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A superação do capitalismo só se dará a partir da superação do racismo
"Há
cinco séculos, a dominação do capital se alimentou da escravidão, da
colonização das sociedades colocadas na periferia do grande capital, e do
racismo estrutural."
*por
Flávio Passos
2020 já entrou para a História, e entrará em definitivo, por conta dos desdobramentos da pandemia da Covid-19 por todo o planeta, nas sociedades, na economia e na política. O século XXI estaria começando de vez, após a humanidade ser despida de suas certezas, e a razão de suas crenças? Em termos de Brasil, descobrimos que não só a nossa democracia corre sérios riscos, como o Estado – e as políticas públicas –, quando e onde ele atua, são fundamentais para diminuírem os impactos da doença. E que, mesmo aparentando ser democrático no contágio, o Coronavírus possui uma alta letalidade racial e de classe.
Ainda
nesta semana, um Projeto de Lei apresentado na Câmara Federal, pelo deputado
federal, e ex-ministro da saúde, Alexandre Padilha (PT-SP), prevê a
obrigatoriedade da identificação do quesito raça/cor dos pacientes contaminados
ou mortos por Covid-19. Algo que já deveria ser uma prática comum nos sistemas
de saúde públicos e privados do país. Em um futuro muito próximo, estudos
científicos comprovarão o quanto o racismo foi determinante para o Brasil
constar entre os países com maior número de mortos nesta pandemia, em sua
maioria negros, e o quanto o Sistema Único de Saúde – o SUS – terá sido o
principal responsável para que tragédia não fosse ainda maior.
Pensar
a construção de uma sociedade como a brasileira alcançando um patamar de
igualdade e emancipação social, econômica e política de sua população passa por
reconhecer que antes do capitalismo industrial aqui assentar as suas pilastras,
a base dos seus contornos nacionais está cimentada em quatro séculos de
escravidão e de genocídio das populações indígenas e africanas e de seus
descendentes. E, no pós-abolição, não houve um projeto de nação e de cidadania
que contemplasse a população negra enquanto sujeito político ou, ao menos, de
direitos. Não houve, e ainda não há.
A
história da luta de classes, no Brasil e na diáspora africana, é acompanhada,
em concomitância, mas não necessariamente em abrangência de ideais ou de
compromissos políticos conjuntos, pela história da luta da população negra para
não ser eliminada. No Brasil, a trabalhadora negra e o trabalhador negro, via
de regra, sempre estiveram em uma condição subalternizada no mundo do trabalho,
e, consequentemente, em sua representação social e política. A luta
antirracista insere-se dentro de uma luta tão importante quanto, que é a luta
da classe trabalhadora. E vice-versa. Uma é fruto da outra. São lutas que se
cruzam, porque buscam superar opressões que se acumulam, e que se
interseccionam na vida e nos corpos da população negra.
Há
cinco séculos, a dominação do capital se alimentou da escravidão, da
colonização das sociedades colocadas na periferia do grande capital, e do
racismo estrutural. E o racismo, por sua vez, alimenta-se da exploração social,
ao reafirmar o (não) lugar da população negra como sendo o da base da pirâmide
social e do (não) usufruto dos próprios recursos naturais e dos bens por ela
produzidos. No neoliberalismo, a classe trabalhadora está sendo empurrada, em
bloco, para a condição de perda de direitos e de representatividade. A própria
estrutura política e as regras do jogo eleitoral têm refletido diretamente no
decréscimo da quantidade de lideranças populares e negras, representativas das
lutas pelos direitos das chamadas "minorias sociais", que se
candidatam, e menos ainda, que chegam a ocupar algum cargo eletivo.
A
esquerda que aqui se desenvolveu, durante mais de meio século, não se atentou
para o quanto estava distante, em suas formulações teóricas e na sua prática
social e política, da realidade gritante da maioria da população brasileira.
