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Combater o racismo por quem sofre o racismo
"Todos
esses avanços fizeram com que nosso município estivesse entre as cinco cidades
baianas que conseguiram ter uma cadeira no SINAPIR – Sistema Nacional de
Promoção da Igualdade Racial."
*por
Ademar Cirne
O processo de expansão e dominação colonial do mundo moderno pode ser dividido em dois momentos bem distintos. O primeiro ocorreu a partir do século XVI, quando os países da península ibérica deram início ao processo de expansão marítima e comercial através do oceano atlântico que culminou com a descoberta dos caminhos para o Oriente, assim como para as terras do novo mundo, a América. O segundo, durante o século XIX, quando, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os países capitalistas do continente europeu precisaram expandir seus domínios em busca de matéria prima, exportação de capitais e de população, na tentativa de superação da crise de superprodução que atingia a Europa nesse momento.
O
primeiro momento ficou conhecido como a época de acumulação primitiva do
capital, quando, através de um modelo de dominação capitalista via práticas
mercantilistas, garantiu-se a exploração de muitas riquezas do continente
americano, principalmente através da utilização da mão de obra escrava dos
habitantes do continente (povos indígenas) no primeiro momento e, posteriormente,
a dos negros retirados da África, através do tráfico negreiro. Cerca de treze
milhões de negros foram transportados nos tumbeiros para o continente
americano, o que constituiu um dos maiores processos de diáspora conhecidos.
O
texto de Uelber Barbosa Silva analisa como esta acumulação primitiva de
capitais contribuiu para a construção desse processo de escravidão e dominação
colonial da América, nesse primeiro momento.
“O
escravismo moderno, porém, tem sua gênese na acumulação primitiva e uma de suas
particularidades é a escravização de grupos sociais negros oriundos de nações
africanas. A utilização de mão de obra em tal período histórico certamente tem
suas justificativas no plano do pensamento humano. O nascimento da modernidade,
que, como vimos, tem origem na acumulação primitiva, teve na violência da
expropriação econômica e racial uma importante arma para transformação das
relações sociais em relações capitalistas. A violência desempenhou papel
fundamental na construção da sociedade, tanto através da proletarização de
milhares de camponeses europeus e na escravização de ameríndios e africanos nas
Américas, como pela colonização de quase todo continente africano”. (SILVA,
2012, p.43)
O
segundo momento do processo de dominação colonial apresentou características
bem distintas da expansão dos séculos XVI ao XVIII. Já não se vivia o
nascimento do sistema capitalista, que buscava áreas comercias com intenção
principal de encontrar matérias primas e metais preciosos, transferindo-os para
o continente europeu através de transações comerciais, com o objetivo de
acumulação de riqueza.
Era
outra época, o mundo se transformara e o capitalismo se consolidou a partir do
século XVIII, com a Revolução Industrial, fazendo surgir grandes potências
econômicas que, a partir da segunda metade do século XIX, passaram a disputar
os territórios não só da América como da África e da Ásia. Era a fase do
imperialismo e do neocolonialismo, quando as colônias não só tinham o papel de
fornecedoras de matérias primas, mas também receberiam os capitais e a
população excedente do continente europeu. Relata Caneto:
“No
século XIX, ¨Os burgueses capitalistas¨, como os denominou o historiador
Charles Morazé, senhores do capital, da ciência e da tecnologia, saíram pelo
mundo e se apropriaram direta e indiretamente das terras e mares do globo
terrestre. A questão não era mais, como na época mercantilista, somente a troca
de manufaturas europeias pelos produtos tradicionais do Oriente e dos
trópicos.” (CANETO, 1985, p.07).
As
situações de dominação e exploração apresentadas nos dois momentos não foram
aceitas de forma tranquila e cordial pelos povos dominados, sendo as reações a
estes processos construídas, com uso de violência, através dos movimentos
emancipacionistas ocorridos no final do século XVIII, assim como nas guerras
libertadoras do século XX, e também de forma silenciosa e pacifica, através da
organização social, da manutenção da ancestralidade e preservação da cultura e
dos princípios religiosos do continente africano,
Porém
o pior de tudo é que apesar de todas essas lutas, e da expulsão definitiva dos
conquistadores europeus, ainda não conseguimos superar todas as mazelas
produzidas pelo capitalismo no continente americano, expulsamos materialmente
os dominadores, mas continuamos subalternizados, dependentes economicamente,
dominados culturalmente, submetidos ainda ao europocentrismo e ao controle de
uma minoria branca, que controla o capital e o poder político, Econômico e
social das instituições públicas.
Luta
que vem de muito tempo e foi construída com grande enfrentamento aos
dominadores brancos, pelo Movimento Negro brasileiro, desde a fase de transição
do império para a república na passagem do século XIX para o XX.
Por
tanto é importante dizer que para atingir o objetivo que queremos com este
texto, vale a pena discorrer um pouco sobre esta história de luta do Movimento
Negro até os dias de hoje, assim ficará mais fácil entender porque acreditamos
e lutamos por uma política de igualdade racial feita por um organismo independente,
com dotação orçamentária própria e gerido por pessoas que tenham conhecimento e
pertencimento com a causa étnicoracial.
