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segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Colégio Camilo de Jesus Lima: um ponto fora da curva

Colégio Estadual Camilo de Jesus Lima

*por Herberson Sonkha 

"Vapor barato, um mero serviçal do narcotráfico
Foi encontrado na ruína de uma escola em construção
Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína
Tudo é menino e menina no olho da rua
O asfalto, a ponte o viaduto ganindo pra lua"

(VELOSO, Circuladô, 1991)


Nesta quinta (14) participei no Colégio Estadual Camilo Jesus Lima da “Sexta Semana da Consciência Negra: Nossas raízes, minha identidade”. Na oportunidade apresentei a oficina "Compreender a natureza das desigualdades raciais no Brasil Contemporâneo” para duas turmas (2º e 3º ano) na etapa final do ensino médio da educação básica.

O lugar de fala do conhecimento é a escola, portanto discordo que devamos escrever senso comum, sob a pífia alegação de que as juventudes não conseguem ler porque vivemos o irreversível emergencismo responsável pela escrita curta na modernidade – elementos da modernidade líquida – constatado pelo filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017), pois precisamos aprofundar o debate crítico para superar esse ciclo vicioso idiotizante da sociedade, usado como estratégia para emburrecer às pessoas ao extremo de negarem covardemente o papel da formação intelectual legado à educação, do conhecimento crítico que liberta e a importância dos profissionais da educação, principalmente o da docência.

Nesse sentido, o Colégio Camilo de Jesus Lima está na contramão desse ciclo, pois mesmo com o perfil étnico racial em sua grande maioria negra – tradicionalmente negligenciada pela educação bancária – ascende como referência de educação de qualidade pelos resultados positivos conseguidos pelos egressos desse colégio que ingressaram na universidade pública – UESB e particulares.

A atividade pedagógica coordenada pela professora historiadora Vanessa da S. Nascimento Andrade acontece pela quarta vez consecutiva e a nossa participação foi uma indicação do amigo professor da rede municipal e estadual da área de humanidades, Davino Nascimento Silva. A recomendação se deu em função de minha militância no Movimento Negro, atuando há mais de duas décadas como militante dos Agentes de Pastorais Negros (as) do Brasil – APN’s.

A escola está situada na periferia de Vitória da Conquista, numa região tradicionalmente conhecida pelos elevados índices de mortes que compõem a estatística do mapa da violência urbana brasileira. A cena da guerra entre facções que disputam a liderança no comando do tráfico na região nordeste da cidade é reforçada pelo nível de evasão escolar, indicadores de baixa-renda, desemprego e demais mazelas que constituem o perfil socioeconômico da periferia de qualquer cidade de porte médio no Brasil, como é o caso de Vitória da Conquista.

O colégio está localizado nessa região sinalizada pelo índice elevado de criminalidade, no que pese reconhecer que é um equipamento público estrategicamente bem posicionado, certamente o nonsense diria que o perfil do Camilo de Jesus Lima em nada diferencia das demais escolas brasileiras “protegidas” por grades nas janelas que as tornam com aspecto de presídio, aparência de escolas apáticas, bagunçadas, destruídas, depredadas, vilipendiadas e tantos outros adjetivos perversos que atribuem à coitada da escola pública, enquanto espaço físico coletivo nesse país.

Engana-se essa leitura rasa da escola pública, pois os resultados obtidos revelam o papel central do Colégio Camilo de Jesus Lima para aquela comunidade e adjacência na questão da perspectiva dos filhos (as) da classe trabalhadora e das populações em situação de risco causado por múltiplas vulnerabilidades. Sobretudo, pelo debate realizado acerca da “disciplina e do poder no mundo contemporâneo”, próprio de uma sociedade de classes na formulação original do filosofo francês Michael Foucault: “vigiar e punir”.

Talvez, seja por essa razão que o Estado da Bahia por meio da Secretaria Estadual de Educação tenha feito vários investimentos dessa natureza em áreas consideradas de riscos, construindo equipamentos bem estruturados, visando intervir por meio da política pública de educação no trágico “destino” dessas populações jovens, muitas vezes disputadas diariamente pelo crime organizado, aliás, seduz com muita eficiência essas diversas tribos juvenis fragilizadas.