Segundo o pesquisador Márcio Farias, em um diálogo ocorrido em uma conversa
virtual, na sexta, dia 22 de maio, na página da Dandara Editora, no Instagram,
sobre a intensificação da exploração do trabalho da população negra, e da
formação social brasileira, em um contexto de “superexploração da classe trabalhadora
latino-americana”, diz que:
“o que
chama a atenção na América Latina é o fenômeno de como foi possível uma América
Latina, outrora colonial, e o Brasil está nesse jogo, se tornar uma das dez
maiores economias do mundo em algumas décadas. Isso vai dizendo muito sobre a
conformação da classe trabalhadora, no Brasil e na América Latina. E ela vai
dizendo muito, na medida em que, inclusive o dinamismo da sociedade brasileira
vai sendo explicado pela dimensão de raça, classe e gênero. Porque um
determinado segmento da população da classe trabalhadora, independente do lugar
que ela ocupava nas relações de produção, se ela era trabalhadora fabril, se
ela trabalhava com outros setores, independente do lugar que ela ocupava nas
relações de produção, a classe trabalhadora que era mulher, negra, ou, mesmo
homem negro, ou, ocupava um lugar e não tinha mobilidade no trabalho, ou,
raramente conseguia encontrar postos de trabalho no que a gente chama de trabalho
forma, com carteira assinada. Demorou muito para isso acontecer. Na década de
60 e 70, finalmente, quando há uma absorção, no trabalho formal, do segmento
negro da população brasileira”. (FARIAS, 2020).
Em um texto histórico da pensadora Sueli Carneiro, ela diz: “os diferentes retornos auferidos pelas mulheres de uma luta que se pretendia universalizante tornava insustentável o não reconhecimento do peso do racismo e da discriminação racial nos processos de seleção e alocação da mão-de-obra feminina, posto que as desigualdades se mantêm mesmo quando controladas as condições educacionais” (CARNEIRO, 2003, 121). A condição e a luta feminista, em especial, do feminismo negro, pela superação do caráter racista, sexista e classista que impregna as relações sociais, econômicas e políticas da sociedade brasileira, ainda é uma das vozes que mais incomodam o arranjo de todas as instituições democráticas do país.
Ainda
de acordo com Farias, ofuscadas por uma matriz eurocêntrica de ser, pensar e
agir, bem como, pelo racismo estrutural, e pela força coercitiva do mito da
democracia racial sobre a classe trabalhadora brasileira, as organizações
sindicais e políticas de esquerda se perderam, ao não se permitirem compreender
a dinâmica da estruturação do capital – e da sociedade – nacional a partir da
ação do racismo e do machismo enquanto elementos estruturantes das nossas
relações sociais, dos nossos abismos no acesso aos direitos trabalhistas, e de
nossas desigualdades. Todas elas.
Em um
artigo publicado em 2017, Farias nos lembra que:
“os
herdeiros dos imigrantes, mesmo quando absorveram novas vertentes marxistas, o
fizeram de forma mecânica e economicista, não apreendendo a principal
contradição do capitalismo brasileiro: o racismo. E o fizeram, justamente por
se espelhar no trabalhador e intelectual europeu que não vivia naquele momento,
de maneira mais efetiva, as contradições de raça e classe nos países europeus,
algo que ocorrerá nas décadas seguintes, com a imigração de africanos e árabes,
e que, surpreendentemente, foi amplamente absorvida pela analítica marxista
contemporânea como um fenômeno a ser entendido na Europa,” (Farias, 2017, p.
408).
Segundo
o autor, a antinegritude é uma forma de “naturalização da presença”, enquanto
não cidadania, entendendo esse conceito como “o pertencimento à família
humana”. Para Vargas, “esse mundo constituído exige a degradação do Outro, um
Outro paradigmaticamente negro”. Explicitar essa dinâmica antinegritude na
sociedade brasileira, talvez seja um dos maiores desafios, tanto no campo das
ciências, quanto no das formulações de políticas públicas.
A
estagnação social, econômica e política da população negra sempre foi um
projeto de sociedade. Um pacto eficiente e duradouro, mesmo a população negra
estando dentro da chamada classe trabalhadora. Ainda segundo Farias (2017), a
condição social da população negra, no Brasil, se explica pela escravidão, mas,
também, “deve-se em conta ao racismo como ideologia de dominação e exploração.
Racismo gera mais valor! E gera mais valor não no ato em si.” (Idem, 410).
A população negra sempre esteve aquém das condições econômicas, trabalhistas, sociais e políticas para participar em pé de igualdade de um processo de lutas e conquistas da classe trabalhadora. E, em situações de crises, é a primeira a sentir mais profundamente os impactos.
