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Larissa Caldeira: Entre Acordes & Teorias
Foto: Filipe Nascimento |
A jornalista e cantora de Vitória da Conquista revela sua jornada musical, marcada pela influência familiar e uma carreira de quase duas décadas.
"Larissa Caldeira, jornalista por formação e profissão, vem construindo uma sólida trajetória musical ao longo de quase duas décadas. Além de se destacar como artista, a baiana tem se inserido ativamente no cenário intelectual de Vitória da Conquista e da Bahia. "Aos 12, compus minhas primeiras músicas. Pessoalmente, a influência dos meus pais, tios e avó materna foi decisiva para que eu me tornasse artista", revela Larissa, que, desde cedo, se viu envolvida com a música, e a partir desse legado familiar, pôde consolidar sua carreira."
*Edição: Herberson Sonkha | Blog do Sonkha
Em uma conversa reveladora com o editor Herberson Sonkha, a cantora e compositora baiana Larissa Caldeira reflete sobre sua trajetória de 15 anos na música, o impacto da pandemia na sua produção artística e a força de sua conexão com Vitória da Conquista. Explorando as influências de sua formação intelectual, que dialoga com o marxismo e os Estudos Culturais, Larissa nos guia por uma análise crítica da crise estética e política no Brasil e no mundo. Em uma época de crescente controle do mercado sobre a produção artística, ela se posiciona como uma voz dissidente, defendendo a arte como um ato de ruptura criativa e resistência. Não perca a entrevista exclusiva que examina a arte como política, a luta por equidade e a potência da arte baiana no cenário contemporâneo.
Herberson Sonkha: Como você, enquanto musicista e compositora, enxerga sua trajetória artística no contexto de Vitória da Conquista e do Brasil contemporâneo?
Larissa Caldeira: Como cantora e compositora baiana, atuando há mais de 15 anos na música, acredito que minha trajetória artística tem sido permeada por altos e baixos, sobretudo pelas dificuldades em gravar e fazer minha música alcançar um público maior. Contudo, no contexto contemporâneo, algumas possibilidades se ampliaram para nós, artistas. Hoje, com a possibilidade de gravar em casa, utilizando um equipamento relativamente acessível, as barreiras se tornaram menores. Durante a pandemia, enxerguei essa oportunidade e gravei meu EP Bahia Interior entre o meu home studio e o de Zezinho Reis, meu amigo de Salvador.
Esse trabalho trouxe bons frutos no cenário atual, e não estou me referindo apenas às audições nas plataformas de streaming, pois considero isso algo secundário. Minhas músicas estão disponíveis nas plataformas, mas não invisto pesadamente nisso. Ao longo da minha trajetória, sempre priorizei fazer shows e mobilizar as pessoas culturalmente, atuando como professora de música, artista e ativista cultural. Dessa forma, Bahia Interior me possibilitou acessar espaços antes distantes de mim, como o Teatro Gamboa, e, em breve, o Espaço Xisto e o Cine Teatro 2 de Julho. Além disso, obtive maior visibilidade na mídia, tanto digital quanto tradicional, e conquistei aprovações em editais importantes, como a Lei Paulo Gustavo e o PNAB 2024.
Destaco tudo isso para ilustrar que, embora o mercado continue a ditar suas regras e estabelecer seus próprios regimes de verdade, existe hoje um processo mais acessível e democrático em curso. Com a internet, um microfone, um computador e uma placa de áudio, é possível fazer música além dos ditames mercadológicos e compartilhá-la com as pessoas, seja por meio de plataformas de streaming ou participando de editais.
Minha relação com Vitória da Conquista é cada vez mais potente e pujante. Meu projeto Bahia Interior reflete minhas raízes e influências, que transitam entre a música produzida aqui e na capital, onde morei por sete anos. De volta a Conquista, completando agora três anos de retorno, venho me conectando com os artistas e produtores da cidade. Atualmente, faço parte da comissão do coletivo Movimenta Cultura Conquista, que busca dialogar com os poderes Executivo e Legislativo a partir de uma Carta-Proposta.
