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quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Herberson Sonkha: intensa militância social nas duas últimas décadas do século XX

Foto: Herberg e Herberson

"O agitado transcurso dos anos 80 se constituiu na encruzilhada ideológica que determinaria os rumos de minha vida, pois apontaria a direção da primeira etapa da minha formação intelectual, cultural e de militante das causas sociais."

 

*por Herberson Sonkha


Aos 14 anos eu acabara de deixar a infância e era penas um garoto magrelo, esquisito e um típico curioso bem característico de alguém recém-chegado à adolescência. Nascido no bairro Alegria, um bairro pobre de classe operária da construção civil ou mecânica surgido na enchente do bairro Jurema no final da década sessenta à margem da rodovia BR-116 de Vitória da Conquista. Havia se mudado para Jequié em dezembro de 1979 porque meu pai teria aceitado um novo trabalho e uma nova companheira com quem teria se casado naquele mesmo ano.

Eu e meu grande parceiro de vida inseparável e irmão Herberg (Binho), nascemos num lar musical, painho Alício e o nosso tio Herculano (Cula) sempre ouviram boa música. À época, se ouvia LP’s em casa numa vitrola de madeira (44x78) de marca Philips  ("Apesar de você" - Chico Buarque, “Mosca na Sopa “ - Raul Seixas, “Panis Et Circenses” - Os Mutantes, “Primavera nos dentes”- Secas e Molhados/Ney Mato Grosso, “Proibido Proibir”, "Alegria, alegria" - Caetano Veloso e Gilberto Gil, Clube Esquina - Milton Nascimento, "O bêbado e a equilibrista" - Elis Regina, “"Pra não dizer que não falei das flores" - Geraldo Vandré, “As Duas Faces de Eva/Cor de Rosa-Choque” Rita Lee e tanto outros) baixinho para não ser denunciado pelos vizinhos e preso pela polícia como subversivo.

Na adolescência, descobrimos que nosso pai não era apenas um consumidor de músicas subversivas, pois houvera participado de algumas lutas políticas empreendidas pelo MDB (um partido guarda-chuva que abrigava todas as forças de esquerda - socialista e comunista - banidas pela ditadura militar no Brasil) nos anos 70 na cidade de Vitória da Conquista ao lado do amigo e advogado Vicente Cassimiro e do movimento cultural com o escritor e artista Carlos Jehovah Esechias Araújo Lima ("Auto da Gamela"). O bipartidarismo, Aliança Renovadora Nacional (ARENA) ou o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), era a única opção de participação político-partidária, excepcionalmente era permitido realizar atividade política monitorada pela ditadura militar sem poder lutar pela reabertura política do país. Dado seu envolvimento com a música, Painho chegou a “agenciar” a banda Imborés e alguns trios de forró (Joel Pinheiro) da cidade desde final dos anos 60.

O agitado transcurso dos anos 80 se constituiu na encruzilhada ideológica que determinaria os rumos de minha vida, pois apontaria a direção da primeira etapa da minha formação intelectual, cultural e de militante das causas sociais, pois a segunda certamente foi comunista de base teórica marxista-leninista. Embora houvesse uma pequena predisposição a insubordinação cultural por causa da minha vivência musical subversiva no ambiente familiar, isso só principiaria quando ouvi pela primeira vez a rebeldia da banda Legião Urbana nas férias em Vitória da Conquista, na casa de um amigo de infância Carlos Kleber (Klebinho) no bairro Alegria.

Ouvíamos muitas e diversas músicas tocadas numa fita cassete (K7), mas Legião Urbana em especial, pois ele gravou do programa de rock da Band com Marcelo Bonfá que apresentava a banda Legião Urbana de uma forma excitante para um jovem da periferia, mesmo sem compreender direito o teor de sedição da proposta poética, fiquei empolgado com a obstinação das canções “Geração Coca-Cola” e “Fábrica”.

No final da década de 80, voltei a morar em Vitória da Conquista e participei ativamente da primeira eleição direta a presidente do Brasil de 1989, depois de 25 duros e difíceis anos de chumbo da ditadura militar no país. Havia retomado a relação de amizade de infância com Antônio Marcos Andrade (Marcão), pois havíamos passado bons momentos na escola onde consolidamos boas amizades. Estudamos todo o primário juntos no Grupo Escolar Alaor Coutinho (GEAC), desse período construir amizade também com o grande Miguel Júnior, com quem reencontrei na UESB no curso de História.

Participamos da gincana do Centro Integrado de Educação Navarro de Brito (CIENB) na equipe Anarquia, frequentamos a movimentada lanchonete Alternativa, na Avenida Lauro de Freias (em frente ao terminal de Ônibus) e participamos de alguns carnavais. Fizemos altas aventuras adolescentes na caminhonete-guincho do Guincho Bastos, indo para as festas no Sitio de Lula, no "La Rose" na Avenida Frei Benjamim e no "Purê" assistir vídeo clip recém-lançados de rock e românticas internacionais.

No começo dos anos 1990 fui estudar no Colégio Vilas Boas Moreira (Avenida Sergipe) e lá viria a conhecer os irmãos Marques (Byti, Tiço e Binha), José Deoclécio, Rayca, Marquinhos, Sayonara, Jhones e Elton Quadros de quem me tornaria amigo e frequentador assíduo da casa de Byti e da casa dos pais de Marquinhos. Naquela época Elton Becker estudava no CIEB e trabalhava na Band FM e tinha acesso ao estúdio que Tiço gravava os áudios e Becker editava as melhor vinhetas para as festas que fazíamos com a finalidade de levantar recurso para a equipe (Dá de 10) da Gincana, exemplo da lendária festa no Cafezal. A Band tinha a melhor e mais atualizada discografia do país ou poderia aguardar o disco chegar para comprar na Tropicália Discos de Nadinho Rocha, a loja ficava na Ernesto Dantas.

Depois me matriculei no Colégio Estadual Polivalente onde conheci o professor de técnicas industriais Milton Novais (filho do comunista e sindicalista José Novais principal liderança da greve do café, fundador da CUT e do Partido dos Trabalhadores-PT) com quem tive grandes momentos de leituras e debates da obra marxista-leninista. Mantive a militância estudantil e fui eleito presidente do Grêmio Livre Raimundo Viana, participei da UMES e fui Vice-Bahia da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Nesse mesmo período, conheci também Ana Lucia Santos e Suzi com quem eu e Antônio Marcos Andrade, formamos um grupo de estudo ligado à fração comunista de orientação marxista-leninista dirigida por Milton Novais.

Mais tarde esse grupo se dissolveu antes mesmo da morte precoce de Milton Novais e fomos atuar no Partido Comunista do Brasil, exceto Suzi. Partido que havia iniciado o processo de recrutamento em Jequié em 1984 para o movimento estudantil (no comício pelas “Diretas Já” na Praça Ruy Barbosa) por Ailton Domingues, me convidando a participar do Grêmio Livre Dinaelza Coqueiro, quando estudava no Instituto de Educação Regis Pacheco (IERP).

Fui trabalhar na gráfica Santana e lá conheci outra figura imprescindível que marcaria minha vida e daria imensa contribuição teórica na minha formação intelectual, amigo-irmão João Paulo Pereira de quem me tornaria amigo inseparável, parceiro na minha primeira empreitada política de realizar a primeira paralisação da gráfica Santana por atraso e baixo salário e péssimas condições de trabalho. 

Essas duas décadas (80 e 90) tive acesso a pessoas com hábito de leituras mais densas e um ambiente escolar culturalmente mais intelectualizado que me oportunizaram examinar melhor a obra da banda Legião Urbana, mesmo morando na periferia. Pude ouvir boa música, ler bons livros, aprender xadrez, ir ao teatro, cinema, viajar, debater teoria política, arte, cultura, ciências e economia liberal e marxista graças a militância ideológica político-partidária. Foi na militância que comecei rudimentarmente a escrever. Aliás, devo a algumas pessoas geniais que me criticaram e as que me ridicularizaram (algumas desleais) pela péssima escrita – ainda não posso me considerar um escritor. 

Sobre Renato Russo, da Banda Legião Urbana, considero ter sido expressão de rebeldia da geração oitentista. Compôs a canção “Geração Coca-Cola” em 1985, ironizando a condição desigual entre nós brasileiros e brasileiras que deveríamos ser materialmente e intelectualmente burgueses filhos da revolução e não tínhamos, ou, não deveríamos ter religião. Essa canção abre a primeira coletânea da banda com o álbum chamado “Legião Urbana”, se apresentando oficialmente ao país.

A proposta musical não causa inicialmente tanto frisson entre os jovens de diversas camadas médias urbanas, apenas jovens de classe média com viés de esquerda entende a proposta, mesmo sabendo que os efeitos destrutíveis causados pela ditadura militar não haviam atingido a todos os jovens da mesma forma e no mesmo período de tempo. A periferia desconhecia qualquer tipo de cidadania que lhe conferisse direito social, econômico, cultural e político. Mas, a periferia conhece bem a truculência da polícia. Já no segundo álbum chamado “Dois” essa contradição não escapa aos olhos atentos de Renato Manfredini Júnior porque um ano depois (1986) ele compõe “Fábrica” do Álbum Dois.

A composição “Fábrica” apresenta essa questão de natureza sociohistórica analisada amiúde pela crítica marxista-leninista que “Geração Coca-Cola” não alcança a dimensão sociohistórica necessária para fazer a crítica ao Estado como organizador da violência policial coercitiva como forma de controle social. A dimensão histórica do surgimento da economia capitalista com a produção industrial, naquela conjuntura, sinalizava o progresso pelo qual a humanidade passaria em seu processo sociohistórico.

Na canção, Renato Russo apresenta essas contradições na forma de efeitos colaterais, não como defeito, mas como característica intrínseca ao processo de criação de todas as mazelas sociais e ambientais que põem em cheque essa humanidade do progresso humano, social, econômico, cultural e ambiental. Renato Russo compreende que a estratificação social não é um advento surgido com a revolução industrial, contudo ressalta a produção em massa como característica da expansão do capitalismo que intensifica a exploração da mão de obra, no sentido da mais valia.

Nesse sentido, a banda Legião Urbana oferece às juventudes oitentistas um panorama sociohistórico ao propor um debate profundo sobre o papel social dessa empresa no processo fabril. A fábrica é a simbologia dessa contradição localizada no contexto como condição histórica forjada pela industrialização capitalista. A canção assume, nesse sentido, a condição de crítica contra a exploração da classe trabalhadora, mas não necessariamente contra os e as trabalhadoras. Renato Russo defende a perspectiva de superação desse modelo de exploração, isso implica em admitir a possibilidade de superação do capitalismo dado a sua incapacidade irreversível de oferecer um trabalho honesto, antes restaura a escravidão.

Não obstante a ácida denúncia do capitalismo que explora, desumaniza e escraviza, Renato Russo anuncia o devir quando abre sua poética afirmando: “Nosso dia vai chegar”, dando a entender que a única saída para a humanidade é a revolução das massas e a construção do mundo do trabalho honesto: socialismo.

Lembrando que “Fabrica” de Renato Russo foi composta no apogeu da denominada década perdida (1980), numa conjuntura que chafurdava toda a América Latina em golpes militares financiados pelos EUA, sobretudo o Brasil que iniciava um lento processo de transição para a reabertura política do país, mas ainda estava sob a égide do generalato militar que afundou o país em altos índices altíssimos de desemprego, estagnação econômica e hiperinflação galopante. Não se limita a denunciar as desigualdades entre os homens e a exploração do homem pelo homem, mas faz uma dura crítica às consequências destrutíveis para o meio ambiente com os estragos que a produção fabril causou à natureza. 

 No Brasil sempre existiu o terror nas periferias brasileiras e a classe média alta branca nunca havia denunciado essas formas cruéis de múltiplas violências da polícia porque estavam bem protegidos pela bolha de privilégios. Por outro lado, desde os tempos longínquos da diáspora negra e do sistema de escravidão moderna, populações periferizadas só conhecia o Estado por meio da bota dos milicos chutando as caras pretas ou as balas disparadas a queima-roupa dos canos dos revólveres de policiais que agiam à revelia da lei nos pontos cegos criados pela total ausência do Estado nas periferias com a absoluta negação do Estatuto de cidadania as populações periféricas garantidas pelo Estado Democrático de Direito.

