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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Uma década de Mulher no Samba

Foto: Mulher no Samba

“Um grupo que preserva a tradição, promove a inovação
e mantém viva a tessitura de uma memória ancestral.”




*por Herberson Sonkha



VITÓRIA DA CONQUISTA/BA - O samba, enquanto expressão estética, política e existencial, reencontra sua tessitura mais profunda no trabalho do grupo Mulher no Samba, que desde 2015 ressignifica a presença feminina no cenário da música popular baiana. Fruto da confluência de trajetórias que atravessam não apenas territórios, mas também temporalidades e heranças culturais, o grupo — formado pelas artistas Lanny Cerqueira e Jossi Santana — inscreve sua existência no compasso dos tambores que ecoam do Recôncavo à diáspora atlântica.

No palco do Boteco da Naza, espaço que respira ancestralidade e modernidade, durante as celebrações do aniversário de Mãe Naza de Oyá, a apresentação do grupo configurou-se como mais que um espetáculo musical: tratou-se de um ato performativo, estético e político. Sob uma perspectiva de análise crítica que transcende os limites da crítica musical e dialoga com os princípios da crítica literária, este texto propõe uma imersão nos múltiplos estratos sonoros, simbólicos e poéticos que compõem o projeto do Mulher no Samba.


A voz, o corpo e os tambores de uma memória viva

Mais do que simplesmente revisitar clássicos do samba e do samba de roda, o Mulher no Samba opera uma verdadeira arqueologia sonora, onde cada batuque, cada arranjo, cada inflexão vocal não apenas reverbera a tradição, mas também tensiona seus limites, reposicionando-os no campo da memória ativa e da representatividade insurgente. Trata-se de uma proposta estética que alia rigor técnico, excelência composicional e uma contundente afirmação da identidade negra e feminina.

Lanny Cerqueira, dona de uma tessitura vocal que transita entre a delicadeza melódica e a potência interpretativa, carrega uma trajetória marcada pela pluralidade. De sua atuação em bandas de baile e micaretas nos anos 1990, passando por turnês na Europa e sua inserção no bloco afro Muzenza, emerge uma artista de trânsito fluido entre linguagens, gêneros e geografias, capaz de amalgamar tradição e contemporaneidade.

Por sua vez, Jossi Santana carrega no corpo-percussão uma linhagem ancestral. Sua trajetória, que abarca experiências no Muzenza, no Cortejo Afro e na banda feminina Iyabas, reafirma a percussão não como mero acompanhamento, mas como extensão sensível da própria voz, do corpo e da memória.


Musicalidade autoral: entre raiz e reinvenção

O repertório apresentado no Boteco da Naza estabeleceu uma tessitura que entrelaça composições autorais — não nomeadas no evento, mas reconhecíveis por sua assinatura poética — e releituras que escapam da armadilha do pastiche nostálgico. As obras próprias evocam, por um lado, a cadência do partido-alto e, por outro, a melancolia lírica do samba do Recôncavo, operando uma síntese em que a oralidade das rodas de samba se conjuga com elaborações harmônicas sofisticadas e soluções melódicas que revelam domínio técnico e sensibilidade narrativa.


Execução instrumental: precisão, organicidade e narrativa sonora

O aparato instrumental — violão, cavaquinho, surdo, bateria e pandeiro — constitui-se como arquitetura sonora de rigor e beleza. A coesão rítmica, espinha dorsal do samba, é tratada com meticulosa atenção: o pandeiro de Samuel de Oliveira, com levadas precisas, sustenta a dinâmica sem atropelar; a bateria de Binho Cerqueira, ora coluna vertebral, ora elemento de expansão, articula padrões tradicionais a intervenções que flertam com o drum’n’bass e com grooves urbanos; o surdo, soberano, ancora a pulsação, dialogando com o violão de Naldo Cerqueira, cuja harmonia — ora em acordes fechados, ora em contrapontos dissonantes — constrói uma ambiência de refinamento. O cavaquinho de João Marcelo, por sua vez, opera como elemento de costura, transitando entre a função rítmica e a elaboração melódica, com linhas que remetem tanto ao samba de raiz quanto às sutilezas do choro e às células do ijexá.

A textura resultante recusa-se às fórmulas fáceis: não se trata de reprodução, mas de reinvenção — uma identidade híbrida, na qual o regionalismo baiano e a matriz afro-atlântica se fundem aos arranjos urbanos e cosmopolitas.


Voz e interpretação: potência, sensibilidade e ato performativo

A performance vocal de Lanny Cerqueira destaca-se tanto pela excelência técnica — afinação irrepreensível, controle de respiração, domínio de dinâmica — quanto pela capacidade de imprimir subjetividade às releituras. Em "Foi um Rio que Passou em Minha Vida", de Paulinho da Viola, o que poderia soar como mero exercício de fidelidade à obra se converte em narrativa própria: a melancolia do original transmuta-se em canto de resiliência feminina, atravessado pela força da ancestralidade.

Essa dimensão performática aproxima-se, sem sombra de dúvida, da expressividade de Mariene de Castro, na medida em que ambas compreendem o ato de cantar como gesto ritual, como manifestação de corporeidade negra e feminina.


Releitura de clássicos: ritual, invenção e diálogo intergeracional

O repertório de clássicos — Martinho da Vila, Alcione, Zeca Pagodinho, Paulinho da Viola — longe de se reduzir a homenagem convencional, é transfigurado. Em "Coração Leviano", a acentuação sincopada da bateria, tensionada por breaks do pandeiro, cria uma camada de tensão rítmica que reatualiza o clássico sem romper com sua essência. Já em "Não Deixe o Samba Morrer", a interpretação adquire contornos ritualísticos, evocando a circularidade dos pontos de umbanda — um gesto estético que dialoga diretamente com o contexto religioso de Mãe Naza de Oyá.

O violão, com harmonias que flertam com o jazz, e a percussão, que incorpora elementos de ritmos afro-baianos, reforçam essa atmosfera que transita entre o sagrado e o profano, entre a roda de samba e o terreiro.


Considerações finais: Samba como ato de fala e de resistência

O que se viu no Boteco da Naza não foi apenas um espetáculo musical, mas um manifesto. Um manifesto que afirma, sem concessões, que o samba é um território de memória, de disputa simbólica e de resistência. Mulher no Samba comprova que a tradição não é um relicário imóvel: é matéria viva, que se (re)constrói na fusão do ancestral — os atabaques, a devoção a Oyá — com o contemporâneo — a bateria que introduz camadas de groove, o violão que arrisca tessituras jazzísticas.

Se há uma crítica possível, ela reside na prudência harmônica do grupo, que poderia, sem prejuízo à matriz do samba, ousar um pouco mais na exploração de modulações e estruturas menos convencionais. No entanto, tal reserva, se é limitação, é também escolha estética consciente, que privilegia a inteligibilidade e a pulsação coletiva do gênero.

Ao fim e ao cabo, Mulher no Samba consolida-se como referência simbólica e técnica no cenário cultural de Vitória da Conquista. Mais do que um grupo musical, elas constituem um projeto político, poético e existencial que, como bem sintetizou Mãe Naza de Oyá em seu discurso de encerramento, “faz do samba um terreiro de palavras, corpos e tambores”.


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