Acredito que, dentro do contexto local, minha carreira segue em contínua evolução, traduzindo meu amor pela minha terra e compartilhando isso com meus conterrâneos, que têm recebido essa proposta musical de forma muito positiva.
Herberson Sonkha: Quais influências pessoais, sociais ou históricas moldaram sua concepção artística e filosófica?
Larissa Caldeira: Sou uma artista e intelectual desde sempre. Aos 20 anos, já lia Nietzsche e tantos outros. Mas foi na Universidade, durante a graduação, o mestrado (sobre Tom Zé) e o doutorado, que o mundo se abriu para mim, a partir de novas leituras e concepções teóricas e filosóficas: marxismo, estruturalismo, capitalismo, pós-estruturalismo e, na base da minha formação, os Estudos Culturais.
Tornei-me mestra pela UFBA, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, e finalizo o doutorado em abril de 2025. Cursei Comunicação na UESB e, atualmente, estou cursando Licenciatura em Música na UniCesumar. Acredito que a escolha pela Comunicação foi para atender às pressões sociais, e, hoje, também faz parte de quem sou como jornalista de formação e profissão, afinal, as contas chegam. Mas a música é algo mais profundo; ela molda o meu mundo.
Cresci em uma casa musical, rodeada de músicos no fundo do quintal, tocando e cantando. Para mim, isso seria inevitável. Aos 10 anos, vislumbrei meus primeiros acordes, e, aos 12, compus minhas primeiras músicas. Pessoalmente, a influência dos meus pais, tios e avó materna foi decisiva para que eu me tornasse artista. Com eles, aprendi sobre os grandes nomes da MPB (Caetano, Bethânia, Gal e Gil), os ícones do rádio (Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, Trio de Ouro, Orlando Silva, etc.) e os mestres do samba e da canção, como Noel Rosa (tenho a coletânea de discos que minha mãe me deu de aniversário), Cartola e Nelson Gonçalves.
Com meus tios, especialmente os mais novos, fui apresentada ao Rock BR da época — Paralamas, Engenheiros, Cazuza, Legião, entre outros —, além de Zé Ramalho, Fagner, Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Especificamente com meu pai, fui influenciada por Elomar, Xangai, Geslaney, Gutemberg, Evandro e outros.
Hoje, também sou profundamente influenciada e tocada pela música dos meus contemporâneos: Coral, Guigga, Benjamin Existe, Marcos Marinho, Pipa, Teu Soares, Marx Eduardo, Zezinho Reis, entre outros que, por falha da memória, não consigo citar agora.
Acredito muito na transversalidade da História, que molda os tempos e os espaços possíveis, mas também deixa lacunas, já que não é possível englobar o todo. Tenho pensado bastante sobre as figuras de historicidades, especialmente na minha tese de doutorado, que aborda os Malditos da MPB. Vejo como a História e a sociedade se entrelaçam em partilhas do sensível e de sensibilidades, o que pode gerar conflitos e disputas de ordem discursiva.
Um exemplo disso é o que ocorre hoje com as ações da extrema-direita, que sabe se utilizar da fé, da religiosidade e dos discursos para se legitimar enquanto regime de verdade diante da sociedade, ainda que isso venha embebido em atrocidades estéticas, políticas, sociais e discursivas.
O sensível está entre o visível e o invisível, entre o dizível e o não dizível, como afirma Jacques Rancière, filósofo francês que tem sido fundamental para o meu entendimento de arte, política e cultura.
Herberson Sonkha: De que forma você concebe, pensa e sente as relações sociais na sociedade contemporânea?
Larissa Caldeira: Acredito que vivemos um momento de grande tensão social e democrática. Sinto que as pessoas estão cada vez mais niilistas ou, quando não, imersas em uma bolha onde a ignorância é tomada como genialidade e a brutalidade como normalidade. Para além de uma crise política, enfrentamos uma crise estética: cada vez mais, as aparências tornam-se o grande engano contemporâneo. Os exageros e os mais variados filtros demonstram que todos querem parecer bem, enquanto vivemos na sociedade mais depressiva e ansiosa de todos os tempos.
