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EDITORIAL | 40 Anos de Axé Music
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Foto: Marcos Alberte / Divulgação |
EDITORIAL | 40 Anos de Axé Music:
Luiz Caldas e a disrupção cultural na Bahia
"[...] álbum Magia (1985), marco inicial do Axé Music, gênero que revolucionou a música brasileira e projetou a Bahia no cenário global. Luiz Caldas, seu principal precursor, não apenas criou um novo estilo, mas também trouxe em suas composições uma densidade temática que dialogava com questões culturais, sociais e espirituais [...]."
*por Herberson Sonkha
Luiz Caldas mantém uma forte ligação com Vitória da Conquista, onde sua relação com a família Barroso remonta aos tempos de convivência na casa de Nilton Barroso, na Avenida Brumado, em frente ao posto de gasolina e ao 9º Batalhão. Nilton, irmão do renomado compositor, músico e produtor Nagib Barroso, sempre foi um grande amigo de Luiz. Um meio primo, Gileno (Gugú), enteado de meu tio Herculano (Tio Cula era representante comercialmente na empresa de Nilton), já naquela época era fã de Luiz e frequentemente visitava a casa quando o músico estava na cidade.
Embora já conhecesse o trabalho de Luiz Caldas e tivesse sido impactado pela grandiosidade musical de "Beverly Hills", nunca o conheci pessoalmente, mesmo após tê-lo visto na Avenida Santos Dumont, no bairro São Vicente, com um violão na mão, no final da década de 1980 - confessor que não tive coragem para abordá-lo para conversar. Havia algo intangível naquela canção, uma dualidade que ecoava entre dois universos distintos, repleta de metáforas que desafiavam a compreensão de um jovem periférico de Vitória da Conquista. Aos 16 anos, eu era um adolescente ingênuo, com uma visão de mundo ainda limitada, sem as ferramentas teóricas da filosofia ou da história. O Rio de Janeiro era uma abstração distante, e Beverly Hills, um símbolo de glamour inalcançável.
Mas a música de Luiz Caldas, com sua riqueza instrumental e profundidade temática, transcendia essas barreiras. Anos mais tarde, munido de um repertório intelectual mais sólido, pude decifrar a complexidade daquela canção que tanto me intrigara. "Beverly Hills" não era apenas um reggae jamaicano adaptado; era uma fusão de ritmos que dialogava com o Black Music norte-americano, como se Caldas tivesse antecipado uma ponte cultural entre a Bahia e o mundo – em minha opinião, foi exatamente isso que aconteceu.
Em 2025, celebramos os 40 anos do álbum Magia (1985), marco inicial do Axé Music, gênero que revolucionou a música brasileira e projetou a Bahia no cenário global. Luiz Caldas, seu principal precursor, não apenas criou um novo estilo, mas também trouxe em suas composições uma densidade temática que dialogava com questões culturais, sociais e espirituais. Quase dois anos após Magia, ele lançou Flor Cigana (1986), um LP que consolidou sua genialidade ao misturar lambada, reggae e ritmos latinos, enquanto explorava temas como identidade cultural, espiritualidade afro-brasileira e a crítica à superficialidade do estrelato internacional – a meu ver, uma alusão ao cinema hollywoodiano.
A dualidade de "Beverly Hills" e a crítica ao capitalismo cultural
Em "Beverly Hills", sétima faixa do lado B de Flor Cigana, Caldas constrói uma narrativa que contrasta o glamour hollywoodiano com a autenticidade do Rio de Janeiro. A música, com seu ritmo pulsante de reggae, um baixo marcando sincopadamente e solos de guitarra que duelam entre si, enquanto um teclado é executado como se fosse um órgão, cria uma atmosfera hipnótica. A letra, repleta de metáforas como "meros planetas sinceros" e "humanidade asteroide", critica a busca desenfreada pelo sucesso e pelo lucro, elementos centrais da lógica capitalista.
Caldas não apenas denuncia a superficialidade do estrelato internacional, mas também celebra a cultura brasileira, em especial o Rio de Janeiro, que, para ele, representa a alma vibrante e criativa do país. A dualidade presente na letra – entre o glamour global e a essência local – reflete a maturidade artística de Caldas, que já na década de 1980 demonstrava uma leitura de mundo sofisticada e engajada. "Beverly Hills" é, portanto, um convite à reflexão sobre valores, identidade e o verdadeiro significado do sucesso em uma sociedade marcada pela alienação e pelo fetichismo da mercadoria.
"Yalorixá": Um manifesto contra a intolerância religiosa
Já em "Yalorixá", quarta faixa do lado A de Flor Cigana, Caldas celebra as religiões de matriz africana, em especial o Candomblé. Com participação de Moraes Moreira e a guitarra de Armandinho Macedo, a música exalta a figura da Yalorixá (mãe de santo) e a força dos orixás, como Oxum e Oxalá. A letra, repleta de expressões em iorubá, como "Ifá hopelé" e "Ye kekeré", reforça a conexão com as raízes africanas e a importância da espiritualidade na busca pelo equilíbrio e pela paz.
Em um contexto de resistência e valorização das tradições afro-brasileiras, "Yalorixá" assume um papel político e educativo. A música denuncia a marginalização e a perseguição histórica sofrida pelo Candomblé, ao mesmo tempo em que celebra sua riqueza cultural e espiritual. Ao trazer esses elementos para a música popular, Caldas contribuiu para a quebra de estereótipos e para a reafirmação da identidade negra no Brasil. Mais do que uma canção, "Yalorixá" é um manifesto contra a intolerância religiosa e um chamado à valorização das tradições ancestrais.
