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sábado, 31 de maio de 2025

O Espetáculo da Punição Seletiva

Foto: G1

O Espetáculo da Punição Seletiva

A prisão de MC Poze do Rodo e a 

blindagem do crime da elite branca




*por Herberson Sonkha 



A prisão de MC Poze do Rodo no último dia 28 de maio não foi apenas uma operação policial. Foi um ritual público, milimetricamente arquitetado, para reafirmar, pela via da humilhação e do terror penal, a função estrutural do racismo e da criminalização da pobreza no Brasil. Um espetáculo punitivo, encenado pelos aparelhos de repressão do Estado, transmitido em cadeia nacional e repercutido nas redes sociais como parte de um ciclo sistemático de domesticação dos corpos pretos e periféricos.

A cena, grotesca e violenta, é reveladora: dezenas de agentes fortemente armados, fardas ostentando o aparato bélico do Estado, armas de grosso calibre, câmeras estrategicamente posicionadas. Do outro lado, um homem negro, jovem, descalço, sem camisa, algemado, arrastado, com sua identidade cultural dilacerada. Seus adornos — correntes, bonés, óculos, bermudas — arrancados como parte de um ritual simbólico destinado a desnudar não apenas seu corpo, mas sua humanidade, sua existência e sua legitimidade social.


Nada disso é casual. Tudo é estrutural

O Estado brasileiro, em sua face penal, não age para proteger a sociedade do crime. Age, sim, para proteger a propriedade privada, a ordem de classes, a hegemonia branca e o capitalismo racializado que estrutura historicamente o país. Como bem nos alerta Eugenio Raúl Zaffaroni (2003), “o direito penal é o ramo mais violento do sistema jurídico do Estado burguês e exerce sua violência de maneira seletiva, dirigida contra os pobres, os negros e os marginalizados”.

MC Poze do Rodo, jovem negro oriundo da favela, tornou-se símbolo de uma contradição inaceitável para a lógica racista da sociedade brasileira: um corpo preto que acumulou riqueza, visibilidade e poder simbólico sem autorização das elites econômicas, políticas e midiáticas que administram a divisão racial da riqueza no Brasil.

O aparato estatal tratou, então, de produzir sobre esse corpo negro o que Loïc Wacquant (2007) denomina de “gestão penal da marginalidade”, onde não há espaço para integração, mas para controle, repressão e humilhação pública. Trata-se de uma pedagogia do castigo, onde o exemplo de Poze serve para reafirmar a mensagem histórica: o sucesso, quando vem de corpos negros e periféricos, será permanentemente criminalizado, monitorado, cerceado e, se necessário, destruído.

O contraste beira o obsceno quando olhamos para a prisão de Rogério de Andrade, empresário branco, representante do que há de mais nefasto no submundo do crime organizado carioca: lavagem de dinheiro, milícias, assassinatos, controle territorial e econômico de práticas criminosas enraizadas no tecido urbano do Rio de Janeiro.

Conduzido com extrema cordialidade, sem algemas, de camiseta passada, bem vestido, tratado com deferência pela polícia e pela mídia, Rogério de Andrade encarna a expressão mais sofisticada daquilo que a criminologia crítica identifica como “delinquência de colarinho branco”, conceito que, na prática do Estado brasileiro, é sistematicamente blindado pelo sistema penal.

Como afirma Alessandro Baratta (1991), “o sistema penal não é uma resposta ao crime, mas um instrumento de controle social a serviço da dominação de classe”. No Brasil, acrescentemos, a dominação de classe é indissociável da dominação racial, herança direta da colonização e da escravidão.

O caso MC Poze do Rodo não revela uma anomalia. Revela a própria normalidade do funcionamento da justiça penal brasileira, onde a seletividade não é falha, é método; não é distorção, é projeto; não é desvio, é regra de funcionamento.

Como pontua Angela Davis (2003), “as prisões não foram projetadas para resolver o problema do crime, mas para gerir os excedentes humanos que o capitalismo racial produz”. A prisão, portanto, não é solução para o crime, é instrumento de gestão da desigualdade.

E mais: o direito penal, longe de ser neutro, é, na definição de Nilo Batista (1990), “o direito penal do inimigo interno”, aquele aplicado sistematicamente contra pobres, pretos e periféricos, enquanto os crimes do andar de cima são convertidos em questões administrativas, fiscais ou, quando muito, alvo de processos lentos, morosos, onde impera o garantismo seletivo para brancos ricos e empresários do crime.

O aparato jurídico-repressivo brasileiro não combate o crime em abstrato. Ele administra quem pode ser nomeado como criminoso. E nesse jogo, os limites são demarcados pela classe, pela cor da pele e pelo lugar que se ocupa na hierarquia social do capital.


A blindagem do crime das elites — seja ele praticado por empresários, políticos, banqueiros, donos de milícias ou gestores de esquemas bilionários — não é uma falha ocasional. É a própria racionalidade do sistema. Um sistema que protege quem saqueia, explora, destrói, mata e lucra; e pune, humilha, extermina e encarcerra quem ousa sobreviver à margem das engrenagens da acumulação capitalista e do racismo estrutural.

O editor do Blog do Sonkha reafirma: a seletividade penal não é apenas o sintoma de um Estado racista e capitalista. É sua própria lógica de funcionamento. O caso de MC Poze do Rodo não é uma exceção. É a regra que rege um Estado penal cujo maior crime é sua própria existência enquanto instrumento de opressão racial, social e econômica.

Enquanto corpos negros seguem arrastados nas favelas, algemados e desumanizados nas periferias, o crime das elites segue blindado, higienizado, legalizado e absolutamente funcional para a reprodução do capitalismo dependente, subdesenvolvido, periférico e racializado.

Neste país, o maior crime não é roubar, matar ou traficar. O maior crime é nascer negro, pobre e ousar sobreviver fora dos limites impostos pela ordem colonial-capitalista.



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Referências consultadas:

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

DAVIS, Angela. Abolicionismo Penal: Uma alternativa ao cárcere. São Paulo: Boitempo, 2003.

MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

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