No entanto, a questão estética, para mim, vai muito além dos corpos ou do binômio ser-parecer. O estético é uma forma de pensar o mundo, baseada no paradoxo da inadequação — novamente, pensando com Rancière —, sendo, portanto, um espaço de compartilhamento entre autonomia e heteronomia. Ademais, trata-se de uma defesa da ação criativa diante de um mundo que busca se padronizar. Por isso, a estética é política: ela promove a ruptura com as superficialidades contemporâneas. E se faz, assim, democrática, pois estética e política andam juntas. Como afirma Rancière, a política tem uma dimensão estética.
Se prestarmos bastante atenção, veremos que nossa crise política reflete a crise estética, e vice-versa. É rudimentar e insólito o contexto social em que estamos imersos.
Herberson Sonkha: Na sua visão, como a arte contemporânea dialoga com a história do pensamento humano e reflete as contradições do nosso tempo?
Larissa Caldeira: Se a política é essencialmente estética, esta se manifesta como ruptura por meio da ação criativa. A arte contemporânea que dialoga com a história do pensamento humano é aquela que, sem dúvida, questiona as próprias noções de pensamento e de humano, bem como a de história. Além disso, busca dialogar com as historicidades e os processos humanos, a partir da observação da realidade posta.
Nomes como Emicida e Caetano Veloso fundamentam sua arte no mundo sensível, que só pode ser democrático ao incentivar a multiplicidade das manifestações sociais, políticas e culturais de um país diverso, não padronizado, não higienista, não rude.
Mas seria possível falar em arte contemporânea sem abordar as padronizações sonoras e musicais presentes em certos gêneros musicais? Não sei afirmar com certeza, mas acredito que parte da crise estética mencionada anteriormente também passa por esse aspecto.
Herberson Sonkha: A arte crítica ainda encontra espaço para provocar reflexão e transformação em uma sociedade tão fragmentada?
Larissa caldeira: Não com toda a certeza, mas sim! Em meio ao caos, existe o kaos, apenas, para lembrar de Jorge Mautner. Pois, dentro dos fragmentos, existem Macondos e Bacuraus, Lungas e João Grilos. Porque, diante da pobreza estética, ainda existem as vozes dissidentes que, embora possam não fazer a diferença, utilizam-se da différance.
Pensando com Derrida, a diferença deve ser mantida aquém e além de qualquer lugar, para não gerar falsas ideologias ou centros. Por isso, dentro dos fragmentos, existem os que fazem a différance, uma rasura na palavra francesa différence, para expressar que é no jogo de diferenças, de diferencialidade, de puro diferir, que Lungas, João Grilos, Macondos e Bacuraus (sobre)vivem.
Herberson Sonkha: Como a economia capitalista interfere na produção artística, especialmente no Brasil, onde o mercado cultural frequentemente visa o lucro em detrimento da profundidade e inovação?
Larissa Caldeira: Acredito que a produção artística há muito tempo vem sendo ditada pelo mercado capitalista, o que entendo como regime de verdade, estabelecido pela indústria da música, pela crítica musical especializada e legitimada (grandes jornais, revistas, rádios e televisão), bem como pelos empresários e produtores de casas de shows, que visam, acima de tudo, o lucro em detrimento de produções artísticas mais profundas e inovadoras.
Hoje em dia, percebe-se uma padronização sonora, estética e musical, na qual as produções são bastante uniformizadas. Um mesmo artista do mercado produz um tipo de música que, além de atender às demandas do lucro, utiliza fórmulas sonoras e ritmos musicais que se repetem ao longo de suas composições, fazendo parecer que é sempre a mesma música, com uma letra diferente. Isso acontece também de artista para artista, no pagode, no arrocha, no axé e na chamada Nova MPB. Até mesmo o canto se torna padronizado: quando não se utiliza do drive vocal e dos melismas, usa-se uma voz suave, leve e doce, colocando à margem vozes mais potentes e interpretações mais viscerais.
Obviamente, para toda regra existe exceção no processo. Artistas como Liniker, Ava Rocha e Anelis Assumpção disputam esses espaços, ainda que se utilizem de algumas estéticas consideradas aceitáveis pelo mercado. Todavia, esses artistas não se podem chamar de populares, ainda se encontram em um nicho de mercado. Já o capitalismo, visando o lucro, quer ganhar em todas as instâncias, e assim estabelece nichos onde possa atuar. Existe o chamado mercado independente, onde a margem de lucro pode até ser menor do que o mercado hegemônico, mas, ainda assim, se tenta inseri-lo, em alguma medida, dentro de uma lógica do capital.