Concluindo
a sua reflexão, Farias (2017) nos apresenta um deslocamento epistemológico ocorrido
no campo das esquerdas no pós-Segunda Grande Guerra Mundial, com a emergência
de uma esquerda “pós-moderna”, a qual, aos poucos, com o seu foco não mais nas
categorias de análise que pautavam a revolução das relações de trabalho, mas em
categorias como poder, atores sociais, protagonismo e resistência. Assim, ainda
segundo Farias, cujo pensamento em muito subsidia esta reflexão, a esquerda
brasileira, a tradicional, e a pós-moderna, não conseguiu dialogar, na
perspectiva de ouvir e de falar com e pelo Brasil.
É como
se não houvesse uma predisposição para conhecer – o que não faltam são
produções acadêmicas sobre a temática étnico-racial no Brasil – e reconhecer as
múltiplas realidades produzidas pelo racismo. Talvez, seria necessário um “mea
culpa”, ou, uma mudança de paradigma reconhecendo a centralidade da
problemática racial no debate sobre os destinos da classe trabalhadora no
Brasil, e, consequentemente, uma transformação na forma como as propostas de
ações políticas, que, mesmo quando se propondo progressistas, mais tutelam e
subordinam, do que promovem a efetiva emancipação.
No
Brasil, o reconhecimento da existência do racismo ainda é um longo processo
educativo. Mesmo no campo da esquerda, há uma demora em compreender que só
alcançaremos um mínimo de igualdade quando desenvolvermos uma empatia
necessária para reconhecermos no povo que mora nos morros, nas jovens mães
solo, nas comunidades rurais negras e quilombolas, nas comunidades do povo de
terreiro, nos grupos culturais afros, na juventude negra, não apenas um outro,
ao qual, no máximo, arvoramos dizer representar.
A
morte do João Pedro, um adolescente negro, executado por policiais dentro de
sua casa, na presença de seus parentes e amigos, ou, a do João Vitor, jovem
negro pré-vestibulando, de 19 anos, assassinado quando estava com a sua turma
distribuindo cestas básicas para pessoas em situação de rua, são diariamente
reafirmadas por outros milhares de assassinatos de jovens negros, no modus
operandi do Estado, com a anuência de boa parte da população. São mortes que já
não chocam. E, talvez, nunca tenham chocado. E são todos jovens negros, filhos
de uma "classe trabalhadora" que, nunca conheceu, por exemplo, o que
é ter uma carteira assinada. Ou, o extermínio da população negra impacta verdadeiramente
o coração da esquerda, ou, continuarão, os seus representantes, distantes,
geográfica e discursivamente, com os mesmos pseudos projetos de
"emancipação da classe trabalhadora", na verdade, "passando
pano" para uma sociedade racista, cujo maior objetivo é a nossa eliminação
física e simbólica deste país. Pois, não somos invisíveis, nunca fomos. Somos,
diária e sistematicamente, e de diversas formas, apagados e apagadas.
Nas
últimas duas décadas, o Brasil se viu pressionado a criar, em especial, via o
Estado, no âmbito das políticas públicas, estratégias de superação das
desigualdades decorrentes do racismo a operar nas instituições. A
responsabilização do Estado enquanto agente perpetuador das assimetrias
sociais, com recortes étnico-raciais e de gênero, demarcou, desde a
Constituição Cidadã de 1988, uma pauta urgente de promoção da equidade racial
nas condições de participação da população negra na vida social, econômica e
política.
Foi
apenas nos governos de esquerda, entre os anos de 2003 e 2016, que alcançamos
um pequeno ensaio desse processo de reparação histórica. As políticas de
promoção da Igualdade Racial conseguiram promover a institucionalização, a
reflexão acadêmica e o debate social em torno do racismo. Após um século desse
tema sendo coibido enquanto um grande tabu social, todo o esforço e as
estratégias dos movimentos negros alcançaram o nível da visibilidade e da
agenda política nacional.
A
esquerda, ao assumir o projeto da luta política eleitoral de ocupar os espaços
de governo, estrategicamente, abriu mão de promover, via governos, as grandes
reformas estruturais, as quais promoveriam uma guinada para uma perspectiva
socialista de sociedade. Havia uma proposta de atualizar a agenda nacional no
projeto liberal de Estado de Bem-Estar Social. De um lado, o
neodesenvolvimentismo. De outro, as políticas sociais de acesso ao mínimo de
direitos sociais. E, como nos lembram Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, no
Brasil, são as pautas do movimento negro que forçam a esquerda para a esquerda.
