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domingo, 16 de fevereiro de 2025

O declínio do Sonho Americano

EDITORIAL | O declínio do "Sonho Americano" é a contradição irreversível do capitalismo dos EUA.



*por Herberson Sonkha



Tenho acompanhado algumas das principais publicações da esquerda mundial sobre as medidas econômicas extremas dos Estados Unidos. No cenário atual, os recorrentes atritos entre países com capitais globalizados, em disputa pela liderança do capitalismo central, seguem gerando faíscas que alimentam as narrativas fascistas promovidas pela extrema-direita global. No entanto, não há sinais de mudanças políticas significativas nas superestruturas do sistema, além das movimentações na infraestrutura de intensa reprodução do capital, que há décadas vêm comprometendo o chamado "Sonho Americano" (The American Dream).

A crise econômica não é uma anomalia passageira, mas uma consequência inerente ao próprio movimento de reprodução do capital. O ciclo de acumulação e expansão, seguido por crises e reestruturações, continua aprofundando as contradições do sistema, resultando em precarização do trabalho, concentração de renda e desintegração dos antigos mecanismos de mobilidade social. Diante desse contexto, a extrema-direita apresenta uma resposta ideopolítica conservadora que não busca transformar a ordem social, mas reforçar os pilares do capitalismo e da ordem civil burguesa. Seu discurso nacionalista e autoritário serve para desviar a insatisfação popular, canalizando-a contra minorias, imigrantes e setores progressistas, ao mesmo tempo em que preserva os interesses da classe dominante.

Portanto, enquanto a infraestrutura econômica seguir se reconfigurando em favor do capital e as superestruturas permanecerem intactas, a crise do "Sonho Americano" será um processo contínuo, e a extrema-direita continuará sendo instrumentalizada para conter qualquer ameaça real à hegemonia burguesa. As eleições estadunidenses, que reconduziram à Casa Branca o repugnante capitalista imperialista Donald Trump — um magnata bilionário cujo patrimônio, segundo a BBC News Brasil que cita a revista Forbes, é estimado em US$ 4,5 bilhões —, têm gerado um frisson na economia capitalista global, ao menos é o que indica a imprensa internacional.

O tom agressivo, desrespeitoso, odioso e cínico das narrativas neofascistas, com palavras cuidadosamente escolhidas para impactar, cumpre um papel estratégico: tirar o sono da classe trabalhadora mundial, especialmente nos países mais pobres da periferia do capitalismo. A verdade é que Trump, um capitalista conservador, conhece profundamente o capitalismo e a conjuntura global. Ele tem em mãos uma bomba para "resolver", mas, para isso, precisa criar uma cortina de fumaça que desvie o olhar dos mais desatentos das contradições do sistema, particularmente da crise que sinaliza, há mais de uma década, o declínio da economia norte-americana.

Escrevo no calor dos acontecimentos do tempo presente, consciente dos riscos de cometer equívocos em minha análise devido à complexidade e à imprevisibilidade do devir histórico. Meu objetivo é lançar luz sobre as implicações da recondução de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, buscando explorar, para além do discurso e das políticas de extrema-direita, os mecanismos que ocultam as contradições do capitalismo em declínio. Ao mesmo tempo, essas políticas exacerbam tensões sociais e econômicas, tanto no centro quanto na periferia do sistema global.

O "Sonho Americano", historicamente construído como um ideal de progresso e oportunidades acessível a todos, revela-se, sob uma análise crítica, um dispositivo ideológico burguês destinado a mascarar a exploração inerente ao sistema capitalista. Essa narrativa, amplamente disseminada pelo aparato ideológico do Estado, serve para justificar a desigualdade social como fruto do mérito individual, ocultando as barreiras estruturais de classe, raça e gênero que perpetuam a dominação burguesa. No entanto, a crise estrutural do capitalismo, analisada por teóricos como Marx e Lênin, e constatada por Piketty, expõe a contradição irreversível desse sistema: a concentração e centralização de riqueza nas mãos de poucos e o empobrecimento crescente das massas trabalhadoras. Este artigo examina a essência e a aparência do "Sonho Americano", desvendando sua função ideológica e sua relação com a luta de classes, a financeirização da economia, o imperialismo e a militarização. Por meio de uma análise crítica fundamentada em dados estatísticos e teorias consagradas, demonstra-se que o colapso desse modelo não é apenas uma possibilidade, mas uma consequência inevitável da lógica de acumulação capitalista.

O “Sonho Americano” foi historicamente construído como um dispositivo ideológico burguês para mascarar a exploração inerente ao sistema capitalista e justificar a desigualdade social como consequência do mérito individual. Essa narrativa, amplamente disseminada pelo aparato ideológico do Estado (ALTHUSSER, 1970, p. 45), tem sido instrumentalizada para ocultar a luta de classes e garantir a reprodução do capitalismo monopolista de Estado nos Estados Unidos. No entanto, a crise estrutural do imperialismo, conforme analisada por Lênin em O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo (1917), revela que essa promessa nunca foi universalizável. Ao contrário, a tendência inerente do capitalismo é a concentração e centralização de riqueza em um polo e o empobrecimento das massas trabalhadoras no outro.