Herberson Sonkha: A cultura de massas ainda é capaz de acolher manifestações artísticas mais críticas ou experimentais?
Larissa Caldeira: Tenho uma grande questão com o que se é chamado de cultura de massas, tenho minhas dúvidas se existe, de fato, uma massa homogênea. Mas pensando nesse sentido, as massas apesar de se inserirem em uma lógica mercadológica menos crítica e mais consumível culturalmente, ainda assim pode haver dissidências, ou os fragmentos dessas massas enquanto escopo social e cultural. Não à toa, “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, vem sendo popular no Brasil, uma obra crítica que já foi assistida por milhares de brasileiros e brasileiras. Todavia, a arte experimental ainda percorre um caminho mais duro e longo, em uma sociedade fragmentada como a brasileira, artistas que vão por essa vertente, se encontram ainda mais à margem. Embora, eu acredito que, os fragmentos em sua heterogeneidade possam sim apreciar esse tipo de partilha do sensível.
Herberson Sonkha: Na sua opinião, de que forma o fundamentalismo cristão, cada vez mais hegemônico, tem influenciado ou censurado a produção de arte crítica no Brasil?
Larissa Caldeira: Todavia, isso não se restringe às favelas. Nas “zonas sul”, por puro domínio e mau-caratismo estético-político, os mais abastados se utilizam do fundamentalismo cristão, não para pregar os ensinamentos de Cristo, mas sim para dominar e submeter as demais pessoas ao seu julgo de poder e discursivo, como exemplo o que a extrema-direita está fazendo no Brasil, via redes sociais, fake news e discursos deploráveis.
Não acredito em uma censura ou influência direta na produção artística como um todo, mas, em termos pontuais, temos a recente polêmica com a cantora Cláudia Leitte, evangélica que canta Axé Music e tem um público majoritariamente LGBTQIAP+, e que trocou o nome “Iemanjá” por “Yeshua” (Jesus em hebraico). A Axé Music tem por base os ritmos afro-baianos e as religiões de matriz africana; a palavra “axé” é uma saudação iorubá, trazida ao Brasil pelos povos vindos da Nigéria, no período da escravização de pessoas.
Sendo assim, o fundamentalismo cristão censura boa parte dos fiéis, estabelecendo com a produção artística e crítica uma disputa discursiva que ainda se encontra dentro de um contexto democrático. Pode-se dizer que, diante dessas disputas discursivas, a arte resiste.
Herberson Sonkha: Como você vê a relação entre arte e espiritualidade em um país marcado pela polarização religiosa?
Larissa Caldeira: Entendo que religião e espiritualidade são coisas distintas; elas podem, sim, convergir, mas ser espiritualizado não necessariamente tem a ver com ser religioso. A religiosidade e a religião estabelecem regras, normas e segmentações, por isso podem vir a aprisionar. Mas a espiritualidade pode ser libertária e libertadora, podendo ser sentida e entendida pelo simples ato de apreciar um pôr do sol. Como sou baiana, a minha crença no indizível é bastante múltipla, devido ao imerso sincretismo religioso entre a cristandade e os orixás, e isso pode ser visto e ouvido na arte que produzo.
Porém, no Brasil, de maneira geral, e principalmente nos últimos 20 anos, é notável a crescente onda conservadora que se utiliza da religião cristã para aprisionar, e assim se perde da espiritualidade, estabelecendo um reino de salvação onde apenas os seus irão, em detrimento de religiões não-cristãs.
Para mim, Deus é mar, sol, luz, florestas, imensidões, amor, afetos, respeito e libertação, pois Deus é e pode ser e estar na arte. Não na arte que prega a separação e acepção de pessoas entre o reino do céu e o inferno, pois estas são meras invenções manipuladoras. Deus está na arte que liberta e faz flutuar: "se eu quiser falar com Deus, tenho que ter mãos vazias, a alma e o corpo nus".
