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sexta-feira, 26 de julho de 2024

A escalada fascista dos magnatas-vendilhões da fé e a justiça social cristã

Imagem: Diocese de Campos

"Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai para vós tesouros no céu..." (MATHEUS, 6:19-21)



*por Herberson Sonkha 


Normalmente, não costumo escrever sobre religiosidade em geral, especialmente a cristã. Isso acontece primeiro porque não sou cristão e, segundo, porque por ser de terreiro respeito a fé dos outros. No entanto, quando essa religiosidade deixa de ser uma questão pessoal e é elevada por forças sociais antidemocráticas de caráter ultraconservador ao âmbito público (e privado), transformando-se em um projeto político de poder teocrático de extrema-direita, então, ela se torna mais do que apenas uma opinião.

Nesse caso, nossa escrita se torna uma análise crítica sócio-histórica essencial para despertar a consciência coletiva dos cristãos contra enganos que buscam distorcer a realidade para beneficiar apenas uma perspectiva ideopolítica extremista (antipopular) de viés capitalista burguesa. Isso tem como objetivo impedir que se estabeleça uma política hegemônica de Estado que fortaleça as históricas elites econômicas locais e globais imperialistas, espalhando o ódio (de classe, raça e gênero), a demonização das religiões de matriz africana, a intolerância religiosa, a anticiência e o negacionismo.

De acordo com uma matéria da Revista Forbes (2013) chamada “Os Pastores Mais Ricos Do Brasil”, a crescente presença dos evangélicos no Brasil, especialmente entre os neopentecostais, está muito ligada à doutrina da "Teologia da Prosperidade". Essa doutrina ensina que ter sucesso material é um sinal de que Deus está favorecendo a pessoa. Essa crença ajudou a aumentar a fortuna de pastores como Edir Macedo, cuja riqueza é estimada em R$ 2 bilhões, seguido por Valdemiro Santiago (R$ 400 milhões) e Silas Malafaia (R$ 300 milhões), Estevan Hernandes Filho e a bispa Sônia, com R$ 120 milhões juntos, entre outros. 

Essa situação revela um grande contraste com os princípios de justiça social e solidariedade que deveriam ser a base da prática cristã. Isso levanta questões sobre a ética e a autenticidade da fé em um contexto onde a busca por riqueza acaba se sobrepondo ao compromisso com os marginalizados e oprimidos. Portanto, a prosperidade desses líderes religiosos não apenas mostra uma distorção dos valores cristãos, mas também perpetua um sistema em que a espiritualidade é tratada como um negócio, desafiando a verdadeira missão da igreja de promover a justiça social.

Nesse sentido, nada é melhor do que o livro de Mateus, especialmente o capítulo 6, para entender o que está por trás da desonestidade dos magnatas da fé, os vendilhões do templo nos dias de hoje, esses mercadores da fé em nosso tempo. O capítulo 6 de Mateus fala sobre a prática da vida cristã em relação à espiritualidade, à generosidade e à dependência de Deus. Jesus ensina sobre a autenticidade da fé, destacando que as ações religiosas, como a oração, o jejum e a caridade, devem ser realizadas com sinceridade e não para ostentação.

Contudo, vamos entender um pouco mais sobre o contexto histórico em que o capítulo em análise foi escrito. Mateus foi escrito em um momento em que as comunidades judaicas estavam influenciadas pela cultura helenística e enfrentavam tensões sociais e religiosas. O autor pretende mostrar Jesus como o Messias prometido, trazendo uma nova compreensão da lei e da vida espiritual. O capítulo 6 reflete essa intenção, contrastando as práticas religiosas autênticas com as hipocrisias dos líderes religiosos da época.

Nesse contexto, a caridade, a oração e o jejum formam uma tríade que constitui a lei que rege (pelo menos deveria) a evolução da vida espiritual da população cristã. A base da prática da caridade (Mateus 6:1-4) está na conduta de Jesus, que critica a ostentação nas doações, enfatizando que a generosidade deve ser praticada em segredo, para que a recompensa venha de Deus e não dos homens.

Contudo, o próprio Jesus se dedica a ensinar sobre a oração (Mateus 6:5-15), apresentando o Pai Nosso como um modelo. Ele destaca a importância da sinceridade e da intimidade com Deus, em contraste com a repetição vazia. Também aborda o jejum (Mateus 6:16-18), e, assim como na caridade e na oração, Jesus orienta que o jejum deve ser uma prática pessoal e não uma exibição pública.

Essa lei, definida pelo próprio Jesus e apresentada por Mateus no capítulo 6, guia a pessoa cristã na evolução espiritual, refutando qualquer ideia de que acumular riquezas seja um parâmetro de evolução espiritual. Isso se torna explícito quando Mateus (6:19-21) explica a diferença entre o tesouro e o coração, com base no ensinamento de Jesus, que faz uma clara separação entre os tesouros terrenos e celestiais. Ele alerta sobre a efemeridade das riquezas materiais e a importância de priorizar os valores espirituais.

Mateus explica que Jesus orienta a pessoa cristã a se desvincular da dependência material (todas as formas de riqueza) e a buscar a dependência de Deus (6:25-34). Isso é uma espécie de ultimato para confiar em Deus, abordando a ansiedade sobre as necessidades diárias e incentivando a busca pelo Reino de Deus. No entanto, essa mensagem já havia sido escrita pelos antepassados no Antigo Testamento. Por exemplo, Provérbios (11:28) adverte que "O que confia nas suas riquezas cairá, mas os justos florescerão como a folhagem."

