Translate

Seguidores

quinta-feira, 6 de junho de 2024

O "Baba das Empoderadas" e a discussão urgente sobre gênero na periferia

"Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado" (BELCHIOR, 1988) 


*por Herberson Sonkha

Quando vi pela primeira vez, em um jogo na badalada periferia em que moro (aliás, nasci no bairro Alegria), homens vestidos de mulher usando a expressão "empoderadas", algo absolutamente diferente da tradição machista-misógina que predomina, fiquei pensativo como homem negro defensor do feminismo marxista, especialmente o feminismo negro.

Contudo, conversava com um dos organizadores do evento o jovem Matheus Chagas, confesso que me surpreendi positivamente com o alto nível de consciência do diálogo sobre como as coisas funcionam nas periferias. Além da consciência crítica do sofrimento com a repressão policial e todos os problemas estruturais históricos negligenciados, Matheus Chagas chamou a atenção para a falta de uma boa educação que pudesse despertar a consciência da comunidade em relação a necessidade de ser libertar das opressões de classe, raça e gênero.

Mas os poderosos que mandam nos políticos e nos partidos (as elites econômicas) contra população periferizada (direita e extrema-direita) não querem que a periferia se emancipe, pois, ainda a enxergam como uma grande ‘Senzala’, uma extensão da ‘Casa Grande’. Apesar disso, não podemos negar a importância de discutir o "empoderamento feminino" e criar condições efetivas para o empoderamento das classes desfavorecidas. A participação ativa das mulheres nos debates e decisões que afetam a sociedade é urgente.

O que o Baba das Empoderadas defende é que as mulheres tenham controle sobre suas próprias vidas, sendo capazes de tomar decisões por si mesmas. Se isso estivesse acontecendo de verdade, a jovem Rebeca Rocha Oliveira Souza não teria sido violentamente assassinada por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Esse contexto me interessa, porquanto sempre observei com curiosidade aquela multidão (cerca de 600 pessoas) em volta de quase 80 jovens heterossexuais, que por algumas horas rompiam com a heteronormatividade, vestidos de forma exagerada como mulheres, com gritos estilizados e makes tops que lembra muito drag queens.

Sempre há uma avaliação sobre essas encenações de gênero, mais pelos espectadores do que pela própria organização. Uma das características mais aclamadas é o estereótipo da mulher ou do gay. No dia 1º de janeiro, a comunidade se reúne nessa festa coletiva para homenagear seus "ídolos", torcendo pelos times de suas ruas que jogam no gol fechado da Rua Espírito Santo, no bairro Alegria.

Eu me preocupava com a forma como aqueles jovens, muitos sem acesso a debates sobre patriarcado, heteronormatividade e identidade de gênero, se comportavam fora daquele ambiente festivo. Seria tudo apenas festa ou haveria alguma consciência crítica? Como eles agiriam com suas companheiras, mães, filhas e mulheres em geral, ou diante dos debates sobre homossexualidade?

No intervalo, há música (paredão) e muita cerveja para acalmar os ânimos. Outra curiosidade é que vi poucas brigas de "machões" para garantir sua masculinidade, mesmo vestidos de mulheres ou gays (normalmente não se sentem ofendidos quando comparados a pessoas gays ou travestis conhecidas no bairro). Embora houvesse muita disputa, pois, a premiação também estimula e não deixa de ser interessante.

Considerando os problemas organizativos do último evento de 2024, nos aproximamos para ajudar a organizar aquele evento tão interessante. Essa aproximação nos mostrou algo importante que responde às minhas inquietações iniciais. Portanto, o texto assume agora um caráter histórico, filosófico e sociológico da reflexão que a organização do evento propõe.

Sobre o contexto histórico

O Baba das Empoderadas surgiu como uma resposta criativa às questões prementes de gênero na sociedade. Muitos não se lembram por causa da naturalização da violência de gênero, mas o trágico assassinato de Rebeca Rocha Oliveira Souza em julho de 2023, vítima de feminicídio, foi o estopim para intensas discussões no bairro Alegria. Isso culminou não apenas em uma denúncia contra todas as formas de violências contra as mulheres, principalmente o feminicídio, mas também em uma justa homenagem à Rebeca Rocha no último ‘Baba’ de janeiro 2024. 

Esse debate originado em uma periferia, proposto por este grupo de esportistas decidiu transformar cada 1º de janeiro em uma data de denúncia e conscientização. Com um torneio de futebol onde homens se vestem de mulher, o evento ganha uma dimensão performática, desafiando normas de gênero e promovendo a reflexão sobre a violência de gênero, incluindo o feminicídio.

Dimensão filosófica por trás do “Baba das Empoderadas”

A filosofia do Baba das Empoderadas é baseada em conceitos de empatia, igualdade e transformação social. De alguma forma, nos inspira discutir teóricas como Judith Butler, o evento subverte papéis tradicionais ao colocar homens em roupas femininas. Isso questiona construções sociais de masculinidade e feminilidade, criando uma plataforma para desconstruir estereótipos prejudiciais.

Além disso, ao destacar o feminicídio, o Baba adota uma postura crítica que denuncia a violência contra as mulheres, alinhada com o feminismo de Simone de Beauvoir e bell hooks, que defendem a necessidade de reavaliar as estruturas de poder patriarcal.

Aspecto sociológico extraordinário do “Baba das Empoderadas”

Do ponto de vista sociológico, o Baba das Empoderadas representa uma forma de resistência cultural e social. Eventos assim criam espaços de contestação simbólica, onde as normas sociais são desafiadas. Em uma sociedade com violência de gênero, o Baba serve como um microcosmo de resistência, unindo a comunidade em torno de uma causa comum. O torneio evidencia a fluidez de gênero e promove a solidariedade, rompendo com a rigidez das normas sociais.

O torneio evidencia a fluidez de gênero e promove a solidariedade entre os gêneros, rompendo com a rigidez das normas sociais tradicionais. A sociologia de gênero nos ajuda a entender como tais eventos podem influenciar atitudes e comportamentos, promovendo maior conscientização e empatia. Como destacado por sociólogos como Erving Goffman, a performance de gênero em público pode levar a uma maior reflexão e, eventualmente, a mudanças sociais.

Algumas reflexões e impactos importantes.

O Baba das Empoderadas é mais que um evento festivo; é uma intervenção social que convida à reflexão e ação. Ao escolher o futebol, tradicionalmente associado à masculinidade, o grupo desafia diretamente as concepções de gênero e abre espaço para diálogos sobre igualdade.

Ao chamar atenção para o feminicídio, o Baba não só homenageia as vítimas, mas também pressiona por mudanças legais e sociais. Essa visibilidade pode incentivar políticas públicas mais eficazes e maior engajamento da sociedade na luta contra a violência de gênero.

    Por fim, considero que o Baba das Empoderadas é um exemplo poderoso de como a intersecção de esporte, arte e ativismo cria novas possibilidades de conscientização e transformação social. Ao abordar questões de gênero de forma inovadora e inclusiva, o evento celebra a diversidade e promove uma cultura de empoderamento e resistência.


0 comments :

Postar um comentário

Buscar neste blog

Inscreva seu e-mail e receba nossas atualizações:

Arquivo