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terça-feira, 4 de março de 2025

Carnaval e Violência

Foto: Sérgio Pedreira/Bnews

Carnaval e Violência:

A resistência negra no grito de Igor Kannário



*por Herberson Sonkha  




O Carnaval de Salvador, celebrado como uma das maiores festas populares do mundo, revelou, mais uma vez, uma face sombria: a violência sistemática e desproporcional das forças de segurança pública contra a população negra e periférica. Em meio aos trios elétricos e à multidão que lotou as ruas da capital baiana, a atuação da Polícia Militar da Bahia (PM-BA), da Polícia Civil e da Guarda Civil Municipal foi marcada por agressões gratuitas, espancamentos e violações flagrantes dos direitos humanos. Nesse cenário, o cantor Igor Kannário, conhecido como o “Príncipe do Gueto”, emergiu como voz de resistência, denunciando a brutalidade policial e expondo o racismo institucional que permeia as forças de segurança.

Seu discurso no trio elétrico foi mais que uma crítica; foi um grito de resistência que ecoou as dores e lutas de uma população historicamente marginalizada. O apelido “Príncipe do Gueto” não é apenas um título carinhoso, mas um reconhecimento de sua conexão direta com as comunidades marginalizadas, que sofrem diariamente com a violência institucionalizada do Estado. Como afirma Fanon (1968, p. 32) em Os Condenados da Terra, “a violência do colonizador não é apenas física, mas também psicológica, destinada a manter o controle sobre os corpos e as mentes dos oprimidos”. Kannário, ao denunciar essa violência, coloca-se como uma voz que ecoa o sofrimento e a luta dessas comunidades.

Kannário não questiona a instituição policial em si, mas expõe a reincidência de práticas violentas e desumanas que parecem ser validadas pela própria corporação. Em seu discurso, o artista denuncia o ciclo de agressões que atinge especialmente corpos negros e periféricos, vítimas de um sistema que os empurrou para as favelas como resultado de um modelo econômico excludente. Segundo Wacquant (2001, p. 67) em As Prisões da Miséria, a marginalização das populações pobres e negras é um projeto político que serve aos interesses das elites, mantendo o status quo através da repressão. Ao vocalizar essa crítica em um espaço de grande visibilidade, o cantor rompe com a narrativa dominante e escancara o caráter seletivo da repressão estatal.


A truculência da PM-BA e o silêncio do governo

A Polícia Militar da Bahia, reconhecida como uma das mais violentas do país, agiu com total autonomia durante o Carnaval, decidindo quem deveria ser punido e de que forma. Relatos e imagens que circularam nas redes sociais mostram agentes utilizando tapas, socos, chutes, pontapés e golpes de cassetete contra jovens negros, em cenas que beiram a tortura. Essas ações não são casos isolados, mas parte de uma prática contínua e estrutural, que reflete o racismo institucional enraizado nas forças de segurança pública. Como aponta Ribeiro (2019, p. 89) em Racismo Estrutural, “a violência policial é um dos pilares do racismo estrutural, que opera através da criminalização da pobreza e da cor da pele”.

O silêncio do governador Jerônimo Rodrigues (PT) diante dessas violações é sintomático. Em vez de tomar medidas para coibir a truculência, ele elogiou a "atuação exemplar" da PM, reforçando a impunidade e a validação tácita dessas práticas. A Secretaria de Segurança Pública e os órgãos de direitos humanos também se mantiveram omissos, confirmando que a violência policial não é um desvio individual, mas uma orientação institucional. Segundo Zaffaroni (2006, p. 112) em O Inimigo no Direito Penal, “a omissão do Estado frente à violência policial é uma forma de conivência que perpetua a cultura da impunidade”.


A herança da ditadura e a militarização da polícia

A brutalidade policial no Carnaval de Salvador é um reflexo direto da militarização das forças de segurança pública, herança da ditadura militar (1964-1985). Durante esse período, consolidou-se uma lógica de guerra interna contra a população negra e pobre, que persiste até hoje. O modelo de policiamento ostensivo e repressivo, longe de garantir segurança, opera como um mecanismo de controle social e perpetuação do genocídio negro. Como afirma Caldeira (2000, p. 76) em Cidade de Muros, “a militarização da polícia transforma as cidades em campos de batalha, onde os inimigos são os próprios cidadãos”.

A Constituição Federal de 1988 garante, em seu artigo 5º, a inviolabilidade da vida, da integridade física e da dignidade humana. No entanto, esses princípios são sistematicamente violados pelas forças de segurança, que agem com impunidade e sem qualquer tipo de transparência. O Brasil, signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção contra a Tortura da ONU, ignora suas próprias diretrizes ao permitir que a violência policial ocorra sem punição. Segundo Sinhoretto (2014, p. 54) em A Gestão da Vida e da Morte nas Periferias, “a violência policial é um mecanismo de controle social que opera através da eliminação física e simbólica dos indesejáveis”.


A influência da extrema-direita e das práticas milicianas

A PM da Bahia é fortemente influenciada por pautas de extrema-direita e práticas milicianas, o que torna ainda mais evidente a simbiose entre repressão estatal e controle social violento. Essa realidade não será alterada pelo atual governo, que não apenas valida a truculência policial, mas a incentiva como forma de manter a ordem pública. Como aponta Mbembe (2018, p. 23) em Necropolítica, “o Estado moderno opera através da gestão da morte, decidindo quem pode viver e quem deve morrer”.

Enquanto não houver uma desmilitarização da polícia e uma ruptura com essa lógica colonial e autoritária, a violência estatal continuará sendo um instrumento de dominação de classe e racialização da repressão. O Carnaval de Salvador, que deveria ser um momento de celebração e liberdade, tornou-se mais um capítulo triste dessa história de opressão.

O grito de Igor Kannário no Carnaval de Salvador é um símbolo da resistência negra contra a violência policial e o racismo institucional. Sua denúncia escancara a realidade de um Estado que, em vez de proteger, reprime e criminaliza corpos negros. A omissão do governo baiano e a truculência das forças de segurança pública evidenciam a urgência de uma transformação estrutural no modelo de segurança pública do país. Enquanto isso não acontecer, o Carnaval seguirá sendo, para muitos, um espaço de luta e sobrevivência.



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Referências:  

ALVES, J. A. (2018). Quando falamos de violência policial, falamos de racismo. São Paulo: Editora Perspectiva.  

CALDEIRA, T. (2000). Cidade de Muros. São Paulo: Editora 34.  

FANON, F. (1968). Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.  

MBEMBE, A. (2018). Necropolítica. São Paulo: Editora n-1.

RIBEIRO, D. (2019). Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Pólen.  

SINHORETTO, J. (2014). A Gestão da Vida e da Morte nas Periferias. São Paulo: Editora Alameda.  

WACQUANT, L. (2001). As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Editora Zahar.  

ZAFFARONI, E. R. (2006). O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Revan.


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