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Uma madrugada para não esquecer em Vitória da Conquista
"[...] alimentos — que haviam obtido por doação — perdidos, objetos pessoais misturados à lama que as máquinas do município revolveram."
*por
Natanael Oliveira do Carmo
No dia
24 de junho de 2021, em plena data comemorativa do São João, a madrugada foi
especialmente dolorosa para várias famílias em Vitória da Conquista.
Empobrecidas e excluídas de direitos elementares, essas famílias foram
surpreendidas, por volta das 05:00 horas, com a ordem para saírem dos barracos
que constituíam sua única habitação, porque os mesmos seriam destruídos.
Segundo a reportagem do telejornal Bahia Meio-Dia, da TV Sudoeste, exibida nessa data, as famílias tão brutalmente violentadas haviam sido obrigadas a deixar suas antigas habitações — precárias, como o são as moradias dos mais pobres — e, sem alternativa, construído, em área pertencente ao município, às margens da Rodovia que liga Vitória da Conquista a Barra do Choça, barracos de madeira e lona para morarem neles — e se protegerem das intempéries. Leia o artigo na íntegra.
A reportagem informa ainda que, cerca
de quarenta dias antes, essas famílias, ao ocuparem esse local, objetivando
plantar hortaliças para conseguirem alguns recursos para o próprio sustento, se
dirigiram à prefeitura municipal, onde, no gabinete da prefeita, se reuniram
com um secretário municipal e comunicaram a ocupação, afirmando que não tinham
emprego nem moradia e que haviam se instalado ali. Não há notícia de qual teria
sido a resposta do representante do município naquela ocasião.
Pois bem! Em plena madrugada do São
João, prepostos do município despertaram os membros dessas famílias, dentre os
quais, muitas crianças, e ordenaram que saíssem imediatamente dos barracos,
pois iriam destruí-los — o que, de fato, fizeram. Os moradores dos barracos
obedeceram, sem reagir, catando, na pressa, o que puderam e foi permitido, e
assistiram à completa destruição de seus barracos, sendo abandonados ao
relento, diante da desolação de seus abrigos destruídos, alimentos — que haviam
obtido por doação — perdidos, objetos pessoais misturados à lama que as
máquinas do município revolveram.
A ter se dado o fato conforme se
noticia na matéria, é lamentável, absurdo, irresponsável, criminoso, e exige da
sociedade uma reação firme, pois, num país onde as instituições, corrompidas e
desvirtuadas, proporcionam a segregação social extrema, empurram milhões de
pessoas para a miséria e excluem os pobres até mesmo do direito fundamental de
ter onde morar, é nosso dever moral nos posicionarmos com coragem e firmeza
contra tal abuso, violência e humilhação de seres humanos.
Não há justificativa para tamanha
covardia. Muitas pessoas se manifestaram nas redes sociais em solidariedade às
famílias atingidas por tamanha brutalidade. Entretanto, alguns hipócritas foram
às redes sociais para tentar justificar essa desumanidade com artigos de lei,
interpretando-os sob a odiosa ótica fascista que tem ocupado tanto espaço em
nossa sociedade doente. Vale lembrar que, antes de qualquer lei, vem a
Constituição da República, que, já no seu artigo 1º, inciso III, afirma que o
Brasil é um Estado Democrático de Direito e tem, como um de seus fundamentos, a
dignidade da pessoa humana. Antes fosse!
O artigo 3º parece uma obra de ficção.
Diz: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I –
construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o
desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”. Deixo aos leitores a análise desse artigo da Carta Magna e a
comparação com o fato criminoso que denunciamos aqui.
A própria Constituição, em seu artigo
6º, afirma que a moradia é direito social de todo brasileiro. Ah, e no artigo
23, inciso IX, reza que “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios (grifei): (…) promover programas de construção de
moradias e a melhoria das condições habitacionais (…)”.
Que se há de dizer? Que a conduta dos ocupantes
foi “ilegal”? Primeiro, para que eles fossem retirados do local deveriam ser
utilizados os meios legais (ainda que “legal” seja sempre um eufemismo, nesses
casos). A ação truculenta, humilhante, injustificável, levada a cabo pelo
município de Vitória da Conquista contra essas pessoas, economicamente pobres,
fere o próprio Código Penal, quando, em seu artigo 345, disciplina que é crime
o “exercício arbitrário das próprias razões”.
Assim: Art. 345 – Fazer justiça pelas
próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o
permite: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena
correspondente à violência. E mais: o artigo 163 do Código Penal disciplina o
crime de dano, definindo que este consiste em “destruir, inutilizar ou
deteriorar coisa alheia” e que, em sendo praticado “por motivo egoístico ou com
prejuízo considerável para a vítima”, como expresso no inciso IV do referido
artigo, é uma modalidade mais grave do crime, ou seja, é dano qualificado.
É provável que alguns “juristas” de
plantão levantem questões tais como que pessoa jurídica não responde por crimes
que não sejam ambientais — e observações outras que entendam pertinentes.
Todavia, o ente público é uma abstração. Ele não pensa nem age por si só. São
os agentes políticos/públicos que o fazem e que, portanto, devem responder por
seus atos. E, nesse caso, por que não por estes crimes que foram cometidos, tão
flagrantemente, contra essas pessoas? Será que por serem as vítimas pessoas
pobres não merecem proteção do sistema jurídico?
O que se espera é que essas pessoas
sejam assistidas pelo poder público, e não despojadas do pouco (ou quase nada)
que possuem, por esse mesmo poder; que sejam tratadas com o mínimo de respeito,
e não humilhadas pelo “poder”; e que esses abusos que o município cometeu sejam
reparados — agora, imediatamente, “pra ontem” — a fim de que a injustiça não
prevaleça mais uma vez, a injustiça oficial, tradicional, imoral, perversa,
permanente e insidiosa contra os pobres que, infelizmente, caracteriza o
Brasil.
PS.: Se, porventura, responsabilização
houvesse, que não se punisse o subordinado que cumpriu a ordem pra manter o
emprego. Que se punisse quem emitiu a ordem criminosa!
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*Natanael Oliveira do
Carmo é Advogado e Escritor, autor da obra premiada O Tocotó de Mulifange e da
trilogia épica A Honra do Clã (www.ahonradocla.com.br).
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