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Aos 185 anos: Vitória da Conquista, o que dizer do futuro?
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| Foto: G1 - Bahia |
“Ruy Medeiros faz um alerta urbanístico para resgatar o futuro.”
*por Herberson Sonkha
VITÓRIA DA CONQUISTA/BA - No marco dos 185 anos de sua elevação à categoria de município, Vitória da Conquista se torna objeto de uma reflexão profunda e necessária. Em um artigo contundente, o professor, historiador e advogado Ruy H. A. Medeiros traça um diagnóstico severo, porém fundamentado, sobre os rumos do desenvolvimento urbano da cidade.
Longe de ser apenas uma crítica [não menos interessante!], o texto intitulado “Vitória da Conquista, 185 anos. O Futuro Comprometido” funciona como um manifesto e alerta urgente, baseado em uma análise detalhada e na repetição histórica de equívocos.
Esta matéria examina, ponto a ponto, os argumentos de Medeiros, extraindo tanto o rigor da denúncia quanto o convite por um planejamento urbano mais consciente e socialmente justo.
A tese central: a prisão do passado
Medeiros não poupa palavras: a tese central do artigo é que Vitória da Conquista compromete seu futuro ao repetir, de forma sistemática e irrefletida, os erros de planejamento do passado.
Este não é um problema pontual, mas um vício estrutural — expressão do que Marx e Engels (1979, p. 58) identificam como a reprodução ampliada das contradições sociais no espaço urbano, em que o passado se impõe como força produtiva e ideológica sobre o presente.
Esse “ciclo vicioso” se sustenta naquilo que Santos (1996, p. 98) descreve como “um conjunto de sistemas de objetos e sistemas de ações realizados no passado e no presente”, que impõem ao futuro a herança mal resolvida da desigualdade espacial.
A crítica de Medeiros, portanto, não é apenas urbanística: é uma denúncia do urbanismo sob o capitalismo, que transforma a cidade em palco da luta entre o valor de uso e o valor de troca do espaço.
O erro estrutural: a expansão desarticulada
O cerne da crítica de Medeiros reside no modelo de expansão urbana. Ele identifica com precisão a “velha prática” de abrir loteamentos à beira de rodovias, longe do centro e sem articulação com ele — um padrão que reflete a lógica da valorização imobiliária como motor do urbanismo capitalista. As consequências são múltiplas e interligadas:
Mobilidade caótica: As rodovias (BR-116, BA-262, BA-265, BA-415) são convertidas em avenidas congestionadas, sobrecarregadas com tráfego pesado e local, caracterizando o que Jacobs (2011, p. 238) chamou de “conversão de vias de passagem em ruas de bairro” sem estrutura para tal função.
Custos elevados: O poder público assume despesas crescentes para prover infraestrutura a áreas dispersas — expressão do que Harvey (2014, p. 112) define como acumulação por espoliação, em que o investimento público reforça a lógica de valorização privada.
Ineficiência urbana: Criam-se vazios urbanos e fragmentos desconexos, o “tecido esfarrapado” descrito por Lynch (2011, p. 75), que inviabiliza a coesão e a legibilidade da cidade.
A análise de Medeiros é rigorosa porque expõe a engrenagem da produção desigual do espaço, onde o capital imobiliário submete o planejamento urbano ao seu próprio ritmo de lucro.
A amplificação pelo poder público: da URBIS ao Minha Casa, Minha Vida
Medeiros amplia a crítica à esfera estatal. Para ele, o poder público — desde os conjuntos habitacionais da URBIS (exceto o INOCOOP) até o programa Minha Casa, Minha Vida — reproduziu a mesma lógica periférica e segregadora.
Trata-se, como aponta Maricato (2015, p. 42), de uma crise de gestão e de projeto de cidade, onde políticas sociais de habitação, em vez de combaterem a desigualdade espacial, reforçam-na ao afastar os trabalhadores das centralidades urbanas.
Harvey (2014, p. 147) interpreta esse processo como a urbanização do capital — o uso do espaço urbano para absorver excedentes de capital e controlar a classe trabalhadora.
Assim, a política habitacional, descolada de uma visão crítica de planejamento, converte-se em instrumento de reprodução da segregação socioespacial.
