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Tudo Que A Boca Come
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Foto: Rasta Bass |
*por Rasta Bass
O paladar do capital se agrada tanto da ditadura quanto da democracia e sua fome o faz devorar a força vital e com ela os sonhos da classe trabalhadora e das pessoas de periferia, de povos e comunidades tradicionais.
A Ditadura Civil-Militar de 1964 no Brasil foi um capítulo brutal da história nacional, inserido no contexto da Guerra Fria, que dividiu o mundo entre os blocos liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Essa disputa global não era apenas ideológica, mas também econômica e política, com os EUA atuando como guardiões do capitalismo ocidental e a URSS como a potência do socialismo e das forças orientais. Os militares brasileiros, com forte apoio do governo norte-americano, temiam que o Brasil se tornasse uma nova Cuba, o que seria desastroso para os interesses imperialistas do capitalismo ocidental. Caso o país se alinhasse à União Soviética, isso representaria não apenas um poderoso fornecimento de commodities para o bloco socialista, mas também um potencial polo revolucionário capaz de influenciar outros países latino-americanos na luta contra o domínio norte-americano.
É preciso dizer que o golpe não foi um levante espontâneo dos militares brasileiros; foi uma operação articulada dentro da Doutrina de Segurança Nacional dos EUA, que visava conter qualquer avanço socialista no continente.
A adesão da sociedade civil brasileira ao golpe se deu, sobretudo, em duas frentes: o conservadorismo católico, protetor ferrenho de família monogâmica, e a mesquinhez burguesa, que via suas riquezas ameaçadas pelas reformas de base. A classe média, historicamente oportunista e servil à elite, foi um dos alicerces da ditadura. Seu ódio de classe se traduziu no apoio irrestrito à repressão e ao autoritarismo, não por convicção política, mas por temor de perder seus privilégios e pela ânsia de se distanciar das camadas populares.
A ditadura militar instaurou um regime de terror: prisões arbitrárias, torturas sistemáticas, assassinatos e desaparecimentos políticos foram a marca desse período. No entanto, a repressão não se limitou apenas à perseguição de opositores políticos. Houve um esforço sistemático para desarticular qualquer possibilidade de unidade popular. Os movimentos políticos e culturais compostos por pessoas negras, por exemplo, foram duramente perseguidos. Agremiações de carnaval de caráter negro foram intimidadas e/ou silenciadas, assim como os bailes black que surgiram no final da década de 1960 e início da década de 1970, embriões do hip-hop brasileiro. O movimento negro, que já havia sido enfraquecido desde a ditadura de Vargas, permaneceu fragmentado, impossibilitados de uma resistência coletiva mais efetiva ao racismo estrutural do país. O Movimento Negro Unificado, que viria a surgir no início da década de 1970, só conseguiu se articular após anos de repressão e censura.
Além disso, a ditadura serviu para reforçar valores morais conservadores, perseguindo qualquer forma de identidade ou comportamento que fugisse dos padrões impostos pelo cristianismo branco e europeu. A repressão contra pessoas LGBTQIA+ foi intensa, reforçando uma moralidade punitiva que criminalizava identidades e práticas que não se enquadravam na norma heteronormativa e patriarcal.
Do ponto de vista político-econômico, a ditadura garantiu que o Brasil não se tornasse uma nova Cuba, mantendo o país alinhado aos interesses dos EUA e das elites nacionais. Para além do temor ao comunismo, havia a necessidade de garantir que as riquezas brasileiras permanecessem nas mãos de uma pequena casta econômica, impedindo qualquer redistribuição que beneficiasse as classes populares. Esse projeto econômico de concentração de renda foi sustentado pela repressão violenta e pelo aprofundamento do racismo estrutural, reforçando a marginalização da população negra, historicamente explorada e escravizada no Brasil. A escravidão, que marcou a formação do país, nunca foi completamente superada, apenas reconfigurada em novas formas de exploração e exclusão social.
