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segunda-feira, 18 de agosto de 2025

CETI: A alavanca que move o mundo

Imagem: Herberson Sonkha


*por Herberson Sonkha


 


Na sexta-feira (15), o Colégio Estadual de Tempo Integral de Anagé (CETI) sediou a 14ª Gincana de Integração e Conhecimento — a primeira realizada em seu novo espaço. A convite do professor Iranildo Freire, integrei a comissão julgadora ao lado de Petrônio Joabe, musicista e psicólogo, membro da Fundação Casa dos Carneiros, e do ex-vereador Altemar Nogueira, popularmente conhecido como Toinzinho.

Foi o último dia de atividades. Observei a entrega de cada equipe, em um nível altíssimo de criatividade, interpretação, encenação, construção de personagens e desenvoltura. A tarefa proposta abordava a cantora pop Lady Gaga, compreendida como uma versão contemporânea da oitentista Madonna, em diálogo com questões de classe, raça e gênero a partir de uma perspectiva de ruptura do patriarcado, do machismo, da misoginia, bem como da objetificação e exploração sexual nas relações de poder e sedução.

As três equipes apresentaram espetáculos belíssimos, discutindo essas temáticas de forma conectada às questões sociais, econômicas, culturais e políticas que atravessam o Brasil e o mundo na atual conjuntura. O debate se estendeu, inclusive, à lógica imperialista dos Estados Unidos de intimidar, coagir e subjugar a soberania brasileira, culminando na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, articulado por um dos maiores criminosos da história do país — um político lesa-pátria e entreguista — e sua família, em conluio com deputados, senadores, empresário, lideres cristãos e militares ultraconservadores.

Apesar da complexidade da proposta, a entrega dos estudantes demonstrou domínio sobre o tema e habilidade para utilizar todos os recursos disponíveis: músicas, cenários, figurinos, iluminação e uma criatividade impecável. Fica evidente que, se nos limitarmos aos métodos tradicionais e binários de avaliação (pergunta-resposta), dificilmente o mesmo nível de conteúdo seria alcançado. Questões ligadas à literatura, história, geografia, sociologia, antropologia e economia exigem competências multidimensionais, que extrapolam a aferição por métodos convencionais, inacessíveis para muitos nessa idade pela abstração que requerem. A gincana, nesse sentido, revela-se como método pedagógico eficiente, instigante e apaixonante, porque articula conhecimento, arte, criatividade, interdisciplinaridade e ludicidade.

O intelectual, jurista e pedagogo Anísio Spínola Teixeira (Caetité, 1900 – Rio de Janeiro, 1971) foi um dos principais formuladores da educação pública no Brasil do século XX. Signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), defendeu com firmeza a escola pública, gratuita, laica e obrigatória, como instrumento de democratização social e emancipação dos indivíduos.

Durante sua gestão como Secretário de Educação da Bahia (1947-1951), apresentou projetos inovadores em Salvador, entre eles a concepção de escola de tempo integral, organizada como comunidade educativa em jornada ampliada, com acesso às disciplinas tradicionais, mas também às artes, ao esporte, ao trabalho coletivo e à vida social. Em Educação não é privilégio (1953), Teixeira foi contundente:

“Não se pode conseguir essa formação em uma escola por sessões. Precisamos restituir-lhe o dia integral, enriquecer-lhe o programa com atividades práticas, dar-lhe amplas oportunidades de formação de hábitos de vida real.” (TEIXEIRA, 1994, p. 63).

No município de Anagé, o CETI encarna esse projeto revolucionário. A realização da 14ª Gincana de Integração e Conhecimento, em agosto de 2025, exemplifica a visão de Teixeira: uma escola que ultrapassa o ensino livresco e se torna espaço de cooperação, criatividade e protagonismo juvenil. Além de interdisciplinar, a gincana mobiliza valores como solidariedade, convivência comunitária e aprendizagem pela experiência — elementos centrais no pensamento do educador baiano.

Como advertiu Paulo Freire, os métodos tradicionais não envelheceram apenas por serem “educação bancária”, mas porque se tornaram ineficientes para avaliar conhecimentos.

Estive presente na inauguração do CETI e confesso ter ficado boquiaberto com sua estrutura. É como se, enfim, o século XXI tivesse chegado às escolas públicas: moderna, acolhedora, humanizada, inteligente e instigante. Contudo, a pedagogia ainda resiste em modelos conteudistas e bancários do século passado. Nesse ponto, o governador Jerônimo Rodrigues (PT) tem garantido as condições físicas e materiais para uma verdadeira revolução cultural. Cabe agora à docência promover a revolução pedagógica que dê sentido a essas estruturas. Não é casual que quase 200 escolas em tempo integral tenham sido construídas durante o governo Jerônimo.