Herberson Sonkha: Como você avalia as duas primeiras décadas do século XXI em termos de avanços e retrocessos sociais, políticos e culturais?
Larissa Caldeira: Desde que o mundo é mundo, o poder e as relações discursivas intervêm nas relações sociais, políticas e culturais. Pensar nas duas primeiras décadas do século XXI é também refletir sobre o que, se tomarmos a Idade Média, onde queimavam mulheres por serem consideradas bruxas e decepavam aqueles que iam de encontro ao poder estabelecido. Se pensarmos no mundo pós-iluminismo, podemos dizer que a ciência se tornou o centro das atenções, em detrimento de uma época de trevas.
Então, no século XXI, em relação aos períodos citados, tivemos alguns poucos avanços? Pode-se dizer que sim, ainda que as mulheres ganhem menos do que os homens, mas já possam votar e viajar sozinhas. Ainda que o feminicídio seja alarmante, já exista lei para punir. Ainda que, no século XX, na América Latina, as ditaduras tenham matado milhões, existam comissões da verdade e pessoas que lutam pela democracia e contra a anistia para os crimes cometidos no período.
Pensando no Brasil, pois é o que de fato posso falar, pois é aqui que vivo e sobrevivo, tivemos na primeira metade do século XXI uma espécie de suspensão espaço-temporal, onde as políticas públicas primaram por reparações históricas, valorização das culturas populares, políticas redistributivas e leis de proteção aos povos indígenas e negros, além de leis de proteção às mulheres, crianças e adolescentes. Mas por que chamo isso de suspensão espaço-temporal?
Pois o Brasil é fruto do estupro e do sangue de seus povos originários, o Brasil foi um dos maiores escravagistas do mundo e só deixou de ser em 1888, algo bastante recente. E depois disso, o Brasil, que sempre foi conservador, patriarcal, machista, misógino, racista e fascista, teve um breve momento de esperança até retornar à sua formatação original. Os retrocessos no Brasil são parte de uma estrutura de poder composta por pessoas que jamais quiseram largar o osso. Calaram-se por quase 20 anos de suspensão espaço-temporal, mas já saíram dos bueiros para apregoar o de sempre: preconceito, dominação, manipulação, mentiras, conservadorismo intencional para dominar e falso moralismo para esconder quem realmente são.
Herberson Sonkha: Na sua opinião, por que o pensamento médio na sociedade brasileira se tornou tão conservador?
Larissa Caldeira: Conforme disse anteriormente, a realidade é que o Brasil sempre foi conservador. Tivemos avanços e continuamos na luta da resistência, mas o Brasil sempre pregou moralidade, dominação e manipulação sobre os corpos dissidentes desde sua fundação como país. De 2002 até 2016, tivemos avanços em políticas públicas que buscaram reparar historicamente os povos indígenas, negros, mulheres e LGBTQIAP+, e por isso, as coisas não estão piores do que já estão, pois a luta pelo Estado Democrático de Direito resiste continuamente às investidas dos podres poderes. Enquanto mulher lésbica e autista nível 1 de suporte, posso dizer que estou à margem do pensamento médio e de suas mediocridades conversadoras e pífias, mas nunca estarei abaixo e nem quero estar acima; apenas luto por equidade social, cultural e política.
Herberson Sonkha: Qual é a sua análise sobre as Jornadas de Junho de 2013 e seus desdobramentos para a democracia brasileira?
Larissa Caldeira: As Jornadas de Junho de 2013 não foram ilegítimas em termos democráticos, pois, como uma série de mobilizações em mais de 500 cidades brasileiras e com 86% de aprovação, elas refletiram uma insatisfação, principalmente da classe média, com o governo Dilma Rousseff e com o domínio da esquerda na política brasileira durante 10 anos. Quando digo que não foram ilegítimas democraticamente, é porque surgiram inicialmente de forma popular e organizadas pelo MPL (Movimento Passe Livre), com reivindicações quanto à tarifa de ônibus. Depois, outros grupos começaram a fazer parte e a reivindicar maiores investimentos em serviços públicos, assim como reivindicações trabalhistas e classistas, e ataques a símbolos do capitalismo e do poder, incluindo grupos sociais das classes C e D.