O chamado "milagre econômico", promovido pela ditadura entre o final da década de 1960 e o início da de 1970, foi um engodo que beneficiou apenas os grandes empresários e setores estrangeiros. O crescimento do PIB e a modernização da infraestrutura foram sustentados pelo endividamento externo e pelo arrocho salarial da classe trabalhadora. Enquanto a elite acumulava lucros astronômicos, os trabalhadores enfrentavam um custo de vida crescente, sem qualquer possibilidade de reivindicação por meio de sindicatos ou greves, pois qualquer tentativa de mobilização era brutalmente reprimida. A farra econômica financiada pelo capital estrangeiro resultou em uma crise profunda na década de 1980, deixando o Brasil mergulhado em uma dívida externa exorbitante e num cenário de hiperinflação que afetou as camadas populares por décadas.
Em 1973, com a crise do petróleo, o capital entrou em uma crise estrutural. Até então, as crises eram cíclicas, com períodos longos de crescimento, breve estagnação e um declínio contornável, voltando a crescer ainda mais que no período de crescimento anterior. A partir da crise estrutural, as crises se tornaram mais constantes, profundas, duradouras e com a estagnação estabilizando o momento de declínio das taxas de lucro e com novos períodos de crescimento mais curtos e menos produtivos e rentáveis que os anteriores. A crise se tornou parte da própria lógica de funcionamento do capital. Como efeito imediato, houve demissões em massa, fechamento de fábricas e uma guinada para mercados financeiros, que passaram a ser cada vez mais especulativos. Além disso, uma nova corrida para o desenvolvimento de armas de guerra mais potentes e com consciência artificial cada vez mais "inteligente", em paralelo à corrida espacial, intensificou-se. A crise ambiental e as tantas doenças dela oriundas, incluindo as que causam epidemias e pandemias, a multiplicação de vírus de gripe e doenças respiratórias, etc. se tornaram cada vez mais frequentes. Enquanto trabalhadores seguem sendo substituídos por máquinas, o exército industrial de reserva cresce exponencialmente, tornando-se cada vez mais fragmentado e menos unido. Talvez falte uma "religião" que represente toda a classe trabalhadora ou a maior parte dela, talvez falte a identificação do elo mais fraco da corrente. Enfim, a falta de unidade é um dado da realidade muito bem explorado pelas forças do capital.
Contudo, a questão central não se resume à dicotomia entre ditadura e democracia burguesa. Desde o fim formal do regime militar, em 1985, o Brasil não deixou de ser palco de torturas, genocídios e encarceramentos massivos. A militarização das periferias, as chacinas constantes e a criminalização dos movimentos sociais evidenciam que a repressão nunca cessou, apenas mudou de forma. O aparato do Estado segue operando para garantir a manutenção da propriedade privada e dos interesses das elites, enquanto a classe trabalhadora continua submetida a um sistema de exploração e opressão.
A falsa dicotomia entre ditadura e democracia esconde o verdadeiro problema: o Estado, em qualquer de suas formas, é um mecanismo de dominação de classe. A defesa irrestrita da democracia liberal ignora que ela é um projeto da burguesia para administrar seus próprios interesses, mantendo a exploração do trabalho e a desigualdade estrutural. A democracia formalizada dentro do Estado não é um sinônimo de liberdade, mas um modelo que perpetua a alienação, enquanto os donos do poder continuam saqueando as riquezas naturais e humanas do país. Pode até representar um avanço significativo nos Marcos políticos do capital, mas continua sendo estratégia burguesa de defesa dos seus interesses.
A luta contra a ditadura não pode ser apenas uma defesa do Estado democrático de direito, mas uma crítica mais ampla ao sistema que a permitiu. A verdadeira libertação passa pela superação do capital, enquanto versão moderna da propriedade privada, e pela construção de uma sociedade baseada na autonomia, na igualdade substantiva e na emancipação real dos povos. Só assim poderemos romper definitivamente com a violência histórica que permeia o Brasil desde os tempos da colonização.
Rasta Bass
Abril de 2025
Ceta Capoeira
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