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Olhar para frente, mas não ignorar o passado
Crédito da charge: Ricardo Maurício |
"Um olhar profundo sobre as contradições do sistema capitalista e seus efeitos na sociedade e no indivíduo."
*por Herberson Sonkha
Hoje pela manhã, ouvi "Não Olhe Pra Trás" mais de uma vez enquanto tentava esboçar a escrita de um texto marxista sobre análise de conjuntura, e algo me inquietava: uma pergunta me deixava bastante intrigado. Por que Dinho Ouro Preto insistia para que não olhássemos para trás há duas décadas e a música continua atual? Sempre soube que a música tem menos a dizer sobre o próprio autor e muito mais sobre o mundo, os grupos sociais e suas nevrálgicas e contraditórias relações na sociedade contemporânea.
Sem defraudar a composição e, muito menos, o autor, assim como qualquer outra geração, nós, os oitentistas, aprendemos a "espremer" a letra de uma música e extrair dela o máximo (a quintessência?). Dessa forma segui em frente. Na verdade, a letra nos conduz quase que naturalmente a uma crítica sobre a forma como a maioria olha para o passado, um olhar superficial para trás.
Embora não afirme, a música sugere um olhar crítico para o passado enquanto processo sócio-histórico. Então, a minha intriga era: de que maneira o passado deve ser visto no presente? A resposta não é tão simples e não pretende esgotar a questão; apenas segue criticamente as pistas oferecidas por alguns autores crítico (marxistas e da teoria crítica) que analisam detidamente a questão.
Lançada em 2004 no álbum “Respirar Você”, a música "Não Olhe Pra Trás", do Capital Inicial, atravessa o tempo e permanece relevante. Sua mensagem, que inicialmente pode parecer um convite à superação pessoal, revela uma crítica mais ampla ao sistema capitalista e às suas contradições. Portanto, analiso a letra da canção que reflete, nas dimensões histórica, sociológica, filosófica, antropológica e psicanalítica, os impactos de uma ordem econômica opressora, que exclui, adoece e aliena.
O apagamento do passado
No capitalismo, o passado é constantemente apagado para legitimar a ideia de progresso contínuo. Como destaca David Harvey em “O Neoliberalismo: História e Implicações” (2005, p. 16), “o neoliberalismo transforma todas as relações sociais em mercadoria”. O verso “São águas passadas, escolha outra estrada” reflete essa lógica: esqueça o que foi, siga em frente.
Esse apagamento histórico é uma estratégia de controle, pois ao eliminar memórias de exploração e resistência, o sistema dificulta que as pessoas compreendam sua opressão. Essa crítica se torna ainda mais atual em um mundo que, mesmo diante de crises profundas, insiste em repetir erros históricos.
A sociedade do consumo e a alienação
A letra também aborda como o capitalismo molda comportamentos. A frase “Você quer encontrar a solução sem ter nenhum problema” denuncia a busca superficial pela felicidade individual, promovida pela sociedade de consumo.
Para Zygmunt Bauman, em “Modernidade Líquida” (2000, p. 24), vivemos em uma era de relações frágeis e ansiedade constante. No pensamento de Bauman, reflete a instabilidade das relações humanas na contemporaneidade. As conexões se tornam superficiais e passageiras, gerando um ciclo de ansiedade constante. A busca por estabilidade e segurança é frustrada pela rapidez das transformações sociais e pessoais, tornando difícil criar vínculos duradouros e seguros.
Já Byung-Chul Han, em “A Sociedade do Cansaço” (2017, p. 12), aponta que o capitalismo transforma o indivíduo em um "empreendedor de si mesmo", sempre em busca de mais produtividade, mesmo à custa de sua saúde mental. Han argumenta que o capitalismo contemporâneo transforma o indivíduo em um "empreendedor de si mesmo", constantemente motivado pela autossuperação. Essa busca incessante por produtividade gera um ciclo exaustivo, que, em vez de proporcionar satisfação, leva ao desgaste mental e à solidão. Essa dinâmica é representada na música como um dilema constante: insistir ou desistir, sem nunca questionar as estruturas sociais que geram essa pressão.
