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EDITORIAL | Efeito Colateral
“Uma delas é a tendência do ser humano a só mudar comportamentos
quando obrigado por lei, mesmo quando o bom senso deveria bastar.
É realmente necessário informar um motorista que ele não pode dirigir
com os olhos no celular?”
*por Josafá Santos Estado Legislação & Emoção e Comportamento Social
Toda medicação, independentemente de sua finalidade, traz possíveis efeitos colaterais. Cabe a quem a aplica e a quem a toma pesar os benefícios e os riscos antes de tomar uma decisão. O mesmo princípio se aplica ao meio social, quando um comportamento precisa ser regulado em prol do bem coletivo, exigindo a intervenção do Estado por meio da legislação.
O uso abusivo de celulares por estudantes do ensino fundamental ultrapassou os limites do aceitável, comprometendo o rendimento escolar, a capacidade de memorização e os níveis de socialização. Diante disso, diversos países asiáticos e europeus implementaram restrições, e a medida chegou ao Brasil, onde a Lei 15.100/2025 proibiu o uso de eletrônicos em escolas públicas e particulares a partir de 13 de janeiro. Assim, aplicou-se a "medicação".
Os efeitos colaterais dessa medida serão evidentes nas próximas semanas, especialmente com o início do ano letivo. Quem lida com o público escolar – da infância à idade adulta – perceberá as reações adversas já dentro das salas de aula. Não sou vidente, mas certos fatos produzem consequências previsíveis. Os noticiários logo relatarão atritos entre estudantes e educadores, impulsionados pela natural resistência do ser humano, sobretudo na adolescência, a obedecer normas de imediato.
Vou além: prevejo casos de alunos que passarão mal ao serem abruptamente afastados de seus celulares, seu "quase outro eu". Crises de pânico, palpitações, sudorese, variações na pressão arterial e, possivelmente, até surtos – ou, no mínimo, chiliques homéricos. Aposto um dólar com quem quiser.
Essa questão levanta reflexões. Uma delas é a tendência do ser humano a só mudar comportamentos quando obrigado por lei, mesmo quando o bom senso deveria bastar. É realmente necessário informar um motorista que ele não pode dirigir com os olhos no celular? Em teoria, não. Mas, na prática, o Art. 252, parágrafo único, do CTB teve que ser criado para coibir essa conduta – e, ainda assim, muitos desrespeitam a norma.
Outro ponto merece destaque: a proibição recai exclusivamente sobre os estudantes. Isso reacende a velha disputa entre "alunos x professores", "jovens x adultos chatos", "rebeldes descolados x caretas repressores", "libertários x moralistas hipócritas". A lei é dura, mas é para todos? Não exatamente. No caso da 15.100/2025, ela se mostra mais flexível para professores, coordenadores e diretores, que ficaram fora do seu alcance. Dura Lex, lex res... Lex LÁTEX...
"Isso é justo!", argumentam alguns colegas. "Tenho filhos em outra escola! Preciso estar acessível caso algo aconteça! E minha mãe? E meu cachorro?". Tentei argumentar: "Se seus filhos precisarem de ajuda, há um professor com eles, que saberá o que fazer. Se necessário, a direção da escola entrará em contato com você. Não é assim que agimos quando um aluno passa mal aqui?". Alguns refletiram, mas outros recorreram à falácia de autoridade: "Eu posso usar o celular porque sou professor! Ele é apenas um aluno e precisa saber seu lugar!". Diante de tal argumento, calei-me. Citar Paulo Freire poderia ofender ainda mais. E eu já tenho tão poucos amigos...
A resistência de alguns professores revela um problema maior: muitos também enfrentam dificuldades com o uso excessivo de eletrônicos. Nas reuniões, intervalos e eventos escolares, vejo colegas absortos na luz azul de suas telas, prisioneiros de seu "Anel de Sauron", enfeitiçados por sua "sereia cantante". A relutância em aderir à "medicação" indica o quão profundo é o problema.
A Lei 15.100/2025 menciona a necessidade de combater a nomofobia – transtorno psicológico caracterizado pelo extremo desconforto ao ser privado do celular, levando a sintomas como enxaqueca, insônia, queda no rendimento e isolamento social. A escola, espaço de formação de mentalidades e comportamentos, deve abordar essa questão.
Entretanto, a lei tem dois gargalos preocupantes. Primeiro, determina o que deve ser feito, mas não como. Segundo, transfere ao já sobrecarregado educador a responsabilidade de encontrar formas de implementação. Mais uma atribuição a recair sobre os ombros dos professores.
Usei "efeito colateral" como tema deste texto, mas talvez outro termo fosse mais adequado. O que veremos nos próximos meses se assemelha a um processo de abstinência. A nomofobia produz reações idênticas às de um adicto privado de sua droga. E não nos enganemos: embora os jovens em idade escolar sejam os alvos mais visíveis, a dependência digital afeta todas as faixas etárias.
As apostas esportivas online ("bets") são um exemplo claro da amplitude do problema. Milhões já vagam como zumbis, com um olho semicerrado no que resta de sua vida e o outro fixo na tela. Ou pior: com os dois.
___________________________________________
*O artigo é uma produção intelectual de Josafá Santos, historiador e professor da Rede Estadual de Educação da Bahia há quase três décadas. Além disso, Santos atua como Psicólogo, com registro no Conselho Regional de Psicologia sob o número CRP 03/31887.
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