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sábado, 20 de setembro de 2025

EDITORIAL I Genocídio, cangaço e o “bandido social”

Foto: Herberson Sonkha

Genocídio, cangaço e o “bandido social”:
Hobsbawm, Macário e os limites de uma categoria histórica

 


*por Herberson Sonkha 



Estive, pela primeira vez, na sede do “Sarau a Estrada”, estrategicamente localizada na periferia da cidade. O espaço é encantador: uma biblioteca imensa, repleta de livros, vinhos, pequenas esculturas regionais, fotografias e peças autenticamente nordestinas. Quadros, cartazes e uma belíssima exposição de chapéus de diferentes tipos, estilos e cores complementam o ambiente, conferindo-lhe uma atmosfera intelectual e culturalmente acolhedora. Esse cenário revela-se especialmente propício à formulação e ao debate vanguardista de ideias efervescentes, refletindo uma pulsão pela produção artístico-cultural que explica a intensa atividade do Sarau e, a meu ver, favoreceu a aproximação com o Movimento Cultura Conquista.

A ocasião foi uma reunião da qual eu, Dayse Maria e Mari Stella participamos como convidados, para dialogar com a direção do movimento e demais presentes: Jeremias Macário, Fábio Sena, Dernival Araújo, Viviane Gama, Itamar Aguiar, Dal Farias, Cléu Flor, Elié Miranda e Vandilza Gonçalves, anfitriã do encontro e esposa do jornalista Jeremias Macário.

Anteriormente, já havia recebido um convite do amigo Dal Farias — um poeta memorialista dos bons — para a reabertura da sede em um novo espaço. No entanto, só foi possível comparecer agora, logo após a realização do controverso e manipulado “Fórum de Cultura”, com o propósito de discutirmos o congresso de cultura pensado pelo Movimento Cultura Conquista com Ruy Medeiros, previsto para o final deste ano, além de contribuir para o próximo evento cultural, o “Sarau de Rua”.

Ao término da reunião, permanecemos em animada conversa que, inevitavelmente, enveredou para uma discussão profunda sobre a natureza do cangaço, com a participação de Mari Stella, Itamar Aguiar, Dayse Maria, Jeremias Macário e eu. Coincidentemente, na madrugada de hoje (20), por volta de 1h05, Jeremias Macário publicou a matéria “O genocídio nordestino durante o flagelo das secas e do cangaço”.

O texto, publicado na coluna Encontro com os Livros, é convidativo porque resgata com rigor histórico um dos períodos mais brutais e silenciados da história brasileira: o extermínio social do povo sertanejo entre 1877 e 1935. Fundamentado em registros da imprensa da época, dados demográficos e análises de pesquisadores como Luiz Bernardo Pericás, o jornalista apresenta o quadro de calamidade vivido pelos nordestinos, submetidos a secas prolongadas, fome, epidemias, campos de concentração e à violência de cangaceiros e jagunços a serviço dos coronéis.

Macário evidencia que a grande seca de 1877-1879 ceifou sozinha mais de 500 mil vidas, provocando um êxodo massivo que reduziu drasticamente a população do Ceará e inchou cidades como Fortaleza, transformada em reduto de retirantes famintos, confinados em espaços insalubres conhecidos como campos de concentração. Sem políticas públicas eficazes, o Estado imperial e as províncias adotaram medidas que apenas aprofundaram a tragédia, como o trabalho forçado em pedreiras e o envio compulsório de sertanejos para os seringais amazônicos, onde milhares morreram vítimas de doenças tropicais.

O artigo também destaca o papel da estrutura fundiária concentrada e das disputas políticas locais, que, somadas às calamidades climáticas, agravaram ainda mais o quadro de miséria. A violência não vinha apenas da seca, mas também da ação dos cangaceiros, que ora saqueavam e aterrorizavam vilas inteiras — como no episódio da “hecatombe de Garanhuns”, em 1917 —, ora distribuíam alimentos para conquistar o apoio popular, revelando a ambiguidade dessa relação com os pobres do sertão.