O modelo de escola em tempo integral não é uma proposta recente. Ainda no período em que exerceu o cargo de Secretário de Educação da Bahia (1947-1951), Anísio Teixeira já defendia essa pauta como estratégia para democratizar o acesso ao conhecimento e garantir uma formação integral aos estudantes. Décadas depois, no início dos anos 1980, essa concepção ganhou concretude no Rio de Janeiro, com a criação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), implementados no governo de Leonel Brizola em parceria com Darcy Ribeiro. Importa destacar, entretanto, que o PDT liderado por Brizola à época não se confunde com o PDT atual. Tratava-se de uma geração de políticos marcada por compromissos históricos e transformadores, entre os quais se destacavam Miguel Arraes (PSB), João Amazonas (PCdoB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Darcy Ribeiro, um dos maiores antropólogos e educadores brasileiros, defendia que “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto” (RIBEIRO, 1995, p. 28). Seu objetivo central era superar o modelo de meio turno, que condenava a classe trabalhadora a uma formação precária. Enquanto grande parte da América Latina avançava na escola integral, o Brasil permanecia atrasado.

Na visita ao CETI, o diretor Iranildo Freire me conduziu à cozinha da instituição. Fiquei impressionado com a arquitetura moderna, os equipamentos industriais e a câmara frigorífica, tudo rigorosamente adequado às exigências da Vigilância Sanitária. Era como estar diante da cozinha de um restaurante com cinco estrelas. A cena evocou a canção infantil: “Comer, comer, comer, comer, para poder crescer.”

Esse espaço traduz um salto temporal: o futuro chegou a Anagé. Uma escola ampla, moderna e alegre, erguida em meio ao calor escaldante e à seca. Recordei minha passagem pela Secretaria Municipal de Educação, quando mediei a vinda de Leonardo Boff e, depois, de Frei Betto às jornadas pedagógicas a partir de 2013. Ambos, dominicanos perseguidos pela ditadura militar (1964-1985), marcaram a Teologia da Libertação, denunciando miséria, fome, desemprego, inflação, violência e desigualdades sociais.

Imagino o que Boff e Betto diriam sobre o CETI. Certamente afirmariam que a escola integral não é apenas infraestrutura de excelência, mas uma “escola-comunidade”, onde filhos e filhas da classe trabalhadora possam se nutrir tanto de alimentos materiais (refeição, estrutura, condições dignas) quanto de alimentos simbólicos (conhecimento, cultura, espiritualidade). Para Boff (1999, p. 64), espiritualidade é “a dimensão profunda de ser humano, capaz de sentido, conhecimento, solidariedade e amor” — não se reduzindo à religiosidade.

É inevitável lembrar Paulo Freire: “A educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.” (FREIRE, 1996, p. 25). Sua pedagogia libertadora aposta na consciência crítica, pois não basta transmitir conteúdos: é preciso despertar paixão pelo conhecimento e vontade de transformação.

A metáfora da alavanca, utilizada por Arquimedes — “Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio, e moverei o mundo” —, dialoga diretamente com essa concepção de educação. Nessa perspectiva, a alavanca representa a educação emancipacionista; o ponto de apoio corresponde à docência, aos educandos, aos responsáveis por eles, aos trabalhadores e trabalhadoras da educação e à comunidade; já a força que a move é a prática docente. Assim, quando a alavanca está em mãos apropriadas e é colocada no ponto de apoio certo, inevitavelmente coloca em movimento todo o peso da inércia. É somente dessa forma que a educação pode, de fato, emancipar sujeitos historicamente excluídos.

O CETI reúne todas as condições estruturais para acolher os/as filhos/filhas da classe trabalhadora do campo e da cidade, sobretudo professores, professoras, estudantes e a comunidade em geral. Falta, ainda, que a docência desperte nos jovens a paixão pelo aprender e o desejo de mover o mundo. Como diria Darcy Ribeiro (1995, p. 52): “Só há duas opções neste país: se resignar à miséria da escola pública ou lutar por uma escola pública de qualidade para todos.”

A educação integral, quando libertadora, é a alavanca capaz de romper o imobilismo e abrir caminhos para a emancipação.




REFERÊNCIAS

BETTO, Frei. Educação e transformação. São Paulo: Ática, 2002.

BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. Petrópolis: Vozes, 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GOVERNO DA BAHIA. Jerônimo Rodrigues inaugura Colégio Estadual de Tempo Integral e anuncia novos investimentos em educação. Salvador: Secretaria de Comunicação, 2025.

MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA, 1932.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

TEIXEIRA, Anísio. Educação é um direito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994 [1953].

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