A escola ainda está muito longe de ser um espaço agradável, pedagogicamente adequado para acolher todas às vivencias coletivas entre essas múltiplas tribos juvenis. Isto é fato! Pois, além das expectativas das estruturas físicas humanizadas, equipamentos pedagógicos avançados e um quadro de pessoal da educação – do porteiro à direção – é preciso estabelecer uma política pedagógica libertária, avançada em seu sentido epistemológico. Articulado a mecanismos de gestão democraticamente forte, rápido e eficaz/eficiente que possibilite a radicalização compulsória do convívio com a diversidade, pautado pelo exercício minimamente necessário para emancipação humana.

Essa escola possível ainda não existe efetivamente, mas observamos elementos que a constitui na vivencia com o Camilo de Jesus Lima. Essa experiência exitosa poderá contribuir decisivamente com a desconstrução da propaganda ostensivamente beligerante do tráfico conhecidas como “boca de fumo”. Ela oferece aos incautos viços certos “meios e facilidades” que a conduzem a meteórica ascensão social e econômica (carro, roupa de marca, tênis caro, celulares com versões atualíssimas, drogas licitas e não licitas e sexo) sem cobrar escolaridade e titulação, mas que efetivamente não passam de ilusões.

Mas, foi exatamente por essa razão analítica crítica que me ocupei em fazer minúsculas observações sobre a eficácia/eficiência do projeto político pedagógico do Colégio Estadual Camilo de Jesus Lima, eu diria a principal razão pela qual estou escrevendo. Pois, fui tomado por uma pletora de alegria com todas as atividades realizadas na Semana da Consciência Negra.

Esse movimento pedagógico bem-sucedido me fez perceber que é perfeitamente possível ousar disputar o “vapor barato” para superar essa sensação angustiante da docência – não menos impotente – de que “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”. Verdade seja dita, pois ao dedicar-se aos discentes têm-se como recompensa os frustrantes relatos cotidianos de que parte deles sucumbiu-se a sinistra condição de presidiários nos noticiários da TV. Ou ser surpreendido diariamente com algum estudante estirado no chão após ser alvejados – pelas mãos da polícia ou do tráfico.

A cadeia de produção do submundo do tráfico que remunera acima do salário mínimo, com o qual essas tribos juvenis inteligentíssimas lidam diariamente, contam com isso para que esses jovens se tornarem “um mero serviçal do narcotráfico”, sendo que a maior parte deles nem chegarão aos 25 anos, pois se morre cada vez mais jovem.

Essa é a motivação essencial dessa escrita, portanto é evidenciar o ponto fora da curva do Colégio Camilo de Jesus Lima na triste história da educação pública de nosso Estado: a recepção, interação e a reação positiva dessas tribos juvenis com o debate sobre a natureza do recrudescimento do racismo, muitas vezes tido como maçante e desinteressante – razão pela qual prosperou no Brasil um sentimento virulento que passou a dialogar com o ultraconservadorismo das “elites do atraso”, que não é o lugar natural de falar dessas tribos juvenis, mesmo que a escola pública ainda nos mostre que “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”.

A programação do mês de novembro contou com várias atividades comemorativas ao dia 20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra. Os olhos sinalizavam positivamente com as razões históricas do dia 20 de novembro de 1695, data em que o pernambucano negro Zumbi, nascido livre e escravizado aos seis anos de idade. Houve uma vontade de saber por que Zumbi voltaria para liderar o mais importante quilombo de resistência ao regime escravocrata criado pela Coroa Portuguesa, o de Palmares. O “e aí professor” com braços abertos e os olhos arregalados, passou a significar uma pergunta quase que angustiante: E quem é Dandara dos Palmares nisso tudo?