Contudo, pela primeira vez no país eram denunciadas abertamente a repressão policial e a censura, recebidas com estranhamento por jovens brancos de classe média alta porque nunca antes haviam sido vítimas da truculência e do extermínio do sistema. Então, não éramos todos burgueses livres, sem religião e nem ocupávamos a mesma posição social na hierarquia do mundo trabalho e nem possuíamos capital no mundo do livre mercado.

Consumismos e estrangeirismos culturais não eram um incômodo, também não era a imposição de produtos e serviços de mercado internacional empurrando seus “enlatados” para atender aos interesses socioeconômicos do imperialismo dos EUA. Até aquele momento, os EUA que haviam conspirado, financiado e apoiado a intervenção contra os comunistas, também não era um incômodo porque preferiram acreditar que um golpe de Estado dado pelos militares de altas patentes das Forças Armadas de 1964, não parecia tão ruim assim.

Renato Russo é um polido político que usava de sua educação e sua genialidade poética para denunciar as experiências repressivas praticadas contra jovens brancos enclausurados na bolha de classe média alta brasileira, imersos no contexto urbano dos anos 70. Esse contexto da “Geração Coca-Cola” não é vivido por todas as juventudes, sobretudo porque a violência policial (tortura e extermínio) sempre existiu nas periferias das cidades brasileiras e não apenas na década de setenta. Obviamente que essa violência chega à classe média, sob a égide de uma ditadura militar truculenta e sanguinária e no começo da globalização. 

Obviamente, Renato Manfredini Júnior não se referia a essa burguesia atual, pois o estudioso Manfredini estava se referindo ao período revolucionário da burguesa que destituiu o sacro império cristão romano e o sistema feudal depois de um longo e violento ciclo de revoluções burguesas, organizado por movimentos sociopolíticos que decorrem entre 1640 a 1850.

Nesse período, destaca-se em especial esse momento insurgente que culmina na revolução liberal burguesa que ocorreu na França em 1789. Renato Manfredini era um jovem branco de classe média bem-nascido no Rio de Janeiro, mas, a família Manfredini foi transferida em 1967 para os EUA e, finalmente, retorna ao Brasil em 1969 de volta a Ilha do Governador no Rio de Janeiro. Teve acesso a uma excelente formação educacional, sobretudo quando morou em Forest Hills, no distrito do Queens, transferido para uma agência do Branco do Brasil nos EUA.

Frequentou as melhores escolas de classe média alta que seu pai, o economista Renato Manfredini, alto funcionário do Branco Brasil, pode proporcionar.  A inquietação intelectual do Manfredini é característica da classe média brasileira “arrependida” ao se permitir por conveniência ser cooptada pelos interesses da alta burguesia brasileira em troca de privilégios para fechar os olhos para exploração, tortura, assassinatos e a censura adotada pelos generais de linha dura com o AI-5 durante a sanguinária Ditadura militar (1964-1985). Isso vem de Jean-Jacques Rousseau que o fez acrescentar um sobrenome artístico “Russo”, mas, não apenas Rousseau inspiraria a homenagem.

O filósofo inglês Bertrand Russell, cuja trajetória o faria transitar entre o liberalismo, socialismo e pacifismo. Manfredini tinha profunda admiração e conhecimento das principais obras filosóficas do suíço Jean-Jacques Rousseau, sobretudo “Emílio” e “Do Contrato Social” e do pintor pós-impressionista francês Henri Rousseau. Enfim, Renato Russo havia estudado a fundo a Revolução Francesa de 1789 e conhecia bem as razões da crise econômica francesa que originou a decisão do monarca em instituir os Estados Gerais composto pelo clero, nobreza e principalmente pela burguesia como sendo representante da França e convocar a Assembleia Nacional Constituinte que deu início a Revolução de junho de 1789.

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