Ainda é muito difícil interpretar esse evento de maneira efetiva, mas o que se sabe é que, no ano anterior, ocorreram no Brasil cerca de 887 greves e, em 2013, 2050. Um reflexo de uma democracia na qual os trabalhadores têm direito à greve e à manifestação. Para além disso, é notável que a classe média, há muito “insatisfeita” (aspas, já que a classe média tem insatisfação seletiva, apenas não quer perder seus míseros privilégios), ficou insatisfeita com as políticas reparatórias dos governos petistas, como as cotas, a retomada das causas indígenas e, no Rio de Janeiro, o desalojamento de pessoas para a construção da Cidade Olímpica.
Todo esse imbróglio gerou uma série de manifestações com temas difusos relacionados ao crescente descrédito com a política institucional. Todavia, acredito que houve cooptação ou aproveitamento de grupos políticos e movimentos de direita e extrema-direita, como o MBL, os neomonarquistas e liberais. Lendo sobre o assunto, vi uma matéria em que o ex-militante do MPL, Federico Ravioli, diz que a direita se apropriou das táticas da esquerda radical, e a esquerda tradicional ficou defendendo a democracia, a ordem e a estabilidade. De modo que, uma ação disruptiva e popular foi transformada por grupos como o MBL em uma ação contra os governos do PT, aproveitando-se dessa subjetividade política difusa.
A direita e extrema-direita fizeram uma campanha em torno de disputas discursivas muito bem-sucedidas contra o petismo, a partir do ódio e das fake news, até desembocar no impeachment de Dilma Rousseff e na eleição de Jair Bolsonaro. Assim, a democracia brasileira entrou em um estado constante de instabilidade e ameaças golpistas (vide os acontecimentos recentes de 8 de janeiro de 2023).
Herberson Sonkha: Após os eventos de 2016, marcados pelo impeachment de Dilma Rousseff, como você percebeu a transformação da sociedade e da política brasileira?
Larissa Caldeira: Conforme mencionei, a classe média, inconformada com a perda de seus míseros privilégios e sua busca para se equiparar aos ricos (sem jamais alcançá-los, mas sempre lambendo suas botas), logo se apossou dos discursos de grupos políticos e movimentos de direita e extrema-direita contra os governos petistas. Estes, por fazerem políticas de reparação histórica, acabaram por incomodar os sonhos de ascensão social e econômica da classe média. Afinal, preto virando médico e indígena com direito a terra é demais para os mimados do Leblon.
Além disso, os governos do PT, de alguma maneira, se aparelhando institucionalmente, acabaram por se esquecer das bases de sua eleição e formação ideológica: os movimentos populares, as favelas e os trabalhadores. Perderam, principalmente, o diálogo com o povo que vive nas comunidades brasileiras, que hoje são amplamente dominadas pelo fundamentalismo religioso, um aliado importante para os grupos de direita e extrema-direita, que se utilizam muito bem do falso moralismo, das fake news e dos discursos de salvação para manipular as pessoas.
Obviamente, isso não se aplica a todos e todas que vivem nesses espaços, mas a boa parte daqueles que se apoiam na religião cristã via igrejas pentecostais. A realidade é que a escória política se alvoraçou, e políticos do chamado baixo clero acabaram por se eleger, chegando inclusive à presidência do Brasil. Deu ruim? Apenas para a esquerda? Pelo visto, não. Pois, ainda que de forma apertada, Lula foi para o seu terceiro mandato, um governo de colisão para derrotar o fascismo no país, um claro reflexo do que vem ocorrendo a nível mundial. Sinceramente, a esquerda precisa de uma reflexão crítica e coesa sobre esses acontecimentos e retomar suas bases o quanto antes.
Herberson Sonkha: Enquanto artista e intelectual, como você analisa o fenômeno que os críticos à extrema-direita chamam de "bolsonarismo fascista"?
Larissa Caldeira: Acredito que a extrema-direita e o nazi-fascismo-bolsonarista souberam muito bem cooptar pessoas a partir das disputas discursivas, embebidas de ódio e fake news, que vêm desde as Jornadas de Junho de 2013, culminando na deposição de Dilma até a eleição de Bolsonaro.
