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A Prisão do Homem e o Fôlego da Máquina
*por Herberson Sonkha
Na manhã em que a prisão preventiva de Jair Bolsonaro foi decretada, o país acordou com um raro sentimento de que a roda da Justiça havia, enfim, dado um giro a mais. A cena — esperada por muitos, recusada por outros, temida por alguns — parecia anunciar a queda de uma liderança que, por quatro anos, ocupou o centro do teatro político brasileiro. Mas a ilusão dura pouco. A detenção de um homem não desmonta a engrenagem que o produziu.
Especialistas no autoritarismo moderno já explicaram que figuras como Bolsonaro não surgem do nada. Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo (1951), descreveu como, em contextos de desorientação política e erosão das instituições intermediárias, personagens de baixa complexidade intelectual, mas alta capacidade de mobilização afetiva, emergem quase por acidente e se projetam ao centro do poder (pp. 1–7). O Brasil dos últimos anos encaixa-se, com desconfortável precisão, nesse diagnóstico.
A direita radical que impulsionou Bolsonaro ao Planalto é fenômeno anterior e posterior a ele. Seus eleitores, mobilizados em ondas de ressentimento e incerteza, formam uma base social que não se desfaz com a queda do ídolo. A socióloga política Pippa Norris e o cientista político Ronald Inglehart chamam esse movimento de cultural backlash — uma reação conservadora a transformações sociais percebidas como ameaçadoras aos valores tradicionais (Cultural Backlash, 2019, cap. 1). Em tempos de instabilidade, figuras autoritárias funcionam como âncoras emocionais em meio à turbulência.
No plano econômico, a sensação de perda de chão também alimenta radicalismos. Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI (2014), demonstra que a hiperconcentração de riqueza e as crescentes desigualdades estruturam ambientes sociais explosivos, em que a promessa de “ordem” e “proteção” ganha apelo entre aqueles que veem sua estabilidade material ruir (pp. 25–40). O bolsonarismo surfou exatamente nessa onda: a frustração de amplos setores médios e populares, somada à precarização crescente, abriu uma avenida para discursos anti-institucionais e simplificadores.
Não que Bolsonaro tenha inventado tais discursos. Ele apenas os encarnou com a habilidade de quem diz o que parte do público quer ouvir. Cas Mudde, referência mundial no estudo do populismo autoritário, sintetiza essa fórmula em três pilares: nativismo, autoritarismo e populismo moral. A análise está em Populist Radical Right Parties in Europe (2007), onde o autor mostra como tais líderes se aproveitam de crises políticas para se apresentarem como porta-vozes exclusivos do “povo verdadeiro” (pp. 110–139). Bolsonaro, nesse roteiro, foi um ator eficiente — e substituível.
Por isso, atribuir ao ex-presidente qualidades de gênio do mal ou de líder incontestável é exagero. Ele sempre foi, antes de tudo, a face mais visível de uma força subterrânea que há décadas se reorganiza num país marcado por desigualdade persistente, baixa confiança institucional e fragilidade das organizações democráticas. A prisão do homem não encerra o ciclo histórico que o colocou ali. Ela apenas revela que o sistema jurídico ainda tem fôlego para reagir — e que a sociedade brasileira continua diante do mesmo dilema civilizatório.
A lição, segundo pesquisadores da democracia contemporânea, é clara: conter o autoritarismo exige mais do que processos judiciais. Exige reconstruir a confiança pública, fortalecer instituições, qualificar o debate público, reduzir desigualdades e revalorizar as formas de mediação democrática. Exige, em suma, desfazer o terreno fértil que permitiu que um ex-capitão de retórica errática se tornasse presidente.
No meio tempo, a prisão preventiva de Bolsonaro funciona como símbolo: o encerramento provisório de um ciclo, e o início da etapa que realmente importa. A máquina que o produziu continua funcionando. E ela não depende dele.
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