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terça-feira, 26 de maio de 2020

A superação do capitalismo só se dará a partir da superação do racismo


 

"Há cinco séculos, a dominação do capital se alimentou da escravidão, da colonização das sociedades colocadas na periferia do grande capital, e do racismo estrutural."

*por Flávio Passos

 

2020 já entrou para a História, e entrará em definitivo, por conta dos desdobramentos da pandemia da Covid-19 por todo o planeta, nas sociedades, na economia e na política. O século XXI estaria começando de vez, após a humanidade ser despida de suas certezas, e a razão de suas crenças? Em termos de Brasil, descobrimos que não só a nossa democracia corre sérios riscos, como o Estado – e as políticas públicas –, quando e onde ele atua, são fundamentais para diminuírem os impactos da doença. E que, mesmo aparentando ser democrático no contágio, o Coronavírus possui uma alta letalidade racial e de classe.

Ainda nesta semana, um Projeto de Lei apresentado na Câmara Federal, pelo deputado federal, e ex-ministro da saúde, Alexandre Padilha (PT-SP), prevê a obrigatoriedade da identificação do quesito raça/cor dos pacientes contaminados ou mortos por Covid-19. Algo que já deveria ser uma prática comum nos sistemas de saúde públicos e privados do país. Em um futuro muito próximo, estudos científicos comprovarão o quanto o racismo foi determinante para o Brasil constar entre os países com maior número de mortos nesta pandemia, em sua maioria negros, e o quanto o Sistema Único de Saúde – o SUS – terá sido o principal responsável para que tragédia não fosse ainda maior.

Pensar a construção de uma sociedade como a brasileira alcançando um patamar de igualdade e emancipação social, econômica e política de sua população passa por reconhecer que antes do capitalismo industrial aqui assentar as suas pilastras, a base dos seus contornos nacionais está cimentada em quatro séculos de escravidão e de genocídio das populações indígenas e africanas e de seus descendentes. E, no pós-abolição, não houve um projeto de nação e de cidadania que contemplasse a população negra enquanto sujeito político ou, ao menos, de direitos. Não houve, e ainda não há.

A história da luta de classes, no Brasil e na diáspora africana, é acompanhada, em concomitância, mas não necessariamente em abrangência de ideais ou de compromissos políticos conjuntos, pela história da luta da população negra para não ser eliminada. No Brasil, a trabalhadora negra e o trabalhador negro, via de regra, sempre estiveram em uma condição subalternizada no mundo do trabalho, e, consequentemente, em sua representação social e política. A luta antirracista insere-se dentro de uma luta tão importante quanto, que é a luta da classe trabalhadora. E vice-versa. Uma é fruto da outra. São lutas que se cruzam, porque buscam superar opressões que se acumulam, e que se interseccionam na vida e nos corpos da população negra.

Há cinco séculos, a dominação do capital se alimentou da escravidão, da colonização das sociedades colocadas na periferia do grande capital, e do racismo estrutural. E o racismo, por sua vez, alimenta-se da exploração social, ao reafirmar o (não) lugar da população negra como sendo o da base da pirâmide social e do (não) usufruto dos próprios recursos naturais e dos bens por ela produzidos. No neoliberalismo, a classe trabalhadora está sendo empurrada, em bloco, para a condição de perda de direitos e de representatividade. A própria estrutura política e as regras do jogo eleitoral têm refletido diretamente no decréscimo da quantidade de lideranças populares e negras, representativas das lutas pelos direitos das chamadas "minorias sociais", que se candidatam, e menos ainda, que chegam a ocupar algum cargo eletivo.

A esquerda que aqui se desenvolveu, durante mais de meio século, não se atentou para o quanto estava distante, em suas formulações teóricas e na sua prática social e política, da realidade gritante da maioria da população brasileira. Segundo o pesquisador Márcio Farias, em um diálogo ocorrido em uma conversa virtual, na sexta, dia 22 de maio, na página da Dandara Editora, no Instagram, sobre a intensificação da exploração do trabalho da população negra, e da formação social brasileira, em um contexto de “superexploração da classe trabalhadora latino-americana”, diz que:

“o que chama a atenção na América Latina é o fenômeno de como foi possível uma América Latina, outrora colonial, e o Brasil está nesse jogo, se tornar uma das dez maiores economias do mundo em algumas décadas. Isso vai dizendo muito sobre a conformação da classe trabalhadora, no Brasil e na América Latina. E ela vai dizendo muito, na medida em que, inclusive o dinamismo da sociedade brasileira vai sendo explicado pela dimensão de raça, classe e gênero. Porque um determinado segmento da população da classe trabalhadora, independente do lugar que ela ocupava nas relações de produção, se ela era trabalhadora fabril, se ela trabalhava com outros setores, independente do lugar que ela ocupava nas relações de produção, a classe trabalhadora que era mulher, negra, ou, mesmo homem negro, ou, ocupava um lugar e não tinha mobilidade no trabalho, ou, raramente conseguia encontrar postos de trabalho no que a gente chama de trabalho forma, com carteira assinada. Demorou muito para isso acontecer. Na década de 60 e 70, finalmente, quando há uma absorção, no trabalho formal, do segmento negro da população brasileira”. (FARIAS, 2020).

 Em um texto histórico da pensadora Sueli Carneiro, ela diz: “os diferentes retornos auferidos pelas mulheres de uma luta que se pretendia universalizante tornava insustentável o não reconhecimento do peso do racismo e da discriminação racial nos processos de seleção e alocação da mão-de-obra feminina, posto que as desigualdades se mantêm mesmo quando controladas as condições educacionais” (CARNEIRO, 2003, 121). A condição e a luta feminista, em especial, do feminismo negro, pela superação do caráter racista, sexista e classista que impregna as relações sociais, econômicas e políticas da sociedade brasileira, ainda é uma das vozes que mais incomodam o arranjo de todas as instituições democráticas do país.

Ainda de acordo com Farias, ofuscadas por uma matriz eurocêntