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quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A luta: destruição do capital e a construção de uma sociedade emancipada, igualitária e justa



*por Uelber Barbosa Silva

"Dona Isabel que história é essa? / Dona Isabel que história é essa / Oi ai ai! / de ter feito abolição? / De ser princesa boazinha / que libertou a escravidão / Tô cansado de conversa / tô cansado de ilusão / Abolição se fez com sangue / Que inundava este país / Que o negro transformou em luta / Cansado de ser infeliz" (Mestre Toni Vargas)


Parte do movimento negro organizado desde a década de 1970 faz referência ao dia 20 de novembro de 1695 (ocasião do assassinato de Zumbi dos Palmares, pelas forças bandeirantes pagas pelo governo colonial), como dia para reflexões e ações em torno do combate ao racismo, também numa tentativa de fugir das atividades que ocorriam no 13 de maio (data da abolição da escravidão no Brasil).


Em 2003, a partir da sanção da Política Nacional de Combate ao Racismo, o calendário escolar nacional passou a considerar o dia 20 como Dia Nacional da Consciência Negra e em 2011, com a aprovação da lei nº 12.519, de 10 de novembro, o dia passou a ser feriado nacional, para os Estados e municípios que aderirem por meio dos seus legisladores. A partir daí o mês de novembro passou a ser considerado por muitos como o mês da consciência negra.

Entre tantas opiniões sobre a necessidade e implicações de um mês referência e/ou um feriado nacional, destaco duas que considero mais relevantes:

1. Para muitos é um dia importante de reflexão sobre a situação das (os) trabalhadoras (es) negras (os) e para criar estratégias de enfrentamento à alienação racial promovida pela separação das (os) trabalhadoras (es) dos meios de produção e do produto do seu trabalho;

2. Outros tantos consideram que é um dia para comemorar, inclusive o fato do reconhecimento da cidadania para negras (os).

Eu me coloco numa terceira via, ocupada por aqueles que pensam que feriados desmobilizam a luta e estimulam a manutenção do sistema, através do estímulo ao consumo; grupo dos que veem no reconhecimento da cidadania negra uma estratégia perversa para encobrir o genocídio da juventude negra e o encarceramento em massa, como um dos elementos de controle da classe trabalhadora, numa evidente noção de "limpeza étnica". Portanto, me coloco no entorno daqueles que criticam qualquer ação que tenha o Estado como interlocutor, por considerar o Estado como parte do mecanismo que possibilitou a criação, manutenção e aprofundamento do racismo.

Compreender o racismo como uma das expressões da alienação conduzida pela ideologia burguesa – da mais reacionária de um Gobineau, à mais sofisticada de um Hegel - (SILVA, 2012) foi possível ao considerarmos ontologicamente a sociedade do capital, através da perspectiva marxiana, compreendendo o Estado como uma necessidade demandada pela propriedade privada e pela divisão da sociedade em classes sociais (MARX, 1996). Neste sentido, no modo de produção capitalista, o Estado assume a função social de correção dos defeitos estruturais do sistema (em sua totalidade) e torna-se um mecanismo auxiliar na reprodução e acumulação do capital (MÉSZÁROS, 2002). Revelada essa natureza do Estado, percebe-se que a cidadania é um instrumento jurídico que legaliza a expropriação da mais valia das(os) trabalhadoras(es), corroborando com o aprisionamento do trabalho aos processos de subordinação impostos pelo capital (LUKÁCS, 2018).

Para revolucionar as forças produtivas aprisionadas às relações servis do feudalismo em crise, o capital precisou utilizar a escravidão e formas sofisticadas de servilismo, levando ao tráfico negreiro (transatlântico) e ao racismo científico. Logo depois de abandonar as ideias revolucionárias (igualdade, liberdade e fraternidade) e voltar suas poderosas armas contra a classe operária, por volta de 1848, a burguesia passou a utilizar também o racismo como mecanismo de divisão e controle da classe trabalhadora – e esse se tornou um traço marcante do capitalismo monopolista.

O aprofundamento do neoliberalismo tornou a vida dos trabalhadores ainda mais penosa, ao mesmo tempo em que a burguesia ostenta a riqueza produzida pela classe operária do campo e da cidade. A crise econômica que levou ao esgotamento do petismo e à onda reacionária expressa por uma direita encarniçada e ligada a poderosas milícias tornou evidente o racismo que o mito da democracia racial lutou por décadas para esconder.

Nesse contexto de ódio racial e exploração do trabalho, agravados pela crise estrutural do capital, que extrapola as barreiras nacionais, o Centro Educacional de Treinamento Arte e Movimento Capoeira (CETA Capoeira Escola) realizou o seu VI Encontro Nacional e VIII 20Bimba.

“Eu só levo pra capoeira o que é bom / eu sou só levo pra capoeira o que sou / se eu merecer, ela vai me dar / de braços abertos eu vou receber” (Mestre Tucano Preto)

A festa foi surpreendentemente linda, com uma energia super contagiosa, pois somente quando as pessoas levam pra capoeira a solidariedade e a bondade que são, conseguem expressar tamanha energia ao som do berimbau. A proposta do CETA segue nessa direção, de crítica à sociabilidade do capital e de solidariedade entre mulheres, LGBTQI+ e homens que acreditam na possibilidade de uma nova sociabilidade pautada no trabalho associado, ou seja, na livre associação das (os) trabalhadoras (es), independentemente de suas particularidades físicas, subjetivas, culturais etc.

