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domingo, 20 de abril de 2025

Páscoa à Brasileira

 Páscoa à Brasileira: Entre a fé e o consumo, o Brasil reinventa a ressurreição


*por Herberson Sonkha




Um Brasil entre o túmulo vazio e o ovo de chocolate

Na terra do sincretismo e da desigualdade, a Páscoa é mais do que um feriado religioso: é um espelho das contradições sociais, econômicas e culturais que marcam o Brasil contemporâneo. Celebrada sob múltiplas formas por judeus, católicos, evangélicos, espíritas e até por quem se diz “sem religião”, a festa da ressurreição tem sido apropriada pelo mercado e transformada num espetáculo de consumo, onde o ovo de chocolate muitas vezes pesa mais que o Cristo ressuscitado. Esta matéria investiga como a Páscoa se manifesta no Brasil entre 2002 e 2022, examinando sua trajetória histórica, fundamentos teológicos e apropriações ideológicas, com foco nas implicações para a justiça social e cultural.


Origens: Entre o Êxodo e o Calvário

A Páscoa Judaica, ou Pêssach, remonta a mais de três mil anos e celebra a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito, conforme o relato bíblico do Êxodo. Comida ritual, como o pão sem fermento (matzá), e a recitação da Hagadá marcam a celebração, centrada na memória coletiva da opressão e da libertação. É uma festa familiar, comunitária e profundamente política.

Já a Páscoa Cristã tem seu eixo na ressurreição de Jesus de Nazaré, crucificado sob o Império Romano. Para o cristianismo, a vitória sobre a morte representa não apenas um evento teológico, mas também um símbolo de esperança, redenção e transformação social. A teologia latino-americana da libertação enfatiza essa dimensão, ao ver no Cristo crucificado os pobres e marginalizados da história (BOFF, Leonardo. "Jesus Cristo Libertador", 1972).


Atravessando o Atlântico: A Páscoa no Brasil Colonial e Republicano

Com a colonização portuguesa, a Páscoa foi implantada como rito do catolicismo popular, com procissões, encenações da Paixão e jejuns. No entanto, o Brasil também assistiu a uma rica fusão entre a liturgia cristã e as tradições africanas, indígenas e afrodescendentes. Em muitos terreiros de candomblé, a Semana Santa é marcada por ressignificações sincréticas. Essa diversidade foi sistematicamente invisibilizada pelas narrativas oficiais.

No século XX, com o avanço das igrejas evangélicas e das religiões espiritualistas, surgem novas formas de celebrar (ou ignorar) a Páscoa. Para muitas denominações protestantes, a festa é centrada na cruz e na ressurreição, mas criticam os excessos do catolicismo romano e a apropriação mercantil da fé. Já o espiritismo kardecista, que não cultua datas litúrgicas, interpreta a ressurreição como símbolo de imortalidade da alma, sem aderência ao dogma da encarnação divina.


Entre a fé e o mercado: o Brasil das contradições pascais (2002–2022)

Durante os governos progressistas de 2003 a 2016, a Páscoa conviveu com uma crescente pluralização religiosa. Dados do IBGE (2010) mostram que os evangélicos passaram de 15,4% da população em 2000 para 22,2% em 2010. Já o Datafolha, em 2019, apontou que esse número ultrapassava os 30%. Enquanto isso, o catolicismo decrescia, embora ainda representasse a maioria.

Com o acirramento político e a ascensão de lideranças religiosas conservadoras a partir de 2016, o discurso religioso ganhou novos contornos. A ressurreição de Cristo passou a ser invocada em campanhas políticas, marchas cívico-religiosas e até em fake news. Em muitas igrejas, a teologia da prosperidade substituiu a mensagem da cruz. Como pontua Leonardo Boff, “há um esvaziamento ético do conteúdo da fé cristã quando ela se converte em ideologia de dominação” (BOFF, Leonardo. "A fé em tempos de crise", 2018, p. 89).


O ovo, o crédito e a desigualdade: o que comemora o Brasil?

Na ponta oposta da espiritualidade, está o consumo. Em 2022, a Associação Brasileira da Indústria de Chocolates (ABICAB) reportou crescimento de 13% nas vendas de ovos de Páscoa em relação ao ano anterior, mesmo com inflação e desemprego em alta. Famílias endividadas recorrem ao cartão de crédito para não “deixar os filhos sem ovo”. O símbolo da vida virou produto.

Enquanto isso, comunidades quilombolas, indígenas e faveladas lutam por terra, saúde e dignidade. Que sentido tem celebrar a libertação de um povo ou a ressurreição de um Deus, se a maioria ainda não experimentou o direito de viver plenamente? A Páscoa, no Brasil, é muitas vezes um privilégio simbólico das classes médias e altas.


Ressuscitar o sentido da Páscoa?

Mais do que um rito litúrgico, a Páscoa deveria ser um grito de resistência contra todas as formas de opressão. Libertação, partilha e justiça são os verdadeiros fundamentos do que celebramos — e é esse sentido que precisa ser resgatado, num país onde as cruzes se multiplicam nas periferias e o túmulo da desigualdade segue aberto.

Como escreveu Paulo Freire, “a Páscoa verdadeira é a passagem da morte para a vida, da opressão para a liberdade” (FREIRE, Paulo. "Pedagogia da Esperança", 1992, p. 61). Que o Brasil reencontre esse caminho.



Referência consultada:

IBGE – Censo 2010.

Datafolha – Pesquisas religiosas (2016–2022).

BOFF, Leonardo. "Jesus Cristo Libertador". Vozes, 1972.

BOFF, Leonardo. "A fé em tempos de crise". Vozes, 2018.

FREIRE, Paulo. "Pedagogia da Esperança". Paz e Terra, 1992.

ABICAB – Relatório de Vendas Páscoa 2022.

Artigos e comunicados oficiais da CNBB (2002–2022)


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