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quarta-feira, 14 de maio de 2025

13 de maio: Abolição para Quem?

Imagem: Ademar Cirne


*por Ademar Cirne


 


Treze de maio de 1888, envolto em um conturbado cenário político interno – face à transição do Império para a República – e diante das paralelas transformações externas ocorridas na Europa, que consolidavam as estruturas capitalistas, via a Inglaterra, reforçando o desejo de aumentar o número da sua mão de obra assalariada, o Brasil foi testemunha de um importante fato histórico: a abolição da escravidão.

Em 2025 se comemora cento e trinta e sete anos da histórica data em que a Princesa Isabel, filha do Imperador Pedro II, assinou a Lei Áurea, que decretou o fim do secular período de escravidão no Brasil. É desta maneira que, tradicionalmente, se propaga esta importante passagem da história brasileira nos bancos das escolas espalhadas pelo país: a abolição da escravidão como uma dádiva concedida pelos senhores e governantes por estes entenderem que era chegada a hora de todos sermos iguais.  De acordo com o ensinamento repetido dia após dia, o ato da Princesa Isabel foi responsável por equiparar os negros libertos aos brancos, inserindo os antigos escravos em um contexto social igualitário, onde não haveria descriminação e racismo.

No entanto, não foi isto que aconteceu. As teorias científicas introduzidas no Brasil a partir da segunda metade do século XIX e consolidadas durante o século XX, muito bem recebidas por pensadores como Nina Rodrigues, João Batista Lacerda e Sílvio Romero, que acreditavam e defendiam o embranquecimento da população brasileira, demonstravam que, apesar de liberta, a população negra estava em condição de inferioridade e com o tempo deveria desaparecer.

O branqueamento, todavia, não poderia deixar de ser entendido também coma uma pressão cultural exercida pela hegemonia branca, sobretudo após a Abolição da Escravatura, para que o negro negasse a si mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma espécie de condição para se integrar (ser aceito e ter mobilidade social) na nova ordem social (YARI e BENTO, 2012, p. 6).

Apesar do Brasil está vivendo um momento de grande transformação política devido à crise da monarquia e à proclamação da república em 1889, um ano após a abolição da escravidão, o que poderia parecer um momento para construção de melhores condições de vida para os negros, não foi o se verificou, pois, a república foi proclamada por uma elite agrária e militares do exército que tinham, em alguns momentos, posições mais radicais que os conservadores do império.

Ocorre que, diverso do que é difundido, o ato formalizado pela Princesa em 1888 serviu, muitas vezes, para mascarar um contexto de sofrimento, racismo e humilhação vivenciado pelos negros, por longos tempos. Muito pouco (ou quase nada) mudou na vida daqueles que, por séculos, foram reféns de um sistema atroz e desumano, que até os dias atuais se veem deixados em segundo plano no momento em que se discute a história do Brasil.

A campanha abolicionista, em fins do século XIX, mobilizou vastos setores da sociedade brasileira. No entanto, passado o 13 de maio de 1888, os negros foram abandonados à própria sorte, sem a realização de reformas que os integrassem socialmente. Por trás disso, havia um projeto de modernização conservadora que não tocou no regime do latifúndio e exacerbou o racismo como forma de discriminação. (MARIGONE,Gilberto, 2012)

Na verdade, em poucos bancos de salas de aula tem-se a oportunidade de aprender que a libertação do povo negro foi resultado de um permanente e incessante conjunto de lutas travadas contra o regime e contra os escravocratas, por mais de três séculos.

Os africanos passaram pelo processo de escravização imposto pelos colonizadores europeus que, de forma violenta, retiraram os negros do continente africano, romperam seus laços familiares, submeteram estes a péssimas condições de vida durante a viagem nos navios negreiros, e durante quase 400 anos de escravidão: 

A retirada violenta de africanos de suas comunidades, conduzidos para trabalhar como escravos em terras distantes, foi a solução encontrada pelas potências coloniais europeias para povoar e explorar as riquezas tropicais e minerais das colônias no Novo Mundo. A colônia portuguesa (o Brasil) dependia de grande suprimento de africanos para atender às necessidades crescentes de uma economia carente de mão-de-obra. A migração transatlântica forçada foi a principal fonte de renovação da população cativa no Brasil, especialmente nas áreas ligadas à agricultura de exportação, como cana-de-açúcar. Submetida a péssimas condições de vida e maus-tratos, a população escrava não se reproduzia na mesma proporção da população livre. Era alto o índice de mortalidade infantil e baixíssima a expectativa de vida. (ALBUQUERQUE e FILHO, 2006, p. 39).

Além de toda essa vida angustiante, se viam impelidos a agirem de forma violenta como na Revolta dos Búzios (Conjuração Baiana), em 1789 e Revolta dos Malês, em 1835, nas construções de quilombos, ou nas ações, também violentas, dentro dos engenhos contra os seus senhores, feitores e capitães do mato.

Apesar de tudo isso, o povo escravizado resistiu e reconstruiu sua identidade cultural e religiosa, utilizando os espaços sagrados (terreiros de candomblé, rodas de capoeira) nos quais iam reconstruindo as bases sociais dos grupos africanos, no Brasil.

Haviam também práticas de resistência mais estratégicas como a prática de abortos, para que seus filhos não nascessem e viessem a ser mais um instrumento de acumulação primitiva do capital dos senhores, por meio do trabalho escravo, vítimas do processo de diáspora africana que chegou a trazer para o Brasil, via tráfico negreiro, mais de quatro milhões de negros que, escravizados, eram utilizados em vários tipos de funções, desde trabalhar na lavoura, nos serviços domésticos e até de ganho, tendo uma carga absurda e desumana de trabalho. Muitos se esquecem (ou preferem omitir) a informação que a resistência contra à escravidão iniciava-se ainda nos navios negreiros, quando muitos escravos provocam própria morte.[1] A posteriori, quando negociados pelos traficantes, a batalha reiniciava e a tentativa de fuga era imediata, ainda mesmo no transporte para as Senzalas, onde mais uma vez, muitos terminavam morrendo.

