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sábado, 24 de maio de 2025

O Banquete dos Abutres

A onça, a sopa e o presidente:
a metáfora brutal que revela as entranhas do Brasil




*por Herberson Sonkha




Uma onça morta, esfolada, picada em pedaços, fervendo numa panela. A imagem — que percorreu as redes sociais — é mais que um episódio isolado de crueldade. Ela revela, em sua crueza, uma síntese perfeita da dinâmica social brasileira: um país que devora seus símbolos, seus líderes e, sobretudo, seus próprios pobres.

No artigo “A Sopa, a Onça e o Presidente Lula”, a escritora Sara Goes expõe uma cena que é tudo, menos banal. Uma fake news envolvendo a primeira-dama, Janja, serviu de combustível para um ciclo de desinformação que, em poucas horas, tomou proporções virais, atravessando as trincheiras da política, da mídia e das redes. Por trás do meme, do deboche e da indignação seletiva, pulsa uma engrenagem muito bem azeitada: a máquina de reprodução da desigualdade.

O episódio, à primeira vista grotesco, não é exceção — é a regra. É a regra de um país onde a fome, a violência e a desinformação não são tragédias isoladas, mas instrumentos sistemáticos de controle social. Onde a espetacularização da miséria e a manipulação simbólica se tornam formas eficientes de neutralizar qualquer possibilidade de transformação concreta.

Enquanto o governo brasileiro firma acordos internacionais de impacto histórico, constrói pontes diplomáticas e busca recolocar o país no cenário global, a grande mídia — convertida em aparelho de reprodução ideológica dos interesses dominantes — prefere estampar na manchete um escândalo fabricado, com todos os ingredientes que alimentam o ressentimento, o preconceito e a alienação.

O caldo que ferve não é só o da onça. É o caldo ideológico que mistura conservadorismo, antipolítica, racismo estrutural, misoginia e uma repulsa crônica a tudo que remeta à ascensão dos pobres, dos pretos, das mulheres e dos trabalhadores. É desse caldo que se nutre parte significativa da opinião pública, moldada não pela realidade, mas pela fabricação permanente de inimigos simbólicos.

O presidente Lula, nesse jogo, não é apenas uma liderança política. É, sobretudo, um significante carregado de contradições. Para as elites, representa a ameaça permanente de ruptura da ordem que garante privilégios seculares. Para parte das classes médias, é o espelho incômodo de sua própria insegurança social e do medo de perder a frágil condição de consumidores endividados que se imaginam classe média, mas vivem à beira do colapso. Para setores da própria esquerda, paradoxalmente, Lula é visto tanto como salvação quanto como obstáculo, fruto de uma dependência política que ainda não conseguiu parir novos sujeitos históricos capazes de assumir o protagonismo da transformação.

A sopa da onça — e tudo o que ela carrega de símbolo — não é uma anedota. Ela escancara o funcionamento de uma sociedade que não se limita a explorar economicamente os seus trabalhadores, mas que também os explora simbolicamente. Uma sociedade que precisa transformar seus líderes, seus corpos e suas histórias em espetáculo, em mercadoria, em meme, em escárnio.

O Brasil real — aquele que não aparece nas colunas de economia nem nos editoriais dos grandes jornais — é o país onde a fome não é um acidente. É uma estratégia. Onde a precarização da vida, a criminalização da pobreza e o desprezo pela inteligência coletiva são peças essenciais da engrenagem que mantém a concentração de riqueza, poder e privilégios.

Quando Sara Goes desenha a metáfora da onça fervendo na panela, não está apenas descrevendo uma cena grotesca. Está nos obrigando a olhar para o espelho. Um espelho que reflete uma sociedade incapaz de se reconciliar com seu próprio povo, que alterna entre o desejo de consumir os símbolos populares e o ódio de classe que os impede de existir plenamente.

O que se coloca, então, é um dilema estrutural: seguir fervendo no mesmo caldo — onde a fome, a ignorância e a violência são recicladas como se fossem fatalidades — ou romper de vez com a lógica que naturaliza o inaceitável. E esse rompimento não virá de cima. Virá, como sempre, de baixo. Do chão da fábrica, do campo, da periferia, das quebradas, das mulheres, dos pretos, dos trabalhadores que, apesar de tudo, continuam resistindo.

Até lá, seguiremos assistindo — ou participando — do banquete dos abutres. Onde a onça, a sopa e o presidente se confundem. E onde, mais uma vez, quem paga a conta é o povo.

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