Os
grandes marcos legais e sociais dos governos da frente de esquerda dos governos
Lula e Dilma foram as políticas públicas que promoveram, nas mais diversas
áreas, o acesso mínimo à cidadania, às oportunidades, e ao reconhecimento da
diversidade cultural de milhões de cidadãs e cidadãos e suas comunidades.
Estamos falando de diversos segmentos sociais da população negra que
conquistaram significativa visibilidade nos nossos governos democráticos e
populares.
Não
foram políticas pensadas por algum ser iluminado. Foram cunhadas na luta e na
construção coletiva de séculos. Inclusive, dentro do Partido das Trabalhadoras
e dos Trabalhadores, bem como, de outros partidos, principalmente ao se propor
não se furtarem ao diálogo aberto com os diversos segmentos negros, e, em
muitos diretórios, mantendo organizado e ativo um setorial – ou, secretaria – de
combate ao racismo. Há, hoje, em diversos setores da esquerda, não obstante
este período de estado de exceção no qual estamos mergulhados enquanto
sociedade, um acúmulo teórico e metodológico em todas as políticas públicas, no
que diz respeito ao combate ao racismo e à promoção da equidade étnico-raciais
e de gênero, numa perspectiva transversal e interseccionalizada, enquanto
garantia dos direitos constitucionais.
Para
além da estruturação dos três instrumentos de políticas públicas de promoção da
Igualdade Racial, em Vitória da Conquista, podemos afirmar a conquista de
quatro grandes áreas que tiveram projetos significativos. A educação, com a
implementação da Lei 10.639/03; as comunidades quilombolas, com o
reconhecimento de mais de trinta comunidades junto à Fundação Cultural
Palmares; a gestão, através dos cursos de formação de lideranças e gestores em
políticas de promoção da igualdade racial, via a aprovação de dois grandes
projetos em editais (2009 e 2014) da SEPPIR; e o acesso ao ensino superior, com
a manutenção do Pré-Vestibular Quilombola, com doze anos de existência, uma
parceria com o Conselho das Associações Quilombolas do Território do Sudoeste
Baiano e o voluntariado de mais de cento e vinte professores e professoras
neste período, recebendo mais seis importantes premiações, a nível nacional e
estadual, ao promover a preparação e o suporte técnico no atendimento a mais de
mais de dois mil jovens, de Vitória da conquista e região, e mais de quinhentas
aprovações quilombolas em universidades públicas da Bahia, inclusive mantendo a
Casa do Estudantes Quilombolas Dandara dos Palmares, na qual convivem cerca de
vinte jovens da região. Tais ações, ao mesmo tempo em que apontam para uma
efetividade das políticas de igualdade racial, chamam a atenção para
necessidade de uma melhor estruturação das políticas, para que, de projetos de
determinado governo ou gestão, alcancem o caráter de políticas de Estado.
Não
existe política pública de superação das desigualdades sociais sem o efetivo
enfrentamento do racismo. Da mesma forma que não existe política de igualdade
racial que aconteça paralela à gestão (PASSOS, 2013). Uma política de igualdade
racial, no âmbito da administração municipal, precisa ir além, e escapar das
armadilhas de ser reduzida, ou, a um cargo administrativo para barganha
política, ou, a se restringir à promoção – organização e realização – de
eventos em praça pública, quando das datas emblemáticas do povo negro, prática
que já é uma ação histórica dos próprios movimentos sociais negros.
A
maior missão de uma política pública de promoção da igualdade racial é a de
garantir, nas políticas públicas, a transversalidade e a interseccionalidade de
classe, raça e gênero, a partir do diálogo permanente e propositivo, na saúde,
na educação, na cultura, no desenvolvimento social, no meio ambiente, na
agricultura, e nos Direitos Humanos, tendo como referência os já referidos
instrumentos da construção da política de igualdade racial.