Contudo, discursos não fazem bom governo, nem boa gestão de crise, como foi o caso da pandemia de COVID-19, o que, em alguma medida, trouxe problemas para o Governo Bolsonaro, assim como os últimos acontecimentos de comprovação da tentativa de golpe de Estado e assassinato do presidente eleito e membros do STF.
Acredito que algumas pessoas, principalmente aquelas que comeram pé de galinha para não morrer de fome e aquelas que perderam parentes enquanto o presidente Bolsonaro andava de jet-ski ou zombava dos doentes de COVID que não conseguiam respirar, já despertaram um pouco sobre as intenções direitistas aliadas ao nazifascismo, embora outras ainda permaneçam cegas. A questão é que, com o fortalecimento das instituições por parte do Governo Lula, como PF e STF, muitos bolsonaristas se veem na berlinda.
Alguns, como os golpistas do 8 de janeiro, já foram presos; outros, o relógio anda lentamente, mas anda, como é o caso de Jair Bolsonaro, que veio do baixo clero e que voltará a ele, passando seus dias sem ver o sol. A problemática é que, embora tenha havido um certo enfraquecimento da figura de Jair Bolsonaro, seu legado decrepito ainda persiste no cenário político brasileiro. Infelizmente, Tarcísios, Nunes, Cláudios e tantos outros foram eleitos ou reeleitos e estão aí para manter a ideologia do ódio e do desprezo pelos mais pobres. "É preciso estar atento e forte!".
Herberson Sonkha: Quais são suas expectativas para o futuro do Brasil em termos culturais, sociais e políticos?
Larissa Caldeira: Minha expectativa é que a esquerda retome suas bases, estabeleça críticas e reflexões contundentes sobre suas ações, tanto no período em que esteve no poder quanto no que se encontra agora, e que resgate suas perspectivas ideológicas. Deve lutar pelo cumprimento da lei, como já vem fazendo estando atualmente no poder, contra os discursos e ações antidemocráticas no Brasil. Vejo que este é um momento de reflexão e reconstrução. Será um processo contínuo e longo, mas não impossível. Para mim, a arte, a música e a cultura devem se apropriar daquilo que as fortalece: a resistência. Será a partir dos fragmentos e das diferenças que reconduziremos o Estado Democrático de Direito. A prisão do líder do movimento golpista de 8 de janeiro, Jair Bolsonaro, é um dos passos para isso.
Herberson Sonkha: De que maneira você acredita que a arte pode contribuir para um horizonte mais democrático e plural?
Larissa Caldeira: A arte, em sua essência, é resistência e atuação crítica, por isso se estabelece com pluralidade e democracia. Uma arte que não se estabelece dessa maneira não pode ser considerada potente ou possível. Pelo menos assim eu enxergo o fazer artístico, enquanto mobilização social e política. Porém, diante da crise estética e política que vivemos no Brasil, a arte atuará pelas brechas, nas lacunas e nos entremeios da hegemonia.
Herberson Sonkha: Para finalizar, qual mensagem você gostaria de deixar para os leitores do Blog do Sonkha e para artistas que buscam resistir às adversidades do nosso tempo?
Larissa Caldeira: Ainda estamos aqui, meus queridos! Macondo resiste, Bacurau reexiste, Lungas, João Grilos, Marielles, Andersons e tantos outros sobrevivem em nós. Estamos aqui e seguiremos juntos na luta democrática e nas possibilidades de construção de uma sociedade plural, equitativa e solidária.
Nota do Editor: Esta entrevista aprofunda as reflexões sobre cultura e arte de Larissa Caldeira, trazendo à tona a visão crítica de uma pensadora e musicista que se posiciona à margem da indústria cultural de massificação. Com um olhar atento às complexidades do Brasil contemporâneo, Larissa propõe um diálogo enriquecedor sobre os desafios e possibilidades da arte em um cenário de crescente homogeneização estética. O Blog do Sonkha agradece a disponibilidade e as valiosas contribuições de Larissa Caldeira, que tornam esta edição ainda mais significativa e instigante.
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