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Arbeit macht frei! Será mesmo?
Foto: Herberson Sonkha, 2022. |
*por Josafá Santos
Freud escreveu que o sofrimento humano deriva de três vias: das vicissitudes das forças da natureza, das doenças do corpo e das relações com outras pessoas. Não acredito que Freud explique tudo, nem ele nem a psicanálise, como se diz em certo jargão popular, mas, nisso e em tantas outras pontuações, lhe dou inegável crédito. Atendo-me à última fonte do sofrimento humano, como negar que o Outro — tantas vezes — nos trouxe, traz ou trará mais dor do que prazer? Dos diversos espaços onde esse Um possa interagir com esse Outro, vou me centrar em um campo específico: o mundo do trabalho.
A palavra “trabalho” vem do latim tripalium, um instrumento usado para imobilizar o gado a ser ferrado e, também, na tortura de escravos e presos no vasto e longevo Império Romano. Era uma cruz em “X” presa a uma estaca fincada no chão. Com o tempo, passou a designar as atividades laborais, em especial as mais pesadas: no campo, nas minas, nas construções e nos exércitos, pois causava dor, desgaste e sofrimento. 1.553 anos depois da queda de Roma, muito de sua história, de seus costumes e de sua língua ainda nos alcançam.
Se o trabalho, hoje, ao redor do mundo, conta com uma série de formatações que podem não ser exatamente tipificadas como tortura, para outras tantas o significado de sua origem segue indelével. O tripalium ainda está em uso corrente sobre uma imensa fatia da classe trabalhadora em todo o mundo. O chicote ainda sibila sobre as costas de muitos.
O século XIX foi um marco divisor na história da humanidade em vários sentidos. Foi a época da concretização da Revolução Industrial, que levaria a relação do homem com o mundo a um nível de intervenção até então inimaginável. Por conta dela, o impacto da ação humana no meio ambiente, entre 1850 e 2000, foi maior do que o registrado de 1850 até a origem do Homo sapiens, algo entre 200 e 300 mil anos. Demoramos cerca de 250 mil anos para chegarmos a um bilhão de habitantes, em 1800; pelos avanços da Revolução Industrial, em apenas dois séculos, saltamos para 8 bilhões, em 2022.
Foi também a época de grandes pensadores que presenciaram a gênese dessa nova era e sobre ela se debruçaram. Gênios como Auguste Comte, Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, os pais da Sociologia. Foi, ainda, a época de Sigmund Schlomo Freud, que não era sociólogo, mas deixou sua marca no “Século das Revoluções” com sua obra sobre o ser humano e a humanidade.
O século XX viu nascer a sociedade industrial e a inserção do homem nesse meio, numa desleal competição entre o ser e a sua obra: a máquina. Chaplin foi perfeito em Tempos Modernos, mostrando o trabalhador sendo dragado, engolido pela engrenagem, moído e vomitado por ela. No filme, o operário, engolido e vomitado pela máquina, jamais seria o mesmo. O mundo, cada vez mais rápida e profundamente recodificado para alimentar esse novo Leviatã — o capitalismo — também não.
O século XX assistiu a esse monstro engolir nações, recolonizar continentes e arrastar o globo para duas grandes guerras, com apenas vinte anos de intervalo. Na última, à entrada do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, os nazistas apregoaram a frase: “O trabalho liberta” (Arbeit macht frei). Chamar isso de cinismo é dizer pouco, como qualquer adjetivo ainda seria insuficiente para descrever a personalidade perversa de Theodor Eicke, inspetor de campos e general da SS, autor dessa infame ideia.
Mas hoje o mundo é outro. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, nasce a ONU e, com ela, seus diversos “ministérios”, como a OIT — Organização Internacional do Trabalho — que ratificou diversos parágrafos do Estatuto dos Direitos Humanos dentro das atividades laborais. Assim, pontos como a jornada máxima permitida, o mínimo de pagamento legalmente aceito e o combate à escravidão (clássica ou análoga) passaram a integrar esse “Admirável Mundo Novo”. Mais industrializado, mas também (sic) mais humano. Eu disse humano? Disse; mas não foi exatamente um elogio.
Trabalho formalmente com carteira assinada desde os 16 anos. Passei por algumas empresas e, na última, a Rede de Ensino do Estado, labuto desde o ano 2000. É uma fábrica, por assim dizer, com suas “esteiras rolantes”, divisões de poder e chaves de comando, como toda fábrica, embora quem a dirija (e muitos que nela estão...) neguem isso.
Nesses 38 anos em chão de fábrica, vi muitos colegas adoecerem gravemente, justamente por conta da lida nessa fábrica/canavial: o mundo do trabalho no Brasil. As regras da OIT são as mesmas no mundo inteiro, mas isso não significa que sejam seguidas de maneira igual. Existem governos e “governos”, fábricas e “fábricas”. Mas, via de regra, nos cinco continentes, a classe trabalhadora, em sua esmagadora maioria, segue submetida às mesmas condições vistas pelos pais da Sociologia, ainda no século XIX: desumanizados, explorados e mal remunerados.
A OMS — Organização Mundial da Saúde — aponta a depressão como o mal do século e a maior causa de suicídios em todo o planeta. Entre os maiores causadores diagnosticados da depressão está o estresse, que é mais notadamente perceptível, destruidor e sequelador na classe trabalhadora, especialmente nos grandes centros urbanos e regiões menos desenvolvidas.
Freud estava certo ao pontuar em O Mal-estar da Civilização as três fontes de sofrimento humano. Mas ele não explica tudo, como ele mesmo dizia. Parte considerável das dores que chegam aos atendimentos psicológicos não têm origem apenas em dores existenciais ou traumas pessoais. Em muitos casos, a dor vem de fora, das engrenagens de um sistema que nos nulifica dia a dia, transformando-nos em res, em coisa, em peças descartáveis.
Para entender essas grades invisíveis que nos aprisionam, nós, da classe trabalhadora, não precisamos abandonar Freud, Jung ou qualquer outro pensador do campo psicológico. Não se trata de ler menos Freud, mas de se ler um pouco mais de Marx, para compreendermos o que é a consciência (coletiva) de classe. Uni-vos! Unamo-nos!
Vitória da Conquista – BA, 14.01.2025.
*O artigo é uma produção intelectual de Josafá Santos, historiador e professor da Rede Estadual de Educação da Bahia há quase três décadas. Além disso, Santos atua como Psicólogo, com registro no Conselho Regional de Psicologia sob o número CRP 03/31887.
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