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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

O racismo e sua estrutura de exploração, opressão e apagamento

Foto: Rasta Bass

*por Rasta Bass



O episódio da destruição da Escola de Capoeira Angola Cruzeiro do Sul pela Prefeitura de São Paulo, sem aviso prévio ou notificação, expõe de maneira brutal a precarização e marginalização da capoeira no Brasil. O Mestre Meinha, uma referência histórica na capoeira angola, teve seu espaço reduzido a destroços, com instrumentos, quadros e registros de 40 anos de história aniquilados. Esse ato não é apenas uma perda material, mas também um reflexo claro de um racismo estrutural que marginaliza e apaga as tradições culturais afro-brasileiras. A ausência de diálogo e o desrespeito a um patrimônio imaterial da humanidade evidenciam a negligência do poder público em relação a manifestações culturais que têm suas raízes na população negra.

Esse episódio de destruição e negligência não é um caso isolado, mas reflete um dilema contínuo enfrentado pela capoeira dentro das instituições educacionais brasileiras. Embora tenha sido reconhecida como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo IPHAN em 2008, sua inserção no ensino formal continua ocorrendo de maneira precária e desvalorizada. Mestres e professores de capoeira, como Meinha, são tratados como figuras periféricas, frequentemente atuando sem garantias trabalhistas, em muitas situações, sob o manto do voluntariado. O Estado perpetua uma lógica de reconhecimento simbólico sem valorização real, o que remonta a um passado colonial, em que, apesar da abolição formal da escravidão pela Lei Áurea, a população negra continuou privada de direitos básicos.

Nesse contexto, a marginalização da capoeira se reflete na implementação de programas como o 'Capoeira nas Escolas', previsto na Lei 14.341, que obriga a inserção da capoeira no ensino público. Porém, a ausência de uma estrutura que valorize efetivamente os profissionais da área coloca esse programa em risco de reforçar as condições de exploração dos mestres e professores, que continuam a trabalhar em um cenário de instabilidade, sem direitos garantidos ou reconhecimento da sua importância educativa e cultural.

Estudiosos como Aníbal Burlamarqui e Nestor Capoeira destacaram o enorme potencial da capoeira, não apenas como uma prática cultural, mas como uma poderosa ferramenta pedagógica e educacional. Burlamarqui, em sua obra "Ginástica Nacional" (1928), via a capoeira como um método de educação física genuinamente brasileiro, com grande potencial para o desenvolvimento motor e disciplinar. Nestor Capoeira, em "A Capoeira Escrava e Livre" (2006), reforça que a capoeira é um instrumento de formação integral do indivíduo, abrangendo não apenas o aspecto físico, mas também o cognitivo, cultural e social. Apesar dessas contribuições teóricas, o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) e os Conselhos Regionais de Educação Física (CREFs) tentaram se apropriar da regulamentação profissional da capoeira, exigindo que seus praticantes tivessem registro na entidade para atuar em academias e escolas. Essa tentativa de controle e dominação institucional ignora a tradição dos mestres e a história da capoeira como um saber popular. Em vez de reconhecer a capoeira como uma prática legítima e autêntica, busca-se limitá-la à esfera acadêmica e burocrática, desconsiderando seu valor cultural e educativo.

A capoeira, como Muniz Sodré discute em "O Terreiro e a Cidade" (1988), é mais do que uma prática física: ela é um espaço de resistência e aprendizado coletivo, desafiando a lógica eurocêntrica da educação formal. Assim, em vez de ser subordinada à educação física convencional, a capoeira deveria ser a base metodológica dessa disciplina. Um curso de educação física estruturado a partir da capoeira, por exemplo, deveria incluir disciplinas como história, filosofia, cidadania da capoeira, além de laboratórios práticos de Angola e Regional, primeiros socorros, didática, metodologia de pesquisa e legislação educacional.

Embora o curso superior de educação física tenha como objetivo principal a formação de profissionais capacitados para atuar no ensino, pesquisa e promoção da saúde e bem-estar, a predominância de modelos eurocêntricos de ensino ainda impede que a capoeira seja tratada como um conhecimento estruturante dentro do currículo. Sua riqueza filosófica, histórica e pedagógica oferece uma abordagem mais integrada para a educação física, estimulando não apenas o desenvolvimento motor, mas também a consciência corporal, a musicalidade e a construção de identidade, essencial para uma formação mais humana e crítica.

Esse cenário de exclusão da capoeira do centro das políticas educacionais e esportivas reflete claramente um racismo estrutural que privilegia modalidades eurocêntricas e, ao mesmo tempo, impede que mestres de capoeira sejam reconhecidos como educadores formais. Para reverter essa lógica, o Brasil precisa adotar políticas públicas que promovam concursos específicos, estabeleçam parcerias entre escolas e associações de capoeira, e criem mecanismos de financiamento que garantam condições dignas de trabalho para os capoeiristas, reconhecendo-os em sua integralidade como educadores e transmissores de saberes ancestrais.

Assim como a destruição da Escola de Capoeira Angola Cruzeiro do Sul exemplifica a negligência do Estado para com as tradições afro-brasileiras, a luta dos capoeiristas e trabalhadores da cultura continua sendo um embate constante por reconhecimento, valorização e reparação histórica. O Estado, ao oferecer apenas migalhas, espera que a população celebre pequenas concessões como grandes vitórias. Romper com esse ciclo de exploração e apagamento exige organização, resistência e uma luta contínua por políticas públicas que assegurem dignidade, reconhecimento e justiça aos trabalhadores da cultura e da educação.


Rasta Bass

02/2025





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*Uelber Barbosa Silva, conhecido como Rasta Bass, é historiador, doutor em Serviço Social, capoeirista e músico. Escritor de versos periféricos, defensor do proletariado e militante anticapitalista, dedica-se à luta pela justiça social e à valorização das culturas populares.


 

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