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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O porquê da Política de Cotas no Brasil.

Foto: http://migre.me/gCdS8

* Por Herberson Sonkha[1]
Ao fazer uma provocação ao Movimento Negro, o ilustre vereador Florisvaldo Bittencourt (PT) propôs discutir criticamente a temática de Cotas nas universidades públicas e suas finalidades educacionais para inserção e permanência das populações afroindígenas no ensino superior. Esta proposta faz parte das inúmeras inciativas do mandatário partícipe de uma modalidade democrático-popular de mandato, aberto as inúmeras contribuições da militância porque sua percepção política está articulada com a realidade crítica das populações afroindígenas e com a perspicácia de quem tem compreensão e compromisso com a necessidade de fortalecer as ações afirmativas.


Às voltas com o polêmico projeto de lei em tramitação na Câmara de Vereadores, intitulado de “Escola sem Partido”, de autoria do vereador Gilzete Moreira (PSB) a Assembleia Legislativa Municipal se aprovar o despolitizado projeto expressa um comportamento conservador e racista, um golpe traiçoeiro contras os avanços no campo da educação étnico racial. Assim, nós militantes do movimento negro consideramos que este debate guarda alguma relação esclarecedora com o projeto em curso que fere a LDB (Lei 9.394/96) que define em âmbito do municipal as Matrizes Curriculares e os Projetos Políticos Pedagógicos que visam promover a transdisciplinaridade para o ensino de história, cultura, filosofia e religiões de África e afrodescendente. Enquanto não se chega à universidade os educandos precisa ter acesso a esta política de promoção e proteção das populações em situação de vulnerabilidade socioeconômica, política, religiosa e cultural.

A plataforma politico-pedagógica sobre a qual ergues o sentimento de pertencimentoétnico racial começou ser desenvolvida desde 2003 voltada para o ensino fundamental, das séries iniciais com o ensino de História, Cultura, Religião e Filosofia de África e Afrobrasileira e as lutas e história dos Povos Originários do Brasil (Lei 10.639/03 e 11.645/08).  É nesta perspectiva que se constrói e aprova em 2012 a Leis das Cotas e pavimenta o caminho que dá o acesso a estes educandos ao ensino superior, historicamente negado.

Assim, a Lei de Cotas (12.711/12) é resultado do esforço coletivo dos movimentos negros que vem pressionando sucessivos governos, reitores e também da sensibilidade e compromisso do Gabinete da Presidência da República desde o governo de Luiz Inácio Dilma que apresentou e articulou a base governista na Câmara de Deputados Federal para apresentar o projeto de lei que estabelece no plano jurídico aquilo que muitas universidades federais e estaduais já vinham fazendo no âmbito administrativo, mas que precisava ser universalizado por meio de uma legislação especifica as ações afirmativas no Brasil, como políticas de Estado. Mesmo com a referida disposição política em atender a demanda dos movimentos negros brasileiros, com exceção de alguns setores do movimento negro que se posicionaram criticamente ao teor do projeto durante a tramitação nas duas câmaras, o projeto sofreu uma representação em 2009 no STF protocolada pelo Partido Democrático (DEM), antigo PFL, que argumentava contrário a Lei de Cotas por considerarem ser inconstitucional uma vez que feria o princípio da igualdade de direitos.  

Essa ação contrária expôs as fragilidades argumentativas do Senador Demóstenes Torres (DEM) e a resistência ideopolítica dos representantes das elites brasileiras frente ao minucioso voto do Ministro Ricardo Lewandowski. Politicamente revela a posição histórica da bancada ruralista, industrial e religiosa contrária a reparação, ascensão, acesso e permanência das populações afroindígenas nas universidades públicas do Brasil. Demóstenes Torres (DEM), partícipe da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ao explicar sua atitude contras a política de cotas considera que “as cotas, estará ameaçado o princípio de que todos são iguais perante a lei, o que temos conseguido cumprir, apesar das adversidades''. Para o senador Demóstenes a escravidão não deixou nenhuma divida social, não há desigualdades por estas razões: “Que no dia seguinte à sua libertação, os escravos “eram cidadãos como outro qualquer, com todos os direitos políticos e o mesmo grau de elegibilidade”.

O Voto da relatoria acaba reforçando, em grande medida, aquilo que os movimentos negros brasileiros vêm dizendo há décadas, portanto, o ministro Ricardo Lewandowski vai dizer que “A histórica discriminação de negros e pardos, revela um componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multissecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade social.” Contudo, a corte marcial brasileira expressou muito mais a posição intelectual dos seus magistrados do que uma tradição de direitos assistidos às populações afroindígenas brasileiras.

