Translate

Seguidores

terça-feira, 6 de abril de 2021

De onde virá o socorro?

"Somos, hoje, uma nação que duvida dos números de seus mortos ou que, simplesmente, como um cordeiro imbecilizado, diz: “Foi deus quem quis assim”.

 

*por Josafá Santos

 

Sinto dizer, mas não virá dos céus. Aliás, não sinto. Sinto mesmo é perceber que uma nação quase inteira ainda nisso crê e por isso espera, enquanto caminha na fila para o abatedouro, como uma boiada cega, surda e muda. E isso quase não é uma metáfora.

Como chegamos a esse ponto? Como nos tornamos isso, esse país/pária, para onde ninguém do mundo quer vir, um país cujo povo não é aceito em praticamente nenhum outro lugar civilizado do mundo, por conta desse completo descontrole no trato ao Corona vírus?

Caminhamos para um previsto meio milhão de mortos, até o meio do ano, caso o que se vê (a ingerência governamental, a estupidez presidencial, a idiotia ou a criminosa falta de empatia de imensa parte do povo para o outro ao seu lado) continue seu desfile.

E o futebol segue, as novelas seguem, os realitys seguem. A vida, digo, a morte segue. E a nação inteira parece dizer/mugir: “E daí?”. Mil teses já surgiram para explicar esse fenômeno Brasil. Mesmerizacão coletiva, por parte de um perverso e louco? Identificação das massas com um ideal emitido por um líder genocida, espelho dos que o seguem? Erupção coletiva de um comportamento bestial, desumano, por parte de uma população doente, em sua sociopatia? Simples manifestação de um grupo que defende /sempre defendeu a necropolítica do poder? Estupidez em um efeito/comportamento de manada?

Particularmente, eu vejo que nessa sopa podre, há de tudo um pouco. Mas há um ingrediente a mais, muito marcante, nesse prato indigesto, e tem a ver com os modelos de religião que se implantaram, que foram implantados nesse país, desde a sua colonização.

O Brasil é uma República Laica. Está na Constituição de 1988, mais exatamente no § 2º de seu art. 11. Mas isso, na prática, isso é mais uma tese, que exatamente a Lei. O Estado brasileiro, em todas as suas esferas, é atravessado pela religião, seus ditos, suas normas, suas crenças, seus preconceitos, seus dogmas. Basta olhar para o ponto mais alto, o morro, monte ou colina de cada cidade do país e lá estará um cruzeiro, senão a própria imagem do Cristo crucificado, símbolo máximo, discreto ou não, do nosso fundamentalismo.

Nós nunca fomos um Estado Laico, como já dizia, ou tentava dizer, a nossa primeira Constituição Republicana, de 1891. A igreja e Estado bem sabem disso. Num jogo sujo de interesses, políticos sempre se disseram cristãos para obterem votos, as diversas igrejas “cristãs” sempre apoiaram políticos que servissem aos seus interesses particulares. É um eterno encontro de novos Caifáses e Pôncios Pilatos, rendendo homenagens ao deus Mamon. E ambos, lavando o sangue das sujas mãos.

E quem luta contra isso? Quem se opõe a essa cegueira medievelesca, a esse fundamentalismo religioso homicida/suicida, que alimenta um discurso de ódio e negação à ciência, ressuscitando crenças absurdas de cura através de unguentos, panaceias, jejuns, rezas, exorcismos, promessas, oferendas, dízimos e orações? Quem DEVERIA se opor à essa ode à ignorância, de quem se espera essa ação, esse chamado à razão? A escola, as academias, óbvio.

Não é nelas, nas escolas, nas academias, que a ciência é estudada, posta à prova, desenvolvida? Não é delas que nascem os filósofos, os sociólogos, os historiadores, os médicos, os cientistas? Não é na escola, na academia, não somente, mas principalmente nelas, que a vida em sociedade é estudada e trabalhada, onde os conhecimentos milenarmente desenvolvidos são debatidos, aperfeiçoados, transmitidos? Não são a escola, a sala de aula, a academia, o farol a iluminar a escuridão da ignorância humana? Não, não são. Sinto dizer. Deveriam ser, mas não são.

