ao invés de refletir a relação de troca saudável que deveria existir dentro da diversidade cultural. Destaco que a diversidade é importante e enriquece qualquer cultura. Nesse ponto, Ariano Suassuna aponta para o 'colorido ibérico' presente na cultura brasileira.
BS - Herberson Sonkha: Falando em autenticidade, você citou a importância de consumir mais arte produzida no Brasil. Como você vê a produção artística nacional e sua resistência frente a esse cenário?
Geslaney Brito: Fernanda Torres, ao receber o prêmio "Globo de Ouro" de melhor atriz no filme "Ainda estou aqui", fez uma observação crucial sobre isso: precisamos consumir mais arte brasileira. Ela foi perspicaz, apontando que, apesar de todos os ataques e da indústria tentando empurrar a arte externa, a arte brasileira resiste. A produção nacional, feita com carinho e respeito pelas nossas raízes, ainda tem capacidade de se manter ao longo do tempo. Ao contrário da arte produzida para consumo rápido, que perde sua essência, a arte genuína consegue sobreviver, porque ela tem um propósito mais profundo. Precisamos dar mais visibilidade a essa arte, apoiar os artistas que estão na luta pela preservação da nossa cultura e, claro, garantir que nossas matrizes culturais não sejam mais diluídas por interesses estrangeiros.
BS - Herberson Sonkha: Geslaney, você mencionou anteriormente a influência de figuras como Chico Buarque e Djavan no cenário musical brasileiro. De que maneira você percebe o impacto de artistas como eles frente a um contexto de ataque sistemático à cultura brasileira?
Geslaney Brito: Interessante, eu estava ouvindo agora "Alumbramento" de 1980, de Djavan, e percebi a participação de Chico Buarque no CD dele. Isso me fez refletir sobre o que está acontecendo na sociedade brasileira atualmente. Os ataques à cultura, como os que envolvem artistas de renome como Chico Buarque, são parte de uma estratégia de desconstrução das nossas matrizes culturais. Não se trata apenas de deslegitimar uma obra, mas de tentar apagar uma história. Essa tentativa de desvalorização se alinha com a forma como o capitalismo globaliza e industrializa a arte, reduzindo-a a um produto de consumo rápido. O que vejo hoje, por exemplo, é uma verdadeira guerra contra a arte e a educação brasileira, como aconteceu com a Lei Rouanet, que foi atacada por não atender aos interesses de todos, mas, na verdade, porque representava uma forma de democratizar o acesso à cultura. Isso é parte de um método, um processo de desestruturação daquilo que temos de mais importante: nossa identidade cultural e a educação como ferramenta de liberdade e emancipação.
BS - Herberson Sonkha: E essa ideia de um ataque coordenado à educação, à cultura e às religiões, especialmente as de matriz africana, como você observa isso?
Geslaney Brito: Esse ataque é intencional. Ele busca desestabilizar as fundações de uma sociedade democrática e plural. A educação é uma das principais armas nesse processo. Autores e pensadores que defendem a educação como um espaço de liberdade e autonomia, como Paulo Freire, são constantemente atacados. Da mesma forma, a cultura também sofre um cerco, especialmente quando falamos das religiões de matriz africana, que representam uma resistência histórica contra o racismo e o colonialismo. Essas religiões, como o Candomblé e a Umbanda, são espaços que acolhem a todos, sem discriminação, e isso é visto como uma ameaça pelo poder hegemônico. Eles sabem que, ao atacar essas religiões, estão atacando a estrutura que sustenta a resistência negra e indígena no Brasil. Assim como a cultura, a religião não deve se submeter a relações de poder e consumo, mas isso é algo que as elites não compreendem ou não querem entender. Elas preferem uma religião que sirva aos seus interesses, ao invés de uma religião que pregue a libertação e a igualdade.
BS - Herberson Sonkha: Você tocou em um ponto crucial: a cultura e a religião se tornaram alvos de um ataque sistemático que parece ter um objetivo claro. Como você enxerga o papel do Estado nesse processo?
Geslaney Brito: O Estado, em sua forma mais conservadora e oligárquica, tem se aliado a esse projeto de destruição das nossas raízes culturais. O que vemos hoje no Brasil é uma crescente adesão ao modelo capitalista global, que se manifesta em todas as esferas da sociedade, incluindo a cultura. Quando atacam a Lei Rouanet, estão atacando a tentativa de democratizar o acesso à cultura. Da mesma forma, o sistema educacional brasileiro, que deveria ser um instrumento de libertação e transformação social, é constantemente atacado, como no caso do ENEM. O que está em jogo é a possibilidade de acesso ao conhecimento, à arte e à educação para as classes populares. Isso é um método, um processo orquestrado para manter a desigualdade e o status quo. Os grandes grupos de poder sabem que, quando enfraquecem a cultura e a educação, enfraquecem as bases da resistência social. O capitalismo precisa dessa destruição para se manter forte.
BS - Herberson Sonkha: Diante dessa conjuntura, o que você considera ser a principal forma de resistência?
Geslaney Brito: A resistência passa, primeiramente, pelo fortalecimento da nossa identidade cultural. Precisamos retomar o conhecimento sobre nossas matrizes culturais, como o samba de roda, que só foi reconhecido como patrimônio cultural recente, mas que ainda é marginalizado até mesmo dentro da Bahia, nossa terra natal. O Estado burguês trabalhou arduamente para nos desconectar de nossas raízes, mas isso não significa que estamos derrotados. A arte, a educação e a cultura são nossas principais ferramentas de resistência. Precisamos consumir mais a arte produzida no Brasil, como bem apontou a atriz Fernanda Torres.
BS - Herberson Sonkha: Para finalizar, qual mensagem você deixaria para os leitores que acompanham sua obra?
Geslaney Brito: Nunca subestimem o poder da arte e da política como instrumentos de transformação. Vivemos tempos difíceis, mas a história nos ensina que as grandes mudanças nascem da resistência e da união. É preciso ouvir, questionar e agir. Que possamos todos, juntos, construir um Brasil mais justo, soberano e democrático.
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Geslaney Brito é um pensador inquieto e comprometido com a transformação social. Sua obra transcende a música, oferecendo ao público uma reflexão profunda sobre o Brasil, suas raízes étnica-culturais herdadas dos ancestrais da África e dos Povos Originários (denominado de indígenas pelos colonizadores) e suas possibilidades de emancipação.
*Publicado originalmente pelo editor-chefe do Blog do Sonkha, entrevista e edição realizada por Herberson Sonkha.
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