A ideologia burguesa e a mistificação da exploração capitalista

O mito do "Sonho Americano" serve como uma cortina de fumaça para perpetuar a dominação burguesa. James Truslow Adams, em The Epic of America (1931), formulou essa ideia como um ideal de progresso acessível a todos, ignorando o fato de que a estrutura de classes nos EUA sempre foi marcada pela segregação racial, pela superexploração da força de trabalho imigrante e pelo expansionismo violento. Como demonstrado por Marx e Engels em A Ideologia Alemã (1846), a classe dominante controla a produção material e, portanto, a produção intelectual, garantindo que sua ideologia se torne a ideologia dominante. Essa formulação não apenas ignorou as barreiras estruturais de classe, raça e gênero, mas também serviu para justificar a concentração de riqueza como fruto do mérito individual.

No campo sociológico, autores como Pierre Bourdieu, em A Distinção (1979), e Richard Sennett, em A Corrosão do Caráter (1998), demonstram que a mobilidade social é limitada, e a ideologia do mérito oculta a reprodução das desigualdades. Os dados do Pew Research Center (2023) reforçam a concentração de riqueza nos EUA: os 10% mais ricos detêm 70% dos ativos financeiros, enquanto a classe trabalhadora sofre com a precarização do trabalho e a estagnação salarial. O mito do “Sonho Americano” tornou-se um instrumento fundamental da hegemonia norte-americana, servindo para legitimar o próprio modelo capitalista em escala global. David Harvey, em O Novo Imperialismo (2003), argumenta que os EUA operam sob um regime de acumulação por espoliação, onde a riqueza não é criada de forma equitativa, mas extraída por meio da exploração do trabalho e do controle dos mercados financeiros.


Desigualdade econômica e falência do modelo produtivo

O mercado de capitais norte-americano, outrora símbolo do dinamismo econômico, transformou-se em um mecanismo de concentração de renda. A financeirização da economia levou a uma desconexão entre crescimento do PIB e melhoria das condições de vida da população. Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI (2013), aponta que a taxa de retorno do capital supera consistentemente o crescimento econômico, intensificando a desigualdade. De acordo com o US Census Bureau (2022), cerca de 37,9 milhões de americanos vivem abaixo da linha da pobreza, enquanto o número de bilionários continua a crescer exponencialmente. Segundo Piketty (2013), essa desigualdade não é um fenômeno acidental, mas uma característica estrutural do capitalismo, onde a taxa de retorno do capital supera o crescimento da economia, perpetuando a acumulação de riqueza nas mãos de poucos.


A destruição da pequena burguesia e a centralização do capital

A narrativa do “Sonho Americano” sempre utilizou a pequena burguesia como um amortecedor ideológico, prometendo que qualquer indivíduo poderia ascender economicamente. No entanto, segundo a análise de Marx em O Capital (1867), o desenvolvimento do capitalismo implica a destruição progressiva da pequena produção, levando à concentração e centralização do capital em monopólios. Os dados da Small Business Administration (2023) mostram que, enquanto as grandes corporações aumentaram seus lucros em 25% nos últimos três anos, 60% das pequenas empresas faliram nos primeiros cinco anos. Essa é uma tendência inevitável do capitalismo monopolista de Estado, onde gigantes como Amazon, Google e Microsoft eliminam a concorrência e estabelecem uma forma de ditadura econômica sobre o mercado. A falência da pequena burguesia, longe de ser uma anomalia, é a realização da lei geral da acumulação capitalista descrita por Marx.


A economia de guerra e o imperialismo como estratégia de sobrevivência do capitalismo

Para sustentar sua hegemonia econômica, os EUA recorreram historicamente à militarização da economia e ao imperialismo. A indústria bélica norte-americana, representada por gigantes como Lockheed Martin e Raytheon, movimenta trilhões de dólares anualmente. William Robinson, em Promoting Polyarchy (1996), destaca que o Estado norte-americano instrumentaliza o poder militar e operações clandestinas para garantir acesso a mercados e recursos estratégicos. O apoio a regimes ditatoriais e forças mercenárias é parte essencial dessa estratégia. O envolvimento da CIA em golpes militares na América Latina, como no Chile (1973) e no Brasil (1964), ilustra a forma como os EUA desestabilizam governos que desafiam sua ordem econômica. Além disso, os EUA mantêm relações com cartéis e grupos paramilitares, como evidenciado no escândalo Irã-Contras dos anos 1980, em que a administração Reagan financiou mercenários na Nicarágua por meio do tráfico ilegal de armas e drogas (CHOMSKY, 2003, p. 112).