Ocorre no campo da educação, o mesmo que se engendra no campo do poder político. O discurso fundamentalista religioso se espalha, como um câncer, um parasita alienígena que aos poucos domina, subjuga seu hospedeiro, se torna ele, ao final do seu processo. Quem, como eu, viva do oficio da educação, saberá do que estou falando. Saberá que a história da educação no Brasil, nasceu da intervenção da igreja, com os Jesuítas, a catequisar os índios, “as novas almas salvas em nome de Deus”. Na verdade, os Jesuítas buscavam evitar que os protestantes, seguidores de Lutero e sua nova igreja, chegassem antes.

A educação no Brasil nasceu de uma nova guerra santa, simples assim. Se foram os Jesuítas, mas a ideia fundamentalista, as práticas de condução, de conversão, de catequese religiosa através das salas de aula, nunca saíram daqui. Aqui, se plantando tudo nasce, inclusive o joio, as ervas daninhas.

Grosseiramente falando, a escola brasileira ainda não viu seu movimento Iluminista, a fé ainda ocupa o pódio, no lugar da razão, mesmo que isso publicamente não se assuma. Quem trabalhe em educação, e esteja vivendo esse momento de infindáveis aulas/reuniões on-line, e de infinitos grupos de zap, saberá do que estou falando.

Recebemos todos os dias uma tempestade de posts com mensagens religiosas, das mais diversas denominações, junto com outros de propaganda, se vendendo de tudo, óbvio, inclusive a salvação. E nada mais. Fora isso, impera um vergonhoso silêncio sobre tudo. Não se discute política, não se fala sobre sociologia, sobre esse evento histórico que vivemos, nada. O que mais se posta e se lê é um “Aquiete seu coração! Deus está no comando, tudo isso passará. Amém irmão? Amém Irmã? Amém”.

Porque digo isso? Porque isso, essa dogmatização religiosa, essa conversão sistemática e persistente, essa prática desavergonhadamente aplicada nos mais diversos espaços públicos, do Plenário do STF, com seu crucifixo sempre à mostra, passando pelos morros e colinas e serras altas das cidades, às salas de aula, essa lavagem cerebral, isso alimenta, ou retro alimenta esse comportamento idiotizado que, hoje, nos fez ser um país-pária diante do resto do mundo.

Somos uma nação cuja imensa parcela de seu povo não escuta a ciência, não acredita em vacinas, diz acreditar que a Terra é plana, ou que duvida que ela seja mesmo redonda; que a partir da fala de um padre idiota, de um pastor canalha, de um político canastrão, de um jornalista imbecil ou de um médico mal caráter, se entope de medicação ineficaz, que além de não combater a disseminação do vírus, ainda o aproxima mais da morte, seja pelo ataque d doença, seja pela falência do seu fígado, destruído por um tal “kit covid”. Somos, hoje, uma nação que duvida dos números de seus mortos ou que, simplesmente, como um cordeiro imbecilizado, diz: “Foi deus quem quis assim”. 

Nos transformamos num arremedo de nação, um país que entrou numa máquina do tempo, e se colocou novamente no meio do que seria a Idade Média, em seus piores momentos. A peste está entre nós, e no lugar dos estudos, da aplicação da Ciência, da defesa da vida humana, tudo tem se reduzido a um discurso piegas, imbecilizado, estupido, retardado, falsamente humano, que pode ser reduzido a um “Tudo está dentro dos desígnios de Deus”.

Ontem foi Domingo de Páscoa, quando os Judeus relembram a libertação de seu povo, depois de 04 séculos de cativeiro no Egito, e os 40 anos de passagem pelo deserto, e os cristãos (ou “cristãos”) celebram o que teria sido a ressurreição de Jesus, morto três dias antes, crucificado no alto do Gólgota. Pois bem. Na travessia desse nosso novo deserto que já dura mais de um ano, até hoje, noite de 05 de abril, quando digito essas linhas finais, já morreram mais de 331 mil brasileiros, pelo Covid-19, pela ingerência governamental, pela estupidez humana de imensa parte de nossa população. Nenhum deles ressuscitou no Domingo de Páscoa, nenhum deles ressuscitará. E o deserto ainda está longe, muito longe, de chegar ao fim.

 

Ps: Particularmente, me recuso a acreditar que isso seja um desejo, um desígnio de Deus. Seja ele de que religião for.

 

Vit. da Conquista, Ba.  05.04.2021.

 

_______________________________________
*Historiador, Grdn. em Psicologia, agnóstico, quase um ateu.

0 comments :

Postar um comentário

Buscar neste blog

por autor(a)

Arquivo

Inscreva seu e-mail e receba nossas atualizações: