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quarta-feira, 4 de junho de 2014

A FESTA DAS ALVORADAS DE ANAGÉ E TÕE BATATA.

Iranildo Freire, Historiador e Professor anageense da rede pública Municipal e Estadual

"O folguedo das Alvoradas é considerado o principal evento da tradição do São João da ainda Vila Nova, desde a década de 1940. "
* Por: Iranildo Freire Oliveira

Do ponto de vista cultural o nordeste brasileiro é marcadamente conhecido pela festa do São João. É uma festa socialista, pois, conta com a participação de todos; de mamando a caducando, dos abonados aos desfavorecidos financeiramente. Ninguém fica de fora da festa, que, é além de inclusiva, sadia, alegre e vibrante.


Em Anagé, a festa de São João está para além de uma tradição folclórica e cultural. É uma festa que irmana e proporciona a todos que participam rever os amigos de infância e relembrar os fatos marcantes vividos outrora. Lembrar-se dos entes queridos, de amigos, das figuras pitorescas que já não se encontram presentes faz parte da festa.

Pensar, falar e relembrar o São João de Anagé exige de quem pensa, fala e relembra um comentário especial sobre as Alvoradas. O folguedo das Alvoradas é considerado o principal evento da tradição do São João da ainda Vila Nova, desde a década de 1940. E ainda é nos dias de hoje o ponto alto da tradição, porém, carente de preservação e de valorização enquanto patrimônio cultural do Município.

Como funcionava? Quem organizava? Quem realizava? Em que período acontecia? Quem fazia parte? As respostas dessas perguntas são necessárias para um maior entendimento por parte das gerações mais novas, visto que, muitas mudanças ocorreram na forma de realização deste folguedo, principalmente na quantidade de noites, no trajeto, no repertório das músicas e no cardápio das comidas e bebidas típicas.

As alvoradas faziam parte da programação da Festa do Padroeiro São João Batista; elas integravam até o ano de 1982 a programação da festa religiosa. Depois de 1982 tanto as ALVORADAS como as ENTREGAS DE RAMOS passaram a compor a chamada festa profana como tão bem frei Adrianogostava de sublinhar.

A Comissão de Festa do Padroeiro é quem elaborava a lista das famílias responsáveis pela realização das alvoradas e entregas de ramos. Ficava responsável para cada noite um casal (família), duas moças e dois rapazes. A família escolhida e as quatro pessoas solteiras realizavam a partir do dia 15/06 até o dia 23/06 as alvoradas com as entregas de ramos, estas, após a celebração da novena de São João Batista na Igreja Matriz.

O ritual da alvorada iniciava-se às 5:00h. da madrugada do dia 15 de junho. Os responsáveis pela alvorada dirigiam-se para frente da Igreja Matriz acompanhados dos tocadores e cantadores. Tocavam-se os sinos da Matriz e pipocavam foguetes para acordar a população do lugarejo, e, em seguida, começava o percurso pelas principais ruas da cidadezinha cantando músicas próprias desta tradição: “Tê já, meu amor tê já/Tê já até um dia./Tenho esperança de passar uma noite/De dormir um sono no teu colo um dia./Eu viajava pela mata escura/Até parece uma ilusão/A cartucheira na capa da sela/O meu parabelo/Meu punhal na mão”; Meu cachorrinho latiu, latiu, latiu/Meu amorzinho partiu, partiu/Ele partia meu amor chorava/Minha viola me consolava, e tantas outras músicas que faziam e ainda fazem parte do repertório das alvoradas - só de lembrar me dá vontade de chorar, de alegria é claro! Toda essa alegria e vibração contagiante eram regadas à meladinha, batida, licor e muito mé, às palmas e ao som da sanfona, da zabumba, do violão e do triângulo. As pessoas iam acordando e incorporando ao trajeto da alvorada com toda animação que a festa exigia.
Após o passeio cantando, dançando e bebendo por todas as ruas da Cidade rumava-se para a casa do casal responsável pela realização da alvorada e todos os participantes eram recebidos com vivas a São João e logo depois eram servidas saborosas farofas - de bode, galinha, porco e mais bebidas típicas dos mais variados sabores; e o forró só terminava quando o sol já estava alto, por volta das 7:00h. da manhã.

Ao meio dia, tocava-se o sino da Matriz e pipocavam mais fogos. À noite, após a celebração da novena de São João, os casais pegavam ramos de flores no altar do Padroeiro São João Batista e dirigiam-se para frente da Igreja, onde já estavam sendo esperados pelos tocadores e populares diversos amantes da tradição para fazer a Entrega de Ramos para a família responsável pela próxima alvorada. O casal com os seus familiares recepcionavam a todos com muita animação e hospitalidade, recebia os ramos das mãos dos responsáveis pela noite anterior e daí em diante os móveis da casa eram afastados para um canto e o forró “cumia no birro oitenta” até às 00:00h. aproximadamente. Todo esse ritual se repetia durante o novenário do Padroeiro.

Por promessa a primeira alvorada era realizada na residência do Senhor Raulino Bispo de Oliveira, desde a segunda metade da década de 1940 até o ano de 1996, quando o “velho Raulas” ficou doente (AVC) e interrompeu a tradição de quase seis décadas.

As alvoradas na casa de Raulino eram animadas e muito aguardadas por todos os anageenses; em especial, pelo pitoresco personagem Antônio Batata - o popular Tõe Batata. Tõe Batata vivia embriagado pelas poucas ruas da cidadezinha. Tõe era exibido. Ousado. E muito debochado. Contava nos dedos os dias para chegar logo o mês de junho, pois, era um participante assíduo do folguedo. Já acordava bêbado e ia atrás da comida, mas principalmente das bebidas que eram servidas nas alvoradas.

Mesmo amante da tradição, Tõe Batata não poupava críticas a todas as alvoradas realizadas no lugarejo, por mais bem organizadas que fossem Tõe não poupava os adjetivos pejorativos para diminuir e ofuscar o brilho da festa da madrugada. Eram os botecos da cidade o cenário escolhido por Tõe para “meter a língua” na quantidade da comida, da bebida, na organização, nos organizadores, enfim, em absolutamente tudo.

Conhecedor da língua ferina de Tõe Batata, Irismar Freire - Mazinho, o filho mais velho do casal Raulino e Sissi, organizou uma alvorada na segunda metade da década de 1970, tendo como objetivo principal arrancar um comentário elogioso referente à alvorada organizada por sua família. Solicitou a todos da sua casa e das pessoas que serviriam na alvorada que não deixassem nada faltar para Tõe Batata. Dito e feito. Muita carne de bode no prato de Tõe, muita bebida. A todo o momento Mazinho e Anísio - filhos do casal Raulino e Sissi, completavam o prato de Tõe com carne de bode, de porco e galinha e serviam o seu profundo copo com os mais diversos sabores de batidas. Terminada a alvorada, todos cansados foram dormir convictos de que desta vez arrancariam comentários elogiosos de Tõe Batata.

Tõe saiu da alvorada da casa de Raulino direto para tomar mais um gole num boteco da rua principal da cidade, e, o seu primeiro comentário do dia foi dizer - com sua voz trêmula e entre cortada:
__A farofa de bode da alvorada de Raulino só tinha farinha...
Bons tempos!
VIVA SÃO JOÃO!

Anagé, Bahia, 03 de junho de 2014.



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Iranildo Freire Oliveira – Professor de História do CERV - E-mail: irage.freire@gmail.com

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