A
coordenação de Igualdade Racial, dentro da estrutura administrativa dos nossos
governos, sempre teve um papel importantíssimo para a proposição das políticas
específicas para a comunidade negra. Há, sim, uma necessidade de avaliação
profunda do que avançamos e do que estagnamos. Inclusive, quanto ao papel do
movimento social, autônomo e crítico; o papel da academia, dialogando e
pesquisando; o papel dos conselhos, em especial do Conselho de Igualdade
Racial, o qual necessita ser fortalecido, e que se constitui enquanto um espaço
de representatividade dos segmentos sociais e da luta negra e indígena em
Vitória da Conquista. Desde 2007, Vitória da Conquista marca presença, de
interlocução e construção, no Fórum Estadual de Gestoras e Gestores Municipais
de Políticas de Igualdade Racial, e desde 2009, no Fórum Estadual de Educação
Escolar Quilombola.
Não
existe política de equidade racial sem o diálogo direto com os povos
tradicionais e as comunidades negras. O avanço na construção do plano de um
governo que responda aos anseios emancipatórios da classe trabalhadora está em
propormos respostas às demandas acumuladas, após séculos de escravidão,
superexploração servil, racismo e sexismo.
Importante
ressaltar a necessidade do diálogo com o movimento negro histórico, e que
também se reinventa em novos formatos de organização e novas linguagens. O
diálogo com a academia, em especial com um significativo universo de pesquisas
que são desenvolvidas, inclusive por estudantes cotistas negras e negros,
quilombolas e indígenas do próprio território de Vitória da Conquista. Essa
memória coletiva, indígena e afro-conquistense, precisa ser valorizada, seja
pela academia, seja pela administração pública. A cultura é dinâmica, as
religiões afro-brasileiras também o são, assim como o racismo também o é. Essas
comunidades do povo de santo existem porque mantiveram vivas as suas memórias
ancestrais.
Entretanto,
desde a desafiadora implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, e das
Diretrizes da Educação Escolar Quilombola, passando pelas políticas de cotas
nos concursos públicos e nas universidades, às políticas de desenvolvimento das
comunidades quilombolas, até às políticas de garantias de direitos das
religiões de matriz indígena e africana, vimos aumentar, por parte de setores
neoconservadores da sociedade, o discurso neofascista deliberadamente racista
de não aceitação da relevância e centralidade dessas pautas.
É
importantíssimo que avancemos, neste momento, dentro do partido, de fora para dentro,
e de dentro para fora, na construção do setorial de Combate ao Racismo. Sem
essa discussão, há o real perigo de todas as demandas ligadas à promoção da
equidade racial diluírem-se no convencional caráter universalista do comum das
políticas públicas, grande responsável pelo aprofundamento do fosso social
entre negros e não negros no Brasil.
Promover
políticas de igualdade racial exige que aprofundemos o debate sobre os Direitos
Humanos, e que conheçamos como se estrutura o racismo em nossa sociedade. Hoje,
falamos em racismo estrutural, racismo institucional, racismo epistêmico,
racismo religioso, racismo lúdico, categorias que têm sido construídas nos
últimos vinte anos por grandes teóricos e teóricas para dar conta desse
complexo fenômeno social.
O
próprio texto de João Vargas (2020) nos aponta para a limitação do conceito de
“racismo” para dar conta do que acontece com a vida da população negra em uma
sociedade “antinegritude”. E, ao começarmos a compreendermos do que se trata
cada uma dessas categorias, passaremos, enquanto militantes do campo da
esquerda, a compreender o como se dá a “necropolítica” nesta sociedade e neste
sistema "anti-negro". E só é possível pensamos sobre essas categorias
se compreendermos qual o papel das políticas públicas – e do Estado – em um
sistema ultraneoliberal.
Há
três décadas, segmentos do movimento negro levantavam a bandeira da reparação
histórica, que significaria o pagamento das dívidas da sociedade brasileira
para com a população negra. De vinte anos para cá, a efetividade reparatória
traduziu-se em políticas de ações afirmativas ou "políticas de promoção da
igualdade racial".
E já
encontramos seríssimas resistências, mas tivemos alguns avanços, principalmente
em termos garantias jurídicas e legais. O Decreto 4.887/2003, que regulamenta o
processo de autorreconhecimento das comunidades quilombolas, o Estatuto da
Igualdade Racial, as diretrizes nacionais das políticas de educação quilombola
e de educação para as relações étnico-raciais, as diretrizes das políticas de
saúde da população negra, as diretrizes dos direitos das religiões de matriz
africana, os planos municipais de política de Igualdade Racial são, sim, fruto
de muita discussão e amadurecimento histórico e comunitário.