E não é só. Não são poucos os casos que relatam os abusos sexuais perpetrados contra as escravizadas pelos Senhores de Engenho, que na maior parte das vezes possuía a compreensão clara das duas supostas funções da negra: a trabalhadora braçal durante o dia e o complemento sexual à noite. Outra forma comum de resistência à escravidão que raramente é trazida à baila é o suicídio, realizado inúmeras vezes por aqueles que preferiam escapar em definitivo do sofrimento carnal ao invés de morrer um pouco mais a cada dia, sem dignidade, força e liberdade.

Alternativa diversa de luta, que foi criando espectro durante o século XVII, foram as fugas dos nossos irmãos para as matas e serras distantes na tentativa de reconstrução de uma organização social semelhante as que tinham na África.

Desta prática nasceram os primeiros dos muitos quilombos que se espalham pelo Brasil ao longo de toda escravidão, atuando como verdadeiros locais de proteção e guetos propagadores das ideias de liberdade, que não demoraram a alcançar os centros urbanos.

É a partir desta propagação de ideias de liberdade e igualdade que surgem instituições, como, por exemplo, as associações beneficentes e beneméritas que se agrupavam com objetivo se arrecadar fundos para compra de alforria e cria previdências com o intuito de sustentar os negros mais velhos que mesmo livres[2] não tinha como se sustentar. Diz-se, por isso, que a Alforria nunca era uma conquista solitária, uma vez que resultava de uma rede de solidariedade e esforços conjuntos dos companheiros, pais, avós, padrinhos e madrinhas que se uniam a fim de conceder liberdade àqueles que se encontravam presos nas malhas da escravidão.


Em 1751, na cidade do Salvador, Jerónimo da Conceição, viúva, libertou Marcelino, mulato, com dois ou três anos de idade, depois de ter recebido 30 mil contos pago por seu pai, Floriano Alares Pereira. Na mesma cidade, em 1818, a Freira Maria Clara de jesus, do Convento de Santa Clara do Desterro libertou um recém-nascido depois de receber 20 mil réis pagos pela mãe da criança. Os padrinhos concorriam frequentemente com quantias para alforria dos afilhados, em fevereiro de 1871, na cidade de Porto alegre, o pequeno Ernesto, filho de Inocência e neto de Gertrudes, foi liberto após sua avó ter pago 130 mil réis a sua senhora. (FILHO, Valter Fraga, 2006)

Todas estas informações e circunstâncias nos remetem a um dado estatístico[3] pouco ensinado nos bancos das escolas: apenas 30% dos negros do Brasil foram beneficiados com a Lei Áurea, já que, quando ela foi assinada pela Senhora Isabel cerca de 70% dos negros do Brasil já estavam livres como resultado de todas essas formas de luta que relatamos acima.

Mesmo antes da abolição formal ser assinada, os negros e negras já se utilizavam de estratégias inteligentes para garantir a sobrevivência do seu grupo social, após a abolição que estava prestes a acontecer. Uma destas estratégias pode ser vista, mais uma vez, analisando dados estatísticos encontrados nos registros dos arquivos públicos da Bahia[4]: a maior parte das alforria que os grupos familiares negociam e compravam dos senhores e senhoras assim como as compras feitas pelas associações protetora dos negros, criadas a partir do século XIX, sempre deram prioridade aos cativos do sexo feminino, pois se entendia que libertas estas teriam seus filhos já livres o que seria importante para continuar a existência do negro no Brasil.

Diante do todo exposto, reside a pergunta: será que temos realmente algum motivo para continuar ensinado aos nossos alunos esta História que nos foi contada? Por quanto tempo esta versão positivista da História brasileira será transmitida pelos livros didáticos adotados pelo governo? O que motiva a escrita de uma história que ainda exalta o treze de maio como marco libertador do povo negro, sem uma visão crítica? Porque os livros de história omitem o que aconteceu no dia 14 de maio de 1888? Como bem conta, cantando, o compositor Lazzo Matumbi:

No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci
Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia
Um dia com fome, no outro sem o que comer
Sem nome, sem identidade, sem fotografia
O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver.
(PORTUGAL,Jorge e MATUMBI,Lazzo, 2018[5]).

Vale a pena salientar que em nenhum momento busca-se desprezar o ato formal que pôs fim a escravidão, contudo, em face do modo como até hoje ele é encarado e, notadamente em razão da sobrevalorização do treze de maio de 1888, nunca é demais se questionar: 13 de maio? Para quem, meu povo?


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* Ademar Cirne Mestre em Ensino das Relações Étnico- Raciais UFSB; Pós-Graduado em História do Brasil pela PUC/MG; Graduado em História pela UFBA; Coordenador do CEN – Coletivo de entidades Negras; Ogã de Yemanjá do Terreiro Ilê Axé Oxumarê.


[1] Em média 40% dos cativos transportados para o Brasil através da maior diáspora que o mundo moderno conheceu (cerca de 5 milhos de negros forma traficados para nossas terras), não chegavam aqui com vida.


[2] Em 1885, foi promulgada a Lei do Sexagenário que libertou todos os escravos com mais de sessenta anos.


[5] Disponível em: Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia - IRDEB. Acesso em 12 de maio de 2020.

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