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O fio da esperança em Anagé
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Fotos: Iranildo Freire |
O fio da esperança em Anagé:
a educação como ato de ruptura
*por Herberson Sonkha
ANAGÉ/BA – A reconfiguração da escola pública da rede estadual em Anagé inscreve-se em um esforço mais amplo conduzido pelo governo Jerônimo Rodrigues (PT), que tem investido na ampliação e consolidação dos Colégios de Tempo Integral em toda a Bahia. Sob a coordenação do NTE 20, dirigido pela professora Lenira Figueiredo, as ações têm promovido uma reestruturação material e pedagógica profunda: laboratórios modernos, cozinhas industriais, refeitórios, quadras cobertas, campo society e piscina profissional passam a compor o cotidiano de uma escola que se propõe a romper com o modelo fragmentado dos três turnos. Essa política de tempo integral não apenas reorganiza o uso do tempo e do espaço escolares, mas representa uma virada pedagógica: garante permanência, aprofunda vínculos e assegura aos estudantes o direito à formação integral — articulando cidadania, cultura, ciência e identidade territorial.
Nas franjas secas do semiárido baiano, onde os sertões ainda carregam as marcas do latifúndio, do clientelismo político e da pobreza hereditária, resiste uma cidade chamada Anagé. Não apenas resiste: pulsa. E é dessa pulsação inquieta, onde o solo rachado guarda sementes de insubmissão, que renasce uma esperança — política, pedagógica e cultural — forjada na crítica, na história e na luta de classes. Essa esperança atende pelo nome de Iranildo Freire Oliveira.
Historiador, professor da rede estadual de ensino e militante das causas populares, Iranildo assume a direção do Colégio Estadual de Tempo Integral de Anagé em um momento decisivo. Mais do que ocupar uma função técnica, sua presença ali representa o que Antonio Gramsci chamaria de “intelectual orgânico” da classe trabalhadora: um sujeito comprometido não apenas com a transmissão de saberes, mas com a disputa política do imaginário, com a transformação das condições concretas de existência do povo.
A história de Anagé, como a de tantos municípios interioranos do Brasil profundo, foi escrita sob o signo das oligarquias. Famílias que transformaram o espaço público em extensão de seus interesses privados, usaram a máquina pública como instrumento de perpetuação de privilégios e mantiveram as massas rurais e periféricas afastadas do conhecimento formal e da participação nos processos decisórios.
Nesse contexto, a escola pública foi, majoritariamente, reduzida a um aparelho reprodutor da dominação — como já alertava Louis Althusser —, funcionando como instância de disciplinamento e apagamento cultural das camadas subalternas. O saber crítico, a reflexão histórica, a linguagem como exercício de libertação e a cultura popular como epistemologia foram sistematicamente rechaçados em favor de um ensino tecnicista, alienado e desarticulado das lutas concretas.
A função histórica dessa forma de educação não é neutra: como denunciava Karl Marx, a classe dominante, ao controlar os meios de produção material, tende também a controlar a produção simbólica e cultural, perpetuando-se no poder não apenas pelo capital acumulado, mas pela formação de subjetividades conformadas e pela exclusão do pensamento crítico. Trata-se de uma engrenagem complexa de poder, onde a escola, muitas vezes, funciona como filtro de classe, limitando o acesso da juventude negra, pobre e campesina às universidades públicas, aos cursos mais disputados e aos concursos públicos.
É nesse ponto que a atuação de Iranildo Freire se torna emblemática: ao assumir a direção do colégio, ele não propõe apenas uma gestão administrativa, mas uma inflexão epistemológica. A escola, em sua concepção, deve ser o contrário da neutralidade: deve posicionar-se ao lado dos oprimidos, conectar-se à cultura local, à memória da terra e aos saberes insurgentes que sobrevivem nos terreiros, nas roças, nas feiras livres, nos quintais e nas quebradas. Uma educação que se recusa a ser cúmplice do silenciamento.
"Tudo feito sem piseiro, sem sofrência e sem forró estilizado... Só forró pé de serra, mesmo", sinaliza o professor Iranildo Freire.
Para Iranildo:
"No compasso do triângulo, no chiado da sanfona e no batuque do coração coletivo, o Colégio Estadual de Tempo Integral de Anagé abriu suas portas — e suas almas — para celebrar, preservar e fortalecer nossas raízes. Com o projeto Balaio Cancioneiro das Alvoradas Juninas de Anagé, fizemos muito mais do que uma festa: fizemos história, memória e resistência cultural."
Resgatar as "Quadrilhas, forró, quermesse, brincadeiras e, sobretudo, reflexão e debate. Entre passos marcados e risadas soltas, também nos sentamos para pensar e discutir os desafios do nosso tempo: o esgarçamento das tradições e a urgente necessidade de manter vivo aquilo que nos faz povo, que nos faz comunidade" faz parte do resgate, proteção e promoção da cultura local, com vistas a fortalecer a identidade sociocultural da população anageense.
A construção coletiva, romper com o modelo verticalizado, faz parte da compreensão de Iranildo, que, segundo o educador, "Atendemos ao chamado de Beto Guedes: 'Um mais um é sempre mais que dois.' E assim seguimos, construindo uma educação que abraça a cultura, que reverencia a identidade e que planta, nas novas gerações, o Sal da Terra e o Sol do Sertão."
Iranildo provoca expectativas promissoras ao afirmar: "Outros projetos virão. E desde já, quem carrega consigo o compromisso com a transformação, com a beleza e com o coletivo... está intimado a se somar. Aguarde: muito em breve, você será chamado para nos ajudar".
Em um município onde a maior parte da população ainda sobrevive à base de trabalhos informais e precários, sem acesso a políticas públicas efetivas, a escola precisa funcionar como porta de saída — ou melhor, como trincheira de entrada: entrada no mundo da cultura, no universo da cidadania, nos espaços historicamente negados à classe trabalhadora. A educação, nesse cenário, não é apenas um direito: é uma urgência política.
Ao transformar o Colégio de Tempo Integral em um espaço de valorização da cultura local, de experimentações pedagógicas e de formação política, Iranildo reacende a potência da escola como espaço de invenção coletiva. Uma escola que dialoga com Paulo Freire, mas também com Florestan Fernandes, com Darcy Ribeiro, com as mães de estudantes, com os movimentos sociais, com os trabalhadores e trabalhadoras rurais, com os jovens de pele queimada pelo sol e sonhos adormecidos.
Sua presença ali representa mais do que uma direção escolar. É um projeto civilizatório em disputa. É o enfrentamento direto ao projeto burguês de sociedade, que se organiza pela exclusão, pela concentração de renda e pela negação de direitos. A ascensão de um educador popular ao comando de uma escola pública em um município marcado pela desigualdade é, por si, um ato de subversão da ordem. É contra-hegemônico.
Se Anagé quiser se libertar dos grilhões do analfabetismo funcional, da dependência clientelista e da miséria institucionalizada, o caminho passa, obrigatoriamente, pela radicalização da educação pública como ferramenta de emancipação. E nomes como o de Iranildo Freire nos lembram que essa radicalização não é um delírio utópico, mas uma construção possível, concreta, cotidiana — feita de compromisso, coragem e crítica.
No sertão onde outrora floresceram coronéis, talvez esteja nascendo uma nova geração de estudantes críticos, protagonistas e conscientes. Uma geração que não apenas sonha com o diploma, mas com a transformação radical da vida. E nesse sonho, a escola pública — por mais que tentem desfigurá-la — segue sendo o lugar onde os invisíveis ousam escrever um outro futuro.
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