A gênese do Axé Music: magia e a fusão de ritmos
O álbum Magia, lançado em 1985, é o marco inicial do Axé Music e um divisor de águas na música brasileira. Com o hit "Fricote", composto em parceria com Paulinho Camafeu, Luiz Caldas uniu a energia do samba-reggae, ijexá, frevo, rock e pop, criando uma sonoridade única que conquistou o país. O disco, produzido por Wesley Ragel e distribuído pela Fonobrás, contou com a colaboração de grandes nomes da música baiana, como Paulinho Caldas, Silvinha Torres, Carlinhos Brown, Jeferson Robson e Alfredo Moura, e trouxe uma proposta inovadora: misturar a percussão afro-baiana com guitarras elétricas e arranjos pop.
A genialidade de Caldas está na capacidade de transformar influências diversas em uma linguagem musical coesa e acessível. Em Magia, ele equilibra a força dos tambores dos blocos afro com a leveza das melodias pop, criando um ritmo contagiante que convida ao movimento e à celebração. Sua voz, classificada como barítono, transita com maestria entre registros médios e agudos, enquanto sua habilidade com instrumentos como guitarra baiana, violão, baixo e percussão dá ao álbum uma textura rica e dinâmica.
A realidade social e o anacronismo de "Fricote"
Mas Magia não é apenas um álbum festivo. Por trás de suas batidas dançantes, há uma profunda conexão com a realidade social, política e cultural da Bahia nos anos 1980. O Brasil vivia o fim da ditadura militar (1964-1985), e a reabertura política trouxe uma efervescência cultural que se refletiu na música. Luiz Caldas, assim como muitos artistas de sua geração, soube capturar esse momento de transformação e traduzi-lo em sua obra.
Atualmente, Luiz Caldas reavaliou o contexto social da época e optou por não mais executar a canção "Fricote", reconhecendo seu caráter anacrônico em relação às suas limitações de raça e gênero. Sua decisão baseia-se em uma crítica consciente à letra, incorporando uma perspectiva ética alinhada com debates contemporâneos sobre racismo e misoginia. A canção, hoje interpretada como uma expressão de violência simbólica contra mulheres negras, possivelmente já tenha sido alvo de críticas por parte de dirigentes do Movimento Negro Unificado (MNU) na década de 1980, ainda que em um tom mais brando, considerando o cenário político e social da época.
O sujeito social Luiz Caldas estava conectado ao mundo real, e sua música refletia as mudanças de paradigmas culturais daquele período. O país ainda estava imerso no mais absoluto atraso intelectual e cultural nas instituições, herança da ditadura militar. Além disso, a Bahia, sob o domínio político do coronel Antônio Carlos Magalhães, permanecia alheia aos debates urgentes sobre as múltiplas formas de racismo e opressão, discussões que só ganharam força com as políticas públicas étnico-raciais e de gênero na primeira década do século XXI.
No contexto da época, "Fricote" era vista como uma letra que brincava com estereótipos e padrões de beleza, ao mesmo tempo em que dialogava com a identidade negra e a resistência cultural. A figura da "nêga do cabelo duro" pode ser interpretada como uma metáfora ambígua: enquanto desafia convenções raciais, também reforça estigmas, evidenciando os limites da abordagem da época. Já "Magia", canção que dá nome ao álbum, explora temas como o amor fugaz e a efemeridade do tempo, utilizando metáforas sensoriais que evocam imagens de marfim, cetim e estrelas-do-mar. Embora aparentemente leves, suas letras carregam uma densidade poética e uma crítica social implícita.
A reinterpretação crítica de "Fricote" na obra de Luiz Caldas reflete não apenas a evolução do próprio artista, mas também a transformação das discussões sociais sobre racismo e opressão de gênero. Sua decisão de não mais executar "Fricote" representa um avanço na compreensão dos impactos da música na formação da consciência coletiva, reafirmando a importância de revisitar o passado à luz das lutas contemporâneas por justiça e igualdade.
O legado de Luiz Caldas e o Axé Music
Quatro décadas depois do lançamento de Magia, o Axé Music segue vivo e influente, graças em grande parte à contribuição pioneira de Luiz Caldas. O gênero não apenas transformou o Carnaval de Salvador em um fenômeno global, mas também revelou grandes nomes da música brasileira, como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Carlinhos Brown. Além disso, o Axé Music teve um impacto econômico significativo, gerando empregos e movimentando a indústria do turismo na Bahia.
Em 2025, Luiz Caldas foi homenageado com a Medalha UBC pelos 40 anos do Axé Music, um reconhecimento justo para um artista que dedicou sua vida à música e à cultura baiana. Sua obra continua a inspirar novas gerações, e seu legado é uma prova de que a arte pode ser, ao mesmo tempo, popular e profundamente qualificada.
A magia que perdura
Luiz Caldas é mais do que o precursor do Axé Music; ele é um dos grandes nomes da música popular brasileira, um artista que soube unir tradição e inovação, festa e crítica, alegria e profundidade. Seu álbum Magia não apenas consolidou um gênero, mas também abriu caminho para uma nova estética sonora, valorizando a diversidade rítmica da Bahia e ampliando os horizontes da MPB.
Nestes 40 anos de Axé Music, celebramos não apenas um ritmo, mas uma história de resistência, criatividade e amor pela cultura. E, no centro dessa história, está Luiz Caldas, o gênio que transformou a magia da Bahia em música para o mundo.
REFERÊNCIAS
CALDAS, Luiz. Magia. Fonobrás, 1985.
BRITO, Hagamenon. Axé Music: A História de um Movimento Cultural. Salvador: Editora Bahia, 1987.
UBC. "Medalha UBC 2025: Homenagem a Luiz Caldas". Disponível em: www.ubc.org.br. Acesso em: 24 fev. 2025.
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