Esta passagem reforça a ideia de que a verdadeira segurança não está nas riquezas, mas em Deus, e isso é apoiado por outros escritos, como os Salmos (62:10), que afirmam: "Não confie na opressão, nem em roubo; se as riquezas aumentam, não ponham nelas o coração." Essa mensagem complementa a advertência de Jesus sobre os tesouros. Além disso, Lucas (12:33-34) é enfático ao orientar os cristãos: "Vendei o que tendes e dai esmolas; fazei para vós bolsas que não envelheçam, tesouros nos céus que nunca se esgotam."

Lucas não apenas reforça a mesma mensagem sobre o desapego às riquezas, mas também está em perfeita sintonia com 1 Timóteo (6:17-19), onde Paulo orienta os ricos a não serem orgulhosos e a usarem suas riquezas para fazer o bem. Ele enfatiza que a verdadeira vida é encontrada em Deus.

Portanto, Mateus 6 apresenta uma visão inconteste sobre a espiritualidade autêntica, que se afasta da hipocrisia e da riqueza. Através de ensinamentos diretos e referências ao Velho e ao Novo Testamento, Jesus convida seus seguidores a uma vida de fé genuína, centrada em valores eternos e na dependência de Deus. Essa mensagem ressoa fortemente na atualidade, desafiando os crentes a refletirem sobre suas prioridades e práticas espirituais.

Para sermos coerentes com o contexto histórico, é importante dizer que Mateus foi um apóstolo na perspectiva do cristianismo primitivo. Isso envolve considerar seu papel como um dos doze apóstolos e autor do primeiro evangelho canônico. Mateus, que era coletor de impostos, traz uma visão particular sobre Jesus e sua mensagem. Seu evangelho destaca a conexão de Jesus com as profecias do Antigo Testamento, enfatizando a inclusão dos marginalizados e a necessidade de uma vida ética e comunitária.

Como pensar na perspectiva do Cristianismo Primitivo, no qual Jesus assume a condição de “Messias”, senão observando como Mateus apresenta Jesus como aquele que cumprirá as profecias messiânicas, enfatizando seu papel salvador? Contudo, estamos falando de um contexto sócio-histórico real e concreto, sem a perspectiva prometeica. Para isso, o “Cristianismo Primitivo” propõe a “Inclusão dos Marginalizados”. Segundo o evangelho de Mateus, ele inclui histórias que mostram a preocupação de Jesus com os pobres, os doentes e os pecadores, refletindo uma ética de inclusão e compaixão.

Tudo isso está vinculado a ações comunitárias. A ênfase em práticas como a oração, o perdão e a partilha entre os membros da comunidade cristã é central no evangelho, promovendo uma vida comunitária baseada no amor. Esse resgate do primitivismo cristão ocorre com a Teologia da Libertação, que surgiu na América Latina nos anos 1960 e 1970. Isso exige um diálogo com a racionalidade para interpretar a fé cristã à luz das realidades sociais e econômicas, especialmente a opressão e a pobreza.

Essa perspectiva primitivista do cristianismo atribui uma conexão com Mateus que pode ser vista em vários aspectos. Aqui se insere a “preferência pelos pobres”, segundo a qual Mateus se destaca ao confirmar a preocupação de Jesus com os marginalizados. Isso está em linha com a Teologia da Libertação, que enfatiza que Deus tem uma opção preferencial pelos pobres e oprimidos.

Não podemos retirar de Mateus o seu compromisso na escrita com a abordagem da “justiça social”. Isso aparece como um reforço ao chamado à justiça, presente nas palavras de Jesus em Mateus, um princípio que fundamenta a Teologia da Libertação, que busca transformar estruturas sociais injustas. Aqui, assistimos a um outro Mateus, absolutamente desconexo com a primazia do acúmulo de riquezas, mas profundamente conectado à espiritualidade maior.

Inegavelmente, Mateus apresenta um Jesus articulado politicamente para a inclusão no “paraíso” aqui na terra das pessoas marginalizadas, oprimidas e violentadas por quaisquer sistemas, em quaisquer épocas, que priorizam a riqueza acumulada nas mãos de alguns poucos, extraída da maioria, em detrimento da solidariedade, compaixão, caridade e justiça social.

Vários outros escritores, teólogos e professores ingleses e estadunidenses se debruçaram criticamente sobre essa doença capitalista chamada prosperidade, que beneficia apenas os pastores da prosperidade e uma casta formada por uma minoria. Essa situação grassa na espiritualidade e profana púlpitos mundo afora. Essas referências e autores são um ponto de partida para uma análise mais aprofundada da crítica à “teologia” da prosperidade no Novo Testamento.

O estadunidense John Piper, teólogo e pastor, em sua obra "Desiring God", enfatiza a importância de focar nas riquezas espirituais em vez dos materiais. Nicholas Thomas Wright, renomado teólogo britânico, critica a busca por riquezas materiais em "Simply Jesus", considerando-a um desvio da missão cristã. Outro britânico, pastor e professor, afirma em "You Can Change" que a fé não deve ser medida por bens materiais. Timothy Keller, também teólogo, diz em "Counterfeit Gods" que a verdadeira riqueza vem de Cristo, contrastando com a teologia da prosperidade.

Todas essas perspectivas validam e legitimam a “prática da fé”, reforçando a ênfase de Mateus na prática da fé, como a solidariedade e o cuidado com o próximo. Isso ressoa com a ideia de que a fé deve se traduzir em ação social. Portanto, a vida cristã se tornaria impraticável se não houver um compromisso social de combater sistematicamente a exclusão, a opressão e as múltiplas violências sociais, econômicas, culturais e políticas na sociedade.

Portanto, a perspectiva de Mateus no cristianismo primitivo, com seu foco na inclusão e na ética comunitária, oferece uma base sólida para a Teologia da Libertação. Ambas as abordagens compartilham um compromisso com a justiça, a dignidade humana e a transformação social, refletindo a missão de Jesus em um mundo marcado pela desigualdade e opressão.


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