Os agravantes contemporâneos: hostilidade e ilegalidade
A crítica de Medeiros ganha força ao revelar o caráter contemporâneo e perverso dessas práticas:
Arquitetura hostil: Condomínios fechados e muros com arames farpados criam “ruas sem olho”, símbolo de uma urbanização excludente que transforma o medo em mercadoria. Essa “cidade murada” é expressão do que Lefebvre (1999, p. 115) denominou fetichização do espaço, quando o espaço urbano se autonomiza como valor de troca, perdendo seu conteúdo social.
Chacreamentos ilegais: A urbanização de áreas rurais, orientada pelo lucro, reflete o que Fernandes (2010, p. 128) define como a urbanização da lógica rentista, em que a função social da propriedade é anulada.
Descaso ambiental: O envenenamento do Rio Verruga e o avanço de muros sobre suas margens denunciam o desprezo pela natureza enquanto força produtiva coletiva, conforme Marx (2011, p. 341), que adverte sobre a ruptura metabólica entre o ser humano e o ambiente no modo de produção capitalista.
Essas práticas reforçam uma cidade que nega a vida pública, o convívio e a natureza — substituindo o direito coletivo pela propriedade privada como princípio ordenador do espaço.
A falência do planejamento: planos diretores inócuos
Ao tratar dos Planos Diretores, Medeiros atinge o núcleo político da crítica. Ele acusa a gestão pública de transformar o planejamento urbano em mera retórica, sem compromisso real de aplicação.
Rolnik (2015, p. 67) chama isso de ciclo de elaboração e esvaziamento dos instrumentos de planejamento — sintoma do que Marx (2013, p. 89) definiu como alienação política, quando o Estado se autonomiza e passa a servir à reprodução do capital, e não às necessidades da coletividade.
O resultado é um planejamento subordinado ao mercado, incapaz de cumprir a função social da cidade, prevista no Estatuto da Cidade, mas constantemente violada na prática.
O ponto de clímax: a “atitude criminosa”
Medeiros reserva sua indignação máxima à venda de áreas verdes e institucionais, classificando-a como “atitude criminosa”. Essa denúncia é central, pois atinge o cerne da mercantilização do comum.
A alienação dos espaços públicos representa a conversão da cidade em mercadoria, um processo que Marx (2013, p. 105) e Lefebvre (1999, p. 115) denunciam como a privatização da vida coletiva, em que o direito à cidade é substituído pelo direito à propriedade.
Trata-se de uma forma de expropriação urbana, que nega às gerações futuras o acesso ao espaço público, ao lazer e ao verde.
Conclusão: da crítica severa ao afeto que inspira mudança
O artigo de Ruy Medeiros, à primeira vista, é um retrato de fracasso e repetição. Contudo, uma leitura crítica revela seu caráter profundamente emancipador. Sua dureza nasce do compromisso com a cidade — da recusa em aceitar o urbanismo como mera engrenagem do capital.
Como Lefebvre (1999, p. 133) propõe, o direito à cidade é o direito de produzir e transformar o espaço urbano segundo as necessidades humanas, e não segundo o lucro. Medeiros traduz esse princípio em ato político ao expor as feridas e exigir cura.
Seu “grito de alerta” é, portanto, um gesto de esperança e consciência histórica — o de que Vitória da Conquista ainda pode romper o ciclo de reprodução das desigualdades e planejar-se como cidade de todos. Que, ao celebrar seus 185 anos, não repita um passado de erros (inclusive refuta peremptoriamente a invencionice mercadológica de “Suíça Baiana” ou “Capital dos Biscoitos”), mas conquiste um futuro de justiça social, sustentabilidade e compromisso com o povo.
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Referências
FERNANDES, E. Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. 2010.
HARVEY, D. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. 2014.
JACOBS, J. Morte e Vida de Grandes Cidades. 2011.
LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade. 1999.
LYNCH, K. A Imagem da Cidade. 2011.
MACEDO, S. Quadro da Paisagem no Planejamento Urbano. 2018.
MARICATO, E. É a Questão Urbana, Estúpido! 2015.
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. 1979.
MARX, K. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
ROLNIK, R. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2015.
SANTOS, M. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 1996
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