A universidade desde sempre foi um lugar distante e impossível para a população afro-indígena, pelo menos até a primeira década do século XXI. Desde a chegada da Coroa Portuguesa e seu perverso domínio sobre os povos originários, acentuado pela escravização das populações negras nas Américas até hoje, não conseguimos superar marcas indeléveis no corpo e a na história de séculos de trabalho escravo, fome, dor, sofrimento, exclusão, assassinatos, estupros e acoites que marca um tortuoso caminho percorrido pelas etnias afro-indígenas no Brasil.

Ao percorrer esta via-crúcis saindo do longínquo século XVII, passando por 5 de maio de 1888, com a publicação da Lei 3.353 que declara “extinta” a escravidão no Brasil até a Lei de Cotas nº 12.711 de 29 de agosto de 2012, há um doloroso fluxo de violências e exclusões que só muito recentemente a historiografia escrita e contada a partir do vencido começa corrigir a história oficial através da lei 10.639 de 01/2003 que retifica o texto da Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira da lei 9394/96 LDB, ambas modificam as Diretrizes Curriculares Nacional para a Educação das Relações Étnico-raciais no Brasil. Estas alterações tornam obrigatórias as disciplinas que desenvolvem a história, cultura, valores e religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras nas matrizes curriculares oficiais e cinco anos depois inclui-se por intermédio da lei 11. 645/2008, que altera a lei 10.639, a versão dos povos originários criminosamente vencidos e a luta destes nas grades curriculares das escolas brasileiras. 

Assim o Brasil passou a ter uma legislação que visa corrigir aspectos educacionais que incidirão positivamente nestas correlações de força assegurando iguais condições aos povos originários e de África fortalecendo a pertença étnica racial e apontando um dos caminhos que podem contribuir para superar a problemática socioeconômica e política herdada, além de procurar desmistificar os estigmas deixados pelo recrudescimento do racismo brasileiro, atribuindo a situação destas populações as condições socioeconômicas e políticas adotadas desde os nossos antepassados.

Ainda no campo educacional experienciamos as políticas afirmativas, expressa por antigas demandas por cotas raciais no Brasil, contudo, os debates mais propositivos no âmbito das políticas públicas de caráter mais gerais por tensão dos movimentos negros transcorrem com mais rapidez e pressão nas primeiras décadas do século XXI, especialmente aquelas que tratam de ações afirmativas, nomeadamente a partir da primeira década do século XXI, com a decisiva participação de diversos militantes brasileiros representando vários matizes do movimento negro no Brasil na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em 2001, em Durban, na África do Sul.

Nestes dez anos de cotas no Brasil, mesmo quando não havia uma lei que regulassem o acesso destas populações ao ensino superior, algumas universidades estaduais e federais adotaram cotas sociais e raciais, sem que este tipo de ação afirmativa fosse efetivamente uma política de Estado. Este debate por dentro e fora da institucionalidade tem um pouco mais de uma década e já apresentou algumas alterações, embora ainda tímida, nos números apresentados pelo MEC, que mostra alterações na rígida composição que modifica a hegemonia etnicamente branca nas universidades públicas brasileiras.

No que pese saber que estas alterações ainda não fazem jus aos 50,7%[2] da população negra do país, apontada pelo IBGE no senso de 2010, acredita-se que há uma tendência de crescimento a partir da lei de cotas que torna obrigatório desta politica de cotas por todas as universidades estaduais e federais do país. Em 1997, apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros, entre 18 e 24 anos cursavam ou tinham concluído um curso de graduação, diz a pesquisadora e doutora da Universidade Federal Fluminense, Tereza Olinda Caminha Bezerra. Olinda afirma que houve um crescimento, ainda que tímido, no percentual a partir da adoção de cotas, saindo de 2,2% para 11% entre estudantes pardos e de 1,8% para 8,8% de negros concursando ou concluíram um curso superior no Brasil, segundo número do MEC em levantamento realizado em 2013.

As ações afirmativas adotadas em agosto de 2012 pelo Governo de Dilma Rousseff visam promover a inserção das populações afroindígenas nas universidades públicas através de medidas discriminatórias positivas para interagir, diferente do apartheid na África do Sul que promovia a segregação. Os números no Brasil demonstram que as populações negras e indígenas foram criminalizadas pelas políticas e formas de dominação que possibilitaram a pratica de violência moral, física, psicológica, social e econômica injusta a luz dos tratados internacionais de direitos humanos. Sem o reconhecimento do Estado brasileiro e a adoção de políticas de reparação torna-se impossível superar as profundas desigualdades apontadas e discutidas pela conferencia de Durban em 2001.