A finalidade de qualquer projeto político pedagógico que vise emancipar grupos em situação de subalternidade socioeconômica e política tem-se como princípio elementar o despertar do interesse pelo conhecimento das várias ciências sociais e humanas. No caso do regime político escravista adotado no Brasil formalmente até 1888 – informalmente persiste até os dias atuais – possibilita a comunidade acadêmica apropriar-se desse conhecimento cientifico para realizar uma reflexão crítica sobre o importante papel do povo de África e sua cultura para a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira contemporânea. Aliás, aproveitou para analisar as consequências práticas no dia-a-dia desses povos africanos na formação e desenvolvimento da identidade sociocultural, religiosa e política na cultura brasileira.  

Eu creio que o propósito de resgatar, proteger e promover elementos da cultura africana que permeia o processo de vivencias no Brasil e suas inúmeras influências nas diversas manifestações (artístico-cultural, intelectual, científica, gastronômica) afro-brasileira e africana, foi extremamente exitoso e, não menos prazeroso para o Colégio Estadual Camilo de Jesus Lima.

Esse evento mostrou disposição político-pedagógica da docência-discência desse colégio para dialogar com as diretrizes da lei 10.639/03 que prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no Brasil, não apenas como discreto recorte da escravidão negra africana. Nesse sentido, o colégio em tela compreendeu perfeitamente a lei 11.645/08 retirando dela a habitual angustia (que a torna obrigatória) que é trabalhar obrigatoriamente os conteúdos durante o ano letivo não apenas em sala de aula. O ensino da história e cultura afro-brasileira e africana passou a ser uma obrigatoriedade em todas as escolas (públicas e particulares) em território brasileiro do fundamental ao ensino médio.

As diversas apresentações abordaram a temática “escravo” em seu sentido primeiro que é atribuída a pessoas que realizam alguma tarefa produtiva sem remuneração e vivendo sob certas condições do jugo que o aliena a vida livre em sociedade, que o abriga coercitivamente a realizar o trabalho de maneira não livre. Portanto, a palavra escravo foi amplamente debatida em todos os coletivos dessas tribos juvenis como algo ligado ao significado dado ao trabalho e as condições para realização do mesmo. Assim sendo, passou-se a compreender que não existe “escravo africano” porque nenhum (a) africano (a) é escravo (a), pois as pessoas trazidas coercitivamente da África foram e continuam sendo escravizadas.

Ao usar essa palavra (escravo) para atribuir valor inexorável aos seres humanos vindos de África, tem-se a finalidade de naturalizar (como se fosse possível) essas condições exclusivamente intrínsecas às pessoas capturadas feito bichos no continente africano e vendidas pelos mercadores da morte que negociavam nos principais portos do continente americano como se fosse mercadoria – para o recém-surgido capitalismo comercial os negros (as) era mercadorias sim.

Nessa atividade, o uso da expressão “escravidão moderna” passou a ter o sentido que se diferencia das demais em função do caráter restritivo as pessoas negras, pois se entendeu que a escravidão anterior à moderna se originava quando aquele povo em estado de conflito perdia a guerra. As pessoas e seus bens (despojos) eram apropriados privadamente pelo vencedor que passavam a ser dono das pessoas e de seus bens. O tráfico dos povos africanos começou lá no século XV com a coroa portuguesa ultramarina que havia chegado em 1444 no Sudão, após explorar riquezas na costa da África e iniciado a colonização da Américas.

Por isso, a expressão escravo foi trabalhada para desconstruir conceitualmente essa ideia de que a escravidão é uma condição inerente aos seres humanos ocultando seu caráter de cativo, além do sentido aviltante e discriminativo construído no decorrer de toda a história da humanidade. Considerando também outro aspecto da palavra escravo moderno que é a condição especifica do translado na condição de prisioneiros dessa população vinda contra a própria vontade – pois foram capturados – trazidas da África, como se elas fossem submissas e passivas.