Lênin (1917) já apontava que o capitalismo, ao atingir sua fase imperialista, não pode mais expandir-se apenas internamente e precisa recorrer à pilhagem externa para sobreviver. Os EUA exemplificam essa lógica com sua indústria bélica trilionária e seu envolvimento em guerras permanentes para garantir mercados, recursos naturais e submissão geopolítica. O orçamento do Pentágono para 2023 foi de aproximadamente 842 bilhões de dólares, superando a soma dos gastos militares das dez maiores potências seguintes. Como já mencionado, William Robinson demonstra em Promoting Polyarchy (1996) que os EUA mantêm sua hegemonia por meio de operações militares e golpes de Estado contra governos que tentam romper com sua dominação, como no Chile (1973), Brasil (1964), Iraque (2003) e Ucrânia (2014). Além disso, a colaboração do Estado norte-americano com cartéis de drogas e forças mercenárias, como revelado no escândalo Irã-Contras, evidencia que a burguesia estadunidense não tem escrúpulos em recorrer a meios ilícitos para manter sua dominação. Como apontou Rosa Luxemburgo em A Acumulação do Capital (1913), a violência não é uma distorção do capitalismo, mas uma necessidade para sua reprodução.


O colapso do “Sonho Americano” e a luta de classes nos EUA

A crescente precarização do trabalho, a polarização social e a crise do sistema de saúde revelam que o “Sonho Americano” é uma realidade para poucos e um pesadelo para muitos. O declínio da classe média é um fenômeno documentado por Joseph Stiglitz, em O Preço da Desigualdade (2012), que demonstra como a concentração de renda e o desmantelamento das políticas sociais corroem as bases do modelo americano. A falência do modelo norte-americano é visível no declínio da classe média e no aumento da precarização do trabalho. Dados do Federal Reserve (2023) mostram que 64% da população vive de salário em salário, enquanto a habitação se torna inacessível para milhões. O mercado de trabalho precarizado, impulsionado pela uberização e pelo desmonte dos sindicatos, segue a lógica descrita por Engels em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845), onde a industrialização não trouxe prosperidade para os trabalhadores, mas sim miséria e alienação.

Os Estados Unidos não são a terra da liberdade e das oportunidades, mas sim um Estado imperialista em decadência, cuja burguesia se sustenta pela espoliação da classe trabalhadora e dos povos oprimidos do mundo. O “Sonho Americano” é, em última instância, um mecanismo ideológico que sustenta uma ordem social excludente e profundamente desigual. O colapso do modelo se revela não apenas na degradação das condições de vida da população trabalhadora estadunidense, mas também na incapacidade dos EUA de manter sua hegemonia global sem recorrer à violência e à espoliação. O germe da autodestruição do capitalismo está plantado em sua própria lógica de acumulação, e os sinais de decadência do império norte-americano indicam que seu fim não será uma questão de se, mas de quando.

Por fim, o “Sonho Americano” é um conceito ideológico que disfarça a realidade da luta de classes, e sua crise estrutural aponta para a necessidade histórica de superação revolucionária do capitalismo. Como afirmou Marx em O Manifesto Comunista (1848), “tudo o que é sólido se desmancha no ar” – e a desintegração do modelo norte-americano é apenas mais uma confirmação dessa verdade histórica.


Referências

ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. La Pensée, 1970.  

BOURDIEU, P. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. Les Éditions de Minuit, 1979.  

CHOMSKY, N. Hegemony or Survival: America's Quest for Global Dominance. Metropolitan Books, 2003.  

ENGELS, F. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Otto Meissner, 1845.  

HARVEY, D. The New Imperialism. Oxford University Press, 2003.  

LÊNIN, V. I. O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Zveno, 1917.  

LUXEMBURG, R. A Acumulação do Capital. Frankes Verlag, 1913.  

MARX, K. O Capital, Volume I. Verlag von Otto Meissner, 1867.  

MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Progress Publishers, 1846.  

MARX, K.; ENGELS, F. O Manifesto Comunista. League of Communists, 1848.  

PIKETTY, T. O Capital no Século XXI. Editora Intrínseca, 2013.  

ROBINSON, W. I. Promoting Polyarchy: Globalization, US Intervention, and Hegemony. Cambridge University Press, 1996.  

STIGLITZ, J. The Price of Inequality: How Today’s Divided Society Endangers Our Future. W. W. Norton & Company, 2012.  


Estatísticas e relatórios:  

FEDERAL RESERVE. Household Debt and Credit Report. 2023.  

PEW RESEARCH CENTER. Income and Wealth Inequality in the U.S. 2023.  

SMALL BUSINESS ADMINISTRATION. Small Business Economic Trends Report. 2023.  

US CENSUS BUREAU. Poverty in the United States. 2022.


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