Não obstante saber que existe desigualdade é necessário apontá-las para que as politicas públicas possam corrigir urgentemente estas distorções. Observa-se, por exemplo, que a desigualdade no Brasil é objetiva e intencional e criou separações de pessoas em vários aspectos, uma dessas distorções é a espacial, que se dá em decorrência dos históricos privilégios concedidos à população branca. Compreende-se que, ao assegurar melhores oportunidades de estudo, emprego e profissão, impedindo que as estas populações subtraídas de direitos ascendesse, o Estado praticou crime contra as populações negras e indígenas. Essa diferença “temperada a ferro e fogo”, caracterizada pela privação destes povos ao acesso à formação profissional e aos melhores empregos, explica em grande medida a situação de miséria, desemprego, pobreza, analfabetismo apontado pelo IBGE no senso de 2010.

Há o aspecto simbólico que atua na distinção de pessoas brancas, separando-as das demais por um sistema perverso de classificação que produz juiz de valor desfavorável às estas populações, uma vez que as pessoas brancas são consideradas melhores na sociedade porque possui características desejadas por todos como sendo exclusiva das pessoas de bem, lê-se brancas. Este estigma pernicioso que infelizmente ainda priva perversamente as populações afroindígenas de serem respeitas e reconhecidas com alteridade representa o símbolo mais cruel da modernidade e revela também a face sádica de quem pratica de forma velada ou explicita o racismo.

Esta terrível, mas inexorável realidade precisa ser desmitificada porque essas desigualdades não ocorrem por falta de competência destas populações barbaramente criminalizadas, mas porque elas foram colocadas e condenadas sem o direito ao contraditório a viverem “eternamente” nesta situação de desvantagem. Por isso é que se faz necessário considerar como essencial às condições objetivas a que são imputadas aos afros indígenas para transformá-las porque não é mais cabível manter tais condições quem efetivamente vem construindo há séculos a riqueza deste país.

O ponto de partida não é, e nunca foi igual, por isso há tantos indicadores contraproducentes no desempenho, aliás, porque existem aspectos determinantes que existem para incidirem negativamente nos resultados. O epicentro disso tudo são as desvantagem (objetivas e subjetivas) em favor dos cândidos bem nascidos e protegidos social, econômica e politicamente e que, não obstante, a tudo isso ainda as “boas novas” conspiram a seu favor. Observemos que lhes foram assegurado minimamente às condições ideais de ensino, moradia, saúde e autoestima, quando a outra parte é forjada as péssimas condições de vida, pouco mudou desde as senzalas, mantem-se desfavoráveis, de outro modo, mesmo com a presença das políticas públicas ainda persiste de maneira sistemática a ausência de tudo que fora garantido aos brancos, acrescida de violência racial simbólica e institucional.

As ações afirmativas são necessárias para garantir a presença das populações afroindígenas nas universidades públicas, mas precisamos garantir também a permanência na universidade para que gerações não continuem sendo prejudicadas, qualidades intelectuais desperdiçadas e seu futuro frustrado. Foram reforçados por mais de cem anos que não havia racismo no Brasil porque era um país com democracia racial. Não podemos mais, sob quaisquer alegações, manter erros crassos do passado que nunca quiseram rever, ao contrário, a escravidão e o racismo sempre contaram com o silêncio da sociedade, igrejas, escolas, sindicatos, mercado de trabalho, associações e outros espaços coletivos de vivencias sociais.

Nunca houve tal disposição, basta relembrar do primeiro senso da população realizado em 1872, depois de mais de um século de politica de branqueamento, mesmo com as amostragens da ultima Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicilio (PNAD) confirmou que 51,3% da população era preta e parda, só agora a população negra foi considerada oficialmente como majoritária. Portanto, as Cotas faz parte do amplo leque de proposta dos movimentos Negros brasileiros do empenho dos atuais governos em promover as populações afroindígenas às universidades públicas e seu ingresso no mercado de trabalho de forma qualificada. Estas bandeiras históricas compõem as lutas destes movimentos pelo empoderamento nos espaços de poder e ascensão socioeconomicamente para corrigir séculos de exploração e violência contras quem efetivamente construiu a riqueza brasileira.   





[1]Herberson Sonkha é militante do Partido dos Trabalhadores, membro do COESO (Coletivo ética Socialista), Coordenador Nacional de Relações Institucionais e Internacionais dos Agentes de Pastorais Negros (APNS) e Presidente do Conselho Municipal de Educação do município de Anagé.
[2]Senso de 2010 do IBGE dia que 96,7 milhões – o equivalente a 50,7% da população -, contra 91 milhões de brancos (47,7%), 2 milhões de amarelos (1,1%) e 817,9 mil indígenas (0,4%). No total somos 190.755.799 milhões de habitantes.

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