As consequências desse processo foram devastadoras: um desfalque populacional de mais de dois milhões de pessoas entre 1877 e 1907, migrações forçadas em massa para o Sul do país e para a Amazônia, além da perpetuação de uma herança de miséria e desigualdade que ainda hoje ressoa. A abordagem de Jeremias Macário é clara: tratou-se de um genocídio social e político, resultado da confluência entre omissão e repressão estatal, exploração dos retirantes como mão de obra servil e violência exercida tanto por cangaceiros quanto por coronéis e seus jagunços.

Mais do que um registro histórico, a matéria é um convite à reflexão sobre a permanência das causas estruturais da pobreza nordestina. Afinal, embora o cangaço tenha sido extinto, a seca, a concentração de terras e a ausência de políticas efetivas de amparo ao sertanejo continuam a marcar a realidade da região.

A matéria de Jeremias Macário — dura, documentada e pungente — reacende uma pergunta essencial: como pensar historicamente o cangaço e a violência no sertão nordestino quando o próprio Estado contribuiu para a catástrofe humana provocada por secas, miséria e políticas públicas predatórias? Ler Macário à luz das categorias de Eric Hobsbawm sobre banditry (o chamado “social bandit”) ajuda muito — mas também impõe cuidado metodológico.

Neste artigo de opinião eu recorro plenamente ao texto preciso e bem fundamentado de Macário (as passagens sobre as secas de 1877–79, a política de campos e emigrações forçadas, as concentrações de terras, a ambivalência dos cangaceiros ao mesmo tempo saqueadores e provedores de alimentos) e às interpretações de Hobsbawm e de seus críticos para propor uma leitura crítica e nuançada do fenômeno.  


Hobsbawm: o que diz a teoria do “bandido social”

Eric Hobsbawm, em Primitive Rebels e no livro curto Bandits (Londres, 1969), formulou a noção de “social bandit”: fora-da-lei que, embora viole a lei, é visto por camponeses e populações rurais como uma figura de justiça ou vingança contra os poderosos. Para Hobsbawm, esse tipo de banditismo emerge em contextos de opressão agrária, marginalização e ausência de canais formais de reparação — é, em certo sentido, uma forma arcaica de protesto social e uma manifestação das contradições de sociedades pré-industriais ou periféricas. Além disso, Hobsbawm insistiu na ambivalência desses bandidos: podem explorar e atacar pobres, ao mesmo tempo em que são celebrados no imaginário popular. 


Macário e Hobsbawm: muitos pontos de convergência

Ao ler a matéria de Macário, a sintonia com a leitura hobsbawmiana é imediata em vários níveis:

a) Gênese estrutural do banditismo. Macário descreve secas massivas, morte por fome, êxodos e a concentração de terras nas mãos de latifundiários — exatamente as condições que Hobsbawm aponta como terreno fértil para o surgimento de fora-da-lei. A narrativa de Macário mostra que o banditismo nordestino não foi um fenômeno puramente criminal, mas enraizado em desigualdades sociais profundas.

b) Ambivalência social. A matéria registra que alguns cangaceiros “davam alimentos em busca de apoio dos sertanejos” enquanto também saqueavam e matavam — descrição que casa com a ideia hobsbawmiana de um bandido que simultaneamente devasta e é legitimado por parte do povo. Lampião, por exemplo, personifica essa ambivalência nas memórias e nos cordéis.

c) O Estado como ator produtor de violência. Macário aponta políticas públicas de expulsão (emigração para seringais), campos de concentração e ajuda seletiva que agravaram a catástrofe. Hobsbawm entende o banditismo também como sintoma de falhas ou omissões estatais, o que torna a leitura política do fenômeno coerente.

