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Terceirização do São João é a exclusão do povo conquistense do forró
Terceirização do São João é a exclusão
do povo conquistense do forró:
"Desmonte, privatização da Cultura
e a morte do São João popular
em Vitória da Conquista"
*por Herberson Sonkha
VITÓRIA DA CONQUISTA/BA — A quem serve a festa? Essa é a pergunta que ecoa nas ruas, nos terreiros, nos palcos silenciosos e nos becos apagados da cidade de Vitória da Conquista, onde a atual gestão municipal promove uma ofensiva sem precedentes contra a cultura popular. Com uma caneta na mão e interesses empresariais no bolso, a prefeita bolsonarista — defensora incondicional do Estado mínimo e da lógica ultraliberal — desmantela as bases de um projeto coletivo de valorização da cultura que, por mais de duas décadas, fez de Conquista uma referência nacional na preservação e promoção do São João tradicional.
O que antes era política pública, agora virou contrato privado
A terceirização da maior festa popular do município, o São João, é o exemplo mais escandaloso desse projeto de destruição. Entregue nas mãos do empresário Marcelo Brito — o mesmo que há anos opera a pasteurização cultural por meio de festivais de verão e inverno voltados a uma elite de consumo — o São João perdeu sua alma. O trio pé de serra cede espaço ao som pasteurizado do sertanejo pop, ao arrocha plastificado e, segundo a própria prefeita, “teremos sertanejo, arrocha e ATÉ forró”. O forró, símbolo de resistência e identidade do povo nordestino, é agora tratado como adereço, figurante em sua própria história.
Cultura não é mercadoria
O São João de 2025 marca o ápice de uma ruptura: não se trata mais de organizar uma festa, mas de operar uma política deliberada de substituição cultural. O que está em curso é um processo de expropriação simbólica: esvazia-se a memória coletiva e substitui-se o patrimônio imaterial por produtos descartáveis, embalados sob medida para os algoritmos do lucro. A cidade perde não apenas um evento — perde sua voz, seu sotaque, sua identidade.
Ao deslocar a festa do Centro Cultural Glauber Rocha — localizado na zona Oeste da cidade, região marcada por exclusão histórica e carência de investimentos culturais — para o Parque de Exposições, a atual administração reforça a exclusão territorial. Periféricos do Oeste e do Leste são empurrados para fora da festa que, antes, lhes pertencia.
Algumas pessoas falam em "cultura de eventos", como até aliados nossos mencionam. Entretanto, é preciso enfatizar que o Espaço Cultural Glauber é um locus de produção de cultura estruturante, onde havia um conservatório mais próximo dos bairros perifericos (o governo bolsonarista retirou do Glauber para dificultar o acesso da população periférica), a Casa da Capoeira, uma lutheria (oficina de instrumentos musicais), 120 boxes de artesanato, a maior área de eventos do interior da Bahia — construída pelo município —, localizada exatamente na fronteira da cidade para atender a todos. Além disso, a Praça CEU, um projeto valiosíssimo para a produção cultural da periferia conquistense, reforça essa dinâmica.
A nova roupagem do São João é feita sob medida para um público consumidor: o povo é espectador passivo, se puder pagar. Bebidas caras, comidas gourmetizadas e acesso limitado fazem parte de uma estética de opressão. O projeto da atual gestão não apenas elimina a cultura popular — ele ergue em seu lugar um simulacro de modernidade que serve à elite local. Não é um governo da cultura, é um governo da propaganda, da especulação, do entretenimento mercantil.
Memória como resistência
A política cultural construída ao longo dos últimos vinte anos — com participação popular, editais públicos, valorização dos fazedores de cultura e descentralização territorial — virou entulho administrativo nas gavetas da atual gestão. Projetos emblemáticos como Por isso que eu canto, Tom da Terça, Fechando o Beco, A Voz do Muro, os editais de teatro e dança, os memoriais do Forró e do Reisado, os concursos de ruas ornamentadas, de mini presépios, o festival de danças juninas e o Domingo por Encantos — todos desaparecem sob o rolo compressor de uma política que transforma cultura em ativo financeiro e artista em prestador de serviço terceirizado.
Não se trata de nostalgia. Trata-se da denúncia de um modelo de cidade onde a dignidade do povo é apagada em nome da rentabilidade de poucos. Um modelo que reproduz as mesmas desigualdades que marcam as estruturas econômicas do país: concentração de renda, expropriação do comum, apagamento dos territórios e domesticação das subjetividades. A elite consome; o povo se cala.
Quando a festa vira trincheira
Em tempos onde o Ministério da Cultura foi destruído, e artistas sem qualquer enraizamento comunitário são promovidos apenas por sua capacidade de financiar campanhas políticas da extrema-direita, o que ocorre em Vitória da Conquista não é um caso isolado. É a expressão local de uma política nacional que transforma direitos em serviços, cidadãos em consumidores e a arte em propaganda.
A cultura, nesse modelo, deixa de ser instrumento de emancipação e se converte em espetáculo de dominação. A festa popular é tomada por oligarquias culturais, a criatividade é domesticada por editais dirigidos, a espontaneidade dos bairros cede lugar à lógica do camarote. Estamos diante de um laboratório de controle simbólico em plena festa junina.
Mas há resistência
Ela pulsa nos grupos de reisado que ainda se organizam sem apoio. Nas quadrilhas que ensaiam em escolas abandonadas. Nos músicos de sanfona que se recusam a tocar o que o mercado exige. Nas comunidades que, apesar de tudo, ainda celebram, mesmo sem palco, mesmo sem luz, mesmo sem verba.
Vitória da Conquista — cidade de poetas, cantadores, griôs e andarilhos — não se renderá tão fácil. Porque o São João não é contrato. É herança. É memória coletiva. É território de disputa simbólica.
E nós, do povo, ainda sabemos dançar com dignidade, mesmo quando tentam apagar a música.
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* Herberson Sonkha é poeta, compositor, educador, editor do Blog do Sonkha, colunista do Conquista Repórter e militante negro comunista em defesa da cultura popular e da justiça social.
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