O
movimento negro brasileiro, segundo o pesquisador Petrônio Domingues (2007),
apresenta-se em três fases distintas, durante a república brasileira, conforme
descrito a seguir.
O
primeiro momento da organização do movimento negro brasileiro se estende de
1889 até 1937, ou seja, da proclamação da República até o início do Estado
Novo. Neste período começam a surgir as primeiras organizações sociais em
defesa da população negra.
O
Estado de São Paulo é pioneiro, com a fundação do clube 13 de maio dos homens
pretos, em 1902 e do Centro Literário dos Homens de Cor, em 1903. Outros
Estados da federação, entre eles Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do
Sul e Bahia, também fundaram suas organizações sociais de defesa das causas dos
povos negros.
É
nesse momento também, que nasce no Brasil as primeiras organizações negras
compostas somente por mulheres, entre elas a Sociedade Brinco da Princesa, no
ano 1925, em São Paulo, e a Sociedade de Socorro Mútuos Princesa do Sul, em
1908, em Pelotas/RS.
Outro
fato importante nesse primeiro período mencionado acima, foi o surgimento da
imprensa negra, com jornais e revistas que começaram a circular nas principais
capitais do Brasil, publicando textos que tratavam das questões que afetavam a
população negra.
A
partir da década de 1930, com o fim da República Velha e a diminuição do poder
dos coronéis e dos Estados de Minas Gerais e de São Paulo, e a organização de
uma vida mais urbana com o poder cada vez mais centralizado nas mãos do
Presidente Getúlio Vargas, as organizações do movimento negro perceberam a
necessidade de uma organização mais sólida, para garantir e efetivar os
direitos do povo negro a partir da luta pela diminuição do racismo. Assim, em
1931, no Estado de São Paulo, foi fundada a FNB – Frente Negra Brasileira.
A
segunda fase do movimento negro estende-se de 1945 a 1964, período entre a
ditadura do Estado Novo e a ditadura Militar, foi marcado pela retomada das
ações em favor da população negra que tinha retrocedido quase que totalmente
devido a ditadura getulista, O recomeço acontece com a organização da União dos
Homens de Cor – UAGACÊ, fundada em 1943 em Porto alegre e posteriormente se
expandindo por vários Estados do Brasil. A sua principal finalidade era elevar
o nível econômico e intelectual as pessoas de cor em todo Brasil.
Outra
organização importante foi o TEM - Teatro Experimental do Negro, fundado em
1944, no Rio de Janeiro, por Abdias do Nascimento, este agrupamento social
rapidamente extrapolou a condição de um grupo de teatro e passou a atuar com
ações mais amplas, promovendo cursos de alfabetização de corte e costura,
publicação de jornais e fundação de um Museu. A partir deste momento o
movimento negro já contava com organizações em praticamente todo o País, com
destaque, inclusive, para o Conselho Nacional das Mulheres Negras.
Apesar
de toda esta movimentação, a primeira lei contra a discriminação no Brasil somente
foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1951, como resultando do projeto do
deputado Afonso Arinos. Neste momento, a situação política do Brasil começa a
apresentar a ascensão dos setores conservadores na política, o que culminaria
com o golpe civil militar de 1964, instaurando uma ditadura que duraria por
cerca de 20 anos. Durante este período, verifica-se um intenso retrocesso
político, no Brasil, com a desarticulação e desmobilização dos movimentos
sociais dos pais, inclusive as organizações do movimento negro, que só voltam a
se reestruturar a partir do final da década de 1970, com o início do processo
de abertura política e o reaparecimento das organizações sociais do Movimento
Negro, com destaque para o ano de 1978 quando fundado o Movimento Negro
Unificado.
“O MNU se
inspirou tanto na luta a favor dos direitos civis dos negros estadunidenses,
onde se projetaram lideranças como Martim Luther King, Malcom X e organizações
negras marxistas, como os Panteras Negras, quanto nos movimentos de libertação
dos países africanos, sobretudo de língua portuguesa, como Guine Bissau,
Moçambique e Angola. Uma forte inspiração nacional, que e converteu em escola
de formação política e ideológica de várias lideranças do MNU foi uma
organização marxista, de orientação trotskista, convergência socialista.”
(DIAS, 2012, P.19).
As
principais bandeiras de luta do MNU estavam ligadas à defesa da desmistificação
da democracia racial brasileira e da luta para organização política das
populações negras do Brasil. O movimento negro transforma-se em movimento de
massa. Além do MNU, outras organizações negras reaparecem e a imprensa negra
volta a publicar jornais em todo Brasil.
A
partir deste momento, o movimento negro passa a propor intervenções na educação
brasileira construindo propostas para uma pedagogia Inter-racial
(multicultural), na luta pela reavaliação do papel do negro na História do
Brasil, assim como uma revisão na produção dos livros didáticos que permaneciam
com a visão eurocêntrica.