As reminiscências surgem ainda com muita vivacidade em minha mente. O boi dançando para rememorar a vida dura, bela, contraditória do sertão da ressaca, da vida de boiadeiros e tangedores de boi, numa convivência de contradições, inclusive de classe. O duelo de Santa Maria, explorando a forma de ser do racismo brasileiro, com toda perseguição à capoeira e às trabalhadoras (es) negras (os), e também o machismo misógino de uma sociedade patriarcal e conservadora. Contudo, essa triste realidade foi transmitida com a força do maculelê e a leveza da dança afro, com o mandinga das sambadeiras e sambadores e a malícia da capoeira primitiva.

"Ê, seu Bimba me deu a cadência, a cintura desprezada, os oito toques e a sequência" (Mestre Xalatão)

O Encontro serviu para reacender a chama de rebeldia que alimenta a nossa luta de resistência contra a exploração do trabalho e a opressão social que o capital impõe à humanidade.

No ano passado, em um texto de agradecimento por ter me tornado, também em novembro, graduado do CETA Capoeira Escola, eu disse que o evento foi um momento para "Sentar, ouvir, aprender, refazer o pensamento e consertar os erros", pois a "capoeira é um complexo cultural riquíssimo que vai muito além da expressão corporal... a mandinga, a manha, a paciência e a calma fazem com que ela se reinvente constantemente, refazendo até mesmo sua estética." (Rasta, 2018). E é preciso o cuidado para não permitir que a capoeira seja apreendida e enquadrada pela ditadura do mercado, por regras transformadas em fundamento pelos que querem apenas usufruir financeiramente de sua parte técnica. Dedicar-se à capoeira requer também militância, estar atento aos oportunismos e prezar pela manutenção dos seus valores igualitários.

Passar esses dias (em que muito se fala em uma maluca contraposição entre uma consciência negra e uma consciência humana) no “quilombo” CETA Capoeira Escola, na cidade onde a luta contra o racismo deve ser cotidiana, foi importante para que eu pudesse consolidar a ideia de que a luta antirracista potencializa a luta revolucionária APENAS quando ela quebra as correntes da prisão que é a cidadania, ou seja, a luta antirracista tem que ser uma luta também contra a origem das desumanidades que vivemos devido a alienação do trabalho provocada pela propriedade privada, o capital. Enfim, pensar a luta antirracista isolada da luta de classes coloca os seus combatentes no beco sem saída de terem que lutar por “cotas” em um contexto de genocídio e encarceramento em massa, no qual a juventude negra trabalhadora se encontra entre o tráfico, a milícia e o conformismo de ser explorado para garantir o mínimo pra reprodução de sua família monogâmica.

Espero que a resistência representada pela capoeira, como complexo cultural integrado à cultura afro-brasileira, possa iluminar nossa reflexão sobre o modo de ser da atual sociedade de forma que nos permita tirar as lições libertadoras, que apontem para o fim das opressões e da exploração das(os) trabalhadoras(es).

Eu quero agradecer ao mestre Dendê, anfitrião da festa, a mestra Jô e aos mestres Itapoan, Xalatão, Lucas e Tucano Preto. Aos mestres, contramestres, professores e demais capoeiristas, pais e amantes da arte da rasteira presentes no evento e, sobretudo, ao esforço de todas as pessoas envolvidas nos bastidores dessa festa cheia de boas energias.

“O berimbau é festeiro, é um instrumento que agrega a todos e convida todos a estarem na roda. Mas o estar na roda de muitos é muito superficial, são poucos de fato que estão na roda (...). Mas a capoeira, o elemento capoeira na mão de quem entende, é ferramenta contra o racismo, contra todo tipo de algema, tudo que nos aprisiona, tudo que nos coloca em condição de inferioridade, é a arma libertadora” (Mestre Dendê)

Que a luta seja para a destruição do capital e a construção de uma sociedade emancipada, igualitária e justa!

Uelber Barbosa Silva
Graduado Rasta.

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Referências utilizadas:

LUKÁCS, Georg. Para uma ontologia do ser social. (vol. 14). Tradução: Sergio Lessa. Maceió: Coletivo Veredas, 2018.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. I. Livro Primeiro. Tradução: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1996.

MÉSZÁROS, I. Para além do capital. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.

SILVA, Uelber B. Racismo e alienação: uma aproximação à base ontológica da temática racial. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.

*Possui graduação em Licenciatura Plena em História, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2009), mestrado em Serviço Social, pela Universidade Federal de Alagoas (2011), e atualmente cursa o doutorado em Serviço Social, pela Universidade Federal de Alagoas (2017), atuando principalmente nos seguintes temas: História da África, História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, Teoria das Raças, Racismo, Alienação, Ideologia, Políticas Sociais, Políticas Afirmativas e Filosofia.

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