E,
frente ao que vivemos neste momento de recrudescimento do racismo, das práticas
neofascistas, do aprofundamento da necropolítica do Estado brasileiro contra as
populações negras, indígenas e quilombolas, precisaremos decidir, enquanto
campo da esquerda, se recuaremos, ou se avançaremos na perspectiva de
construirmos efetivas políticas que promovam reparação histórica, equidade de
direitos, reconhecimento das alteridades, e respeito às diversidades, ou se
vamos nos valer do Estado para, mais ainda, invisibilizar as populações
historicamente marcadas pela opressão e o não-poder.
Não
entendo que tenhamos a receita pronta. Estamos em meio a duas graves crises – sanitária
e política –, e precisamos ter a coragem de fazermos o que precisa ser feito:
ouvir as comunidades. E, mais uma vez, só é possível ouvi-las quando se está
presente. Só é possível estar presente se “subir o morro”; se entrar “porteira
adentro” nas comunidades quilombolas; se buscar entender o drama em que vive
quem simplesmente quer manter em paz os cultos aos seus ancestrais; ou ouvir os
lamentos das mães que diariamente temem e choram o desaparecimento de seus
filhos.
Quando
iniciava a reflexão que desencadearia na construção deste texto, deparei-me com
uma recente entrevista com o antropólogo Kabengele Munanga, sobre a condição da
população negra no contexto da Covid-19, na qual ele diz: “Se o Brasil, como
povo, decidir ficar no capitalismo, tem que humanizar esse capitalismo. Não dá
para ficar do jeito que está. A maior decisão está no próprio povo, que deve
decidir o futuro de seu país. O modelo de democracia neoliberal que nós temos é
um modelo em crise" (MUNANGA, 2020).
Nesta
perspectiva, acredito que o processo eleitoral deste ano, por si, histórico,
seja a grande oportunidade de fazermos uma avaliação serena e madura do que já
acumulamos, do que não podemos mais errar, e do que queremos – e devemos – avançar
enquanto um projeto político que promova a vida, a dignidade, a justiça social,
a reparação histórica e o reconhecimento para todos os segmentos que compõem a
classe trabalhadora brasileira. Enfim, a cidadania, numa perspectiva
emancipatória.
25 de
maio de 2020 – Dia da África
Referências Bibliográficas
_____. Bate papo com o autor de Clóvis Moura e
o Brasil. Disponível em:
https://www.instagram.com/p/CAgp_p0nCd5/
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. In: Estudos Avançados, n. 17, vol. 49, USP, 2003.
CUT NOTÍCIAS. “Questão de raça precisa ser obrigatória nos casos e morte por Covid-19, diz deputado”. Disponível em:
https://www.cut.org.br/noticias/questao-de-raca-precisa-ser-obrigatoria-nos-casos-e-morte-por-covid-19-diz-deput-bc8d
FARIAS, M. Uma esquerda marxista fora do lugar: pensamento adstringido e a luta de classe e raça no Brasil. SER Social, v. 19, n. 41, p. 398-413, 6 fev. 2018.
MUNANGA, Kabengele. Mudar as coisas:
intelectual deve influenciar na mudança. ECOA, Por um mundo melhor. UOL, 18 de
maio de 2020. Entrevista concedida a Gabriel Rocha Gaspar. Disponível em:
https://bityli.com/Cv7WK
PASSOS, Flávio José dos Passos. Políticas
Públicas de Igualdade Racial: a democracia necessária. Disponível em:
http://blogdocaporec.blogspot.com/2013/02/politicas-publicas-de-igualdade-racial.html
VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta:
antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. EM
PAUTA, Rio de Janeiro, 1o Semestre de 2020 – n. 45, v. 18, p. 16 – 26, In:
Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/47201
________________________________
* Flávio José dos Passos,
mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP, doutorando em Estudos Étnicos pelo
Pós-Afro da UFBA, professor da rede pública de ensino, técnico de nível
superior na Coordenação Municipal de Políticas de Igualdade Racial de Vitória
da Conquista, militante negro e filiado ao PT, desde 2004.
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