A Lei 10.639/03 propõe por meio de suas diretrizes curriculares para o estudo da história e cultura afro-brasileira e africana descontruir esse constructomental que forja a ideia de inferioridade da cultura dos povos africanos. A cultura afro-brasileira é parte integrante do processo socioeconômico e político de formação da sociedade brasileira, na qual os negros devem ser considerados como sujeitos históricos, valorizando-se. Portanto, o pensamento escrito que materializam as ideias de importantes intelectuais negros brasileiros deve ser trabalhado em todos os espaços acadêmicos, principalmente em sala de aula – a ciência, a cultura (música, culinária, dança) e as religiões de matrizes africanas.

Nesse sentido, o Dia da Consciência Negra deve ser indicado como um dia de luta nacional contra o racismo e suas diversas formas de expressão. No espaço escolar podem-se desenvolver atividades com iconografias, pinturas, fotografias, artes-plásticas, danças e músicas.  Assim, o colégio estimula a imaginação dos discentes e dar o suporte docente subsidiando a discussão por meio da transdisciplinaridade dialogando com os vários campos do conhecimento – Filosofia, História, Geografia, Sociologia e Antropologia. Essa atividade coletiva que envolve a energia intelectual da docência para elaborar o projeto, o planejamento da gestão administrativo-financeiro escolar e o envolvimento criativo da população estudantil.

Esse movimento intenso de gente jovem cheia de disposição e transbordando energia criativa, transcende a sala de aula porque estimula o ensino-aprendizado por meio da demanda por pesquisa, leituras, discussões coletivas que levam a descoberta e a produção de conhecimento fora do espectro tradicional de sala de aula que já não consegue mais seduzir a população estudantil que está em outra vibeinfluenciada pela tendência científica de última geração, surfando nas novas tecnologias que também oferecem informações e conhecimentos livres – a rapidez, a desburocratização e a ausência de exigência no critério de acesso e leitura, acabam sendo mais sedutor para essas tribos juvenis.

Nesse processo observa-se que essas juventudes conseguem desfazer o constructomental reacionário de uma educação tradicionalmente bancária – no dizer de Paulo Freire. Eles apreender conceitos e categorias complexos (considerados maçantes em sala de aula) que os libertam do preconceito e racismo, pois passam a enxergar que a rica cultura afro-brasileira e africana contribui para formação da sociedade brasileira. Eles começam a se enxergar como sujeitos históricos, despertando a pertença étnico-racial. Melhora a autovalorização enquanto pessoa negra que porta dignidade humana.

O acesso ao mundo da produção intelectual gera apreensão de inúmeros conhecimentos, aliás, um empoderamento dessa população estudantil pelo sujeito histórico, vocalizado por ideias-força desenvolvidas por intelectuais negros (as) brasileiro em todas as dimensões da produção da vida material e intelectual desfrutadas na sociedade. Até então, desconhecida para uma boa parte dessas juventudes.

A feira aflora o sentimento de pertencer ao mundo que passa a ser real porque o outro também é ele (outro “igual”). Se o outro é ele, então ele pode sonhar ser o outro que é músico, intelectual, cientista, médico, juiz, engenheiro e etc. Esse momento da descoberta é essencialmente mágico, uma espécie de Eureka – a interjeição exclamada por Arquimedes de Siracusa. Para eles tudo que era sem sentido antes, se conecta porque está interligado e passa a ter significado e dar uma direção, mostrando que encontrou o seu caminho.

Isso ajuda a ressignificar a vida de quem vive equilibrando-se diariamente no fio da navalha da zona de risco e a partir daí se faz múltiplas projeções com os novos valores absorvidos pela vivencia lúdica – que também é essencialmente cognitiva – muda-se peremptoriamente o trágico destino dessas tribos juvenis. Muda-se o futuro da periferia, transformando o deserto num oásis.

Por isso, parabenizo a capacidade cognitiva e criativa todas essas tribos juvenis, a escola – sobretudo a coordenadora, a professora Vanessa – e toda a equipe envolvida nesse processo de libertação humana tão necessária para possibilitar a essas lindas tribos juvenis à oportunidade da vida plena e não se perderem pelo caminho, pois “Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem / Apenas sei de diversas harmonias possíveis sem juízo final / Alguma coisa está fora da ordem / Fora da nova ordem mundial...”.

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