Essas aproximações tornam produtivo usar Hobsbawm como uma lente analítica para entender o cangaço: ele oferece um quadro comparativo e conceitual que esclarece por que e como o banditismo se enraizou no sertão.


Por que a categoria de Hobsbawm precisa de cautela — o caso Lampião

Ainda que útil, a aplicação universal da noção de “social bandit” encontra limites concretos no caso brasileiro. A literatura especializada e as revisões críticas mostram três advertências centrais.

1. Heroização posterior e fontes problemáticas. Hobsbawm se valeu largamente do imaginário popular, literatura e folclore para construir o arquétipo do “bandido social”. Críticos como Richard Slatta e outros argumentam que essa dependência pode sobrevalorar a dimensão mítica em detrimento da ação efetiva dos bandos — e que a imagem de herói às vezes é obra de processos posteriores de memória, mídia e interesse político. Ou seja: o que foi cantado pode ter pouco a ver com o que foi praticado.

2. Atos de extrema violência contra os pobres. A própria matéria de Macário relata massacres (a “hecatombe” em Garanhuns, massacres e saques em vilarejos) e episódios em que cangaceiros atacaram e massacraram populações humildes. Esses fatos lembram que muitos grupos não foram apenas “Robin Hoods”: praticaram extorsões, estupros, assassinatos e serviram por vezes a interesses locais. Historiadores como H. H. Keith já advertiram contra a leitura simplificadora de Lampião como “bandido social” intocado.

3. Instrumentalização política e parceria com elites. Estudos comparativos mostram que muitos bandos em diferentes contextos serviram a interesses de elites locais (jagunços a serviço de coronéis, por exemplo) ou se envolveram em redes clientelistas, o que complica a ideia de que o bandido sempre representa a oprimida comunidade camponesa. Em suma: nem todo fora-da-lei tem respaldo social genuíno.  


Conclusão: usar Hobsbawm com método e detalhe local

A leitura que proponho: Hobsbawm oferece um quadro teórico valioso para interpretar o surgimento do cangaço — sobretudo ao ligar banditismo a secas, êxodos, concentração fundiária e omissão estatal, como enfatiza a matéria de Macário. Porém, aplicar a categoria de “social bandit” ao bando de Lampião exige cuidado empírico: é preciso distinguir entre mito e prática, entre celebração posterior e suporte real das populações, entre autonomia dos bandos e instrumentalização por atores locais.

Portanto, quando afirmamos, como faz coerentemente Macário, que o Nordeste viveu um “genocídio” social — pela combinação mortal de seca, deslocamentos forçados, políticas públicas predatórias e violência privada — estamos diante de uma análise que se beneficia fortemente da perspectiva hobbsbawmiana (ao explicar causas estruturais e ambivalência do banditismo). Mas, para responsabilizar politicamente atores concretos (bandos, coronéis, governos) e para compreender a experiência viva das vítimas, é indispensável aprofundar com pesquisa de arquivo local, relatos diretos, estatísticas demográficas e prosopografia dos grupos — trabalho que autores como Luiz Bernardo Pericás e estudiosos do cangaço têm feito ao problematizar e particularizar o caso brasileiro.


Fecho e recomendação

A combinação da denúncia jornalística de Jeremias Macário com a lente crítica de Hobsbawm nos dá uma ferramenta poderosa: ver o cangaço não como mero folclore romântico nem como simples criminalidade individual, mas como sintoma de uma ordem social que matou por omissão e por projeto. Ao mesmo tempo, a crítica recente ao conceito de “bandido social” nos obriga a recusar leituras universalizantes: Lampião e seu bando exigem um olhar que articule estrutura, agência e memória, isto é, que explique por que surgiram, o que fizeram e como foram lembrados — tudo ao mesmo tempo. Só assim podemos transformar a memória do sofrimento narrada por Macário em conhecimento capaz de impedir que políticas semelhantes voltem a ceifar vidas.

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