A liberdade e a alienação capitalista
“Insistir e se preocupar demais” é um verso que dialoga com as ideias de liberdade em Jean-Paul Sartre, especialmente em “O Ser e o Nada” (1943, p. 47). Para Sartre, a liberdade implica escolhas conscientes, mas no capitalismo ela se torna uma ilusão limitada pelas exigências do mercado. Sartre afirma que a liberdade é a capacidade de fazer escolhas autênticas, baseadas na consciência de si. Contudo, no capitalismo, essa liberdade se torna uma ilusão, pois as decisões do indivíduo são constantemente moldadas pelas exigências do mercado, limitando sua verdadeira autonomia.
A música sugere uma crítica ao falso ideal de liberdade pregado pelo sistema, onde escolhas são condicionadas por pressões externas, como o consumo e a competição. Essa alienação filosófica cria uma sociedade desconectada de seus próprios valores e prioridades.
O impacto da informação excessiva
A frase “A inteligência ficou cega de tanta informação” denuncia o excesso de estímulos no mundo contemporâneo. Claude Lévi-Strauss, em “O Pensamento Selvagem” (1962, p. 114), explica que culturas saturadas de informações fragmentadas tendem a perder sua capacidade crítica. Lévi-Strauss alerta sobre o impacto da saturação informativa nas culturas contemporâneas. O excesso de dados fragmentados impede a formação de um pensamento crítico coeso. A informação, em vez de expandir a compreensão, fragmenta o conhecimento, dificultando a reflexão profunda e a análise das realidades complexas, essencial para a construção de um pensamento autônomo e livre.
No capitalismo, a avalanche de dados e narrativas contraditórias dificulta a formação de uma visão coerente da realidade. Isso mantém as pessoas presas a padrões de consumo e evita que reflitam sobre as contradições do sistema.
A repressão emocional e o trauma coletivo
Freud, em “Além do Princípio do Prazer” (1920, p. 27), analisa como traumas reprimidos podem gerar sofrimento contínuo. A letra “Não olhe pra trás” pode ser lida como um reflexo dessa repressão coletiva. Freud explora como traumas reprimidos se manifestam no inconsciente, causando sofrimento recorrente. A repressão de lembranças dolorosas gera um ciclo de tensão, onde o indivíduo evita o enfrentamento da dor. A frase “Não olhe pra trás” pode ser interpretada como um reflexo dessa dinâmica coletiva, um alerta para não confrontar o passado traumático, mas viver na ilusão de superação.
No capitalismo, traumas históricos e pessoais são ignorados em nome do progresso. Essa repressão cria um adoecimento mental generalizado, onde o passado é evitado e as dores são ignoradas. Isso explica por que tantas pessoas sofrem de ansiedade e depressão, resultado de uma sociedade que nega o sofrimento enquanto exige produtividade.
Os padrões sociais que a música reflete
A mensagem de "Não Olhe Pra Trás" ressoa com alguns comportamentos comuns da sociedade contemporânea. A superficialidade da sociedade contemporânea, que busca soluções rápidas e evita enfrentar questões profundas. O esquecimento do passado, ao negar injustiças históricas, impede transformações sociais reais. A pressão pelo sucesso, centrada na culpa individual, ignora as desigualdades estruturais que moldam o fracasso.
Um alerta necessário
Portanto, a canção "Não Olhe Pra Trás" vai além de uma mensagem de superação individual. Ela se torna um alerta para os perigos de uma sociedade que sufoca o passado, aliena o presente e sobrecarrega o indivíduo. Como Slavoj Žižek afirma em “Bem-Vindo ao Deserto do Real” (2002, p. 49), “a verdadeira coragem é olhar para trás e enfrentar o que tentamos esconder”. Žižek defende que a verdadeira coragem reside em confrontar o que foi reprimido e escondido. A sociedade contemporânea, ao evitar o olhar para o passado, perpetua ilusões e nega as contradições que a sustentam. Enfrentar o que está oculto, portanto, é essencial para a transformação e a verdadeira compreensão de nossa realidade.
Ao confrontar essas contradições, a música desafia o ouvinte a refletir: até que ponto estamos ignorando o passado em nome de um futuro ilusório? Em tempos de crises profundas, essa pergunta é mais relevante do que nunca.
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*Herberson Sonkha é editor do Blog do Sonkha, poeta, compositor e crítico cultural, com foco nas conexões entre arte e transformações sociais
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