No
entanto, foi somente a partir dos anos 2000 que as propostas do movimento negro
organizado conseguiram atingir o Estado brasileiro, que começou a promover
ações afirmativas reparadoras para a população negra, estabelecendo leis e
criando órgãos governamentais que interferem diretamente na reorganização da
educação, com proposta de caráter inclusivo dos negros em todos os níveis da
educação, especialmente a partir o ano de 2003.
Porém, apesar de tanto esforço, tanta luta e
dos avanços institucionais já citados, no que se refere às políticas públicas
inclusivas, ainda não se alcançou uma condição satisfatória para a população
negra no que se refere a uma educação e a uma participação política que
respeite a diversidade racial, que não queira colocar as lideranças do
Movimento Negro distante do protagonismo político, estabelecendo organismo
gestores das políticas de igualdade racial submetidos a outras secretarias,
diminuindo suas verdadeiras funções, que é discutir, elaborar e executar
políticas específicas para a população negra.
Vale-se
destacar entre as ações afirmativas empreendidas pelo Governo, a Lei 10.639/03,
que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História da África e da cultura
Afro-brasileira em todas as escolas do ensino básico; as Diretrizes
Curriculares para o Ensino da Educação Étnicoracial, fundamental para
sistematização e aplicação da legislação; da Política de Cotas para população
negra, quilombola e indígena, na universidades públicas, que permitiu o acesso
significativo desta população ao ensino superior; o Estatuto da Promoção da
Igualdade Racial; a criação dos órgãos públicos responsáveis pela gestão da
política racial, a exemplo da SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial e as secretarias estaduais e municipais de
política de igualdade.
Feito
este histórico de todo processo de dominação, subalternização e escravização do
povo negro e também relatados os avanços e conquistas deste povo a partir,
principalmente, da luta das várias organizações do movimento negro, é que não
podemos imaginar que Vitória da Conquista, uma das principais cidades da Bahia,
que mais avançou nos últimos anos no que diz respeito a construção de
instrumentos sociais e governamentais de combate ao racismo.
Aliais
com a transformação de um núcleo institucional de promoção da igualdade racial,
que esteve vinculado, por anos, à Secretaria de Desenvolvimento Social do
município, sem autonomia, sem rubrica e sem dotação orçamentária para uma
Coordenação de Promoção de Igualdade Racial, (sobretudo) vinculada ao gabinete
do prefeito, com autonomia e recurso próprio ser colocada sobre a proteção de
um grande guarda-chuva de uma pretensa política liberal de direitos humanos.
Vale
lembrar que na esfera do combate ao racismo, a cidade de Vitória da Conquista
sempre foi referência junto a SEPROMI – Secretaria de Promoção de Igualdade
Racial, os representantes do município, Flávio Passos, Uelber Barbosa e Beta
Lopes, sempre tiveram acento nas mesas de discursão e elaboração das políticas
públicas de promoção da igualdade racial do Estado.
Esse
protagonismo do nosso município, junto a Bahia e até mesmo ao Brasil, não foi
por acaso, o Movimento Negro de Vitória da Conquista, conquistou este status,
com trabalhos realizados, quando construiu e produziu várias conferências várias
conferências municipais de promoção da igualdade racial, elegeu seu conselho de
igualdade racial, elaborou seu plano de promoção de igualdade racial – que até
hoje não foi aprovado por causa do racismo institucional presente nas
secretarias municipais – e por fim, garantiu através de lei, aprovada pela
Câmara Municipal e sancionada pelo chefe do poder executivo, em 2014 a
Coordenação de Promoção da Igualdade Racial.
Todos
esses avanços fizeram com que nosso município estivesse entre as cinco cidades
baianas que conseguiram ter uma cadeira no SINAPIR – Sistema Nacional de
Promoção da Igualdade Racial, o que é muito importante, pois ao participar do
sistema, na posição intermediaria, temos algumas vantagens, principalmente no
que se refere a aprovação de nossos projetos nos editais da SEPPIR.
Poderia
neste momento me debruçar neste texto para relatar uma série de realizações e
avanços que o povo negro da cidade obteve a partir das ações da Coordenação nos
dois anos, 2015 e 2016, que esteve vinculada ao governo participativo do
Partido dos Trabalhadores, mas acredito que não cabe para este debate agora,
porém o que pedimos é uma breve reflexão da importância de não retrocedermos,
desfazendo grandes avanços da política de igualdade racial do município, atrelando
nossos movimento a uma política liberal de direitos humanos, burguesa
capitalista que jamais permitirá que nos negros exerça o protagonismo da luta,
nos submetendo a um grande guarda chuvas neoliberal, comando, provavelmente por
um branco, sem pertencimento e identidade com nossa causa.
__________________________________
*Ademar
Cirne é Mestre em Ensino das Relações Étnico Raciais – UFSB, Especialista em
História do Brasil – PUC/MG, Graduado em História – UFBA, Coordenador regional
do CEN – Coletivo de Entidades Negras, Ogã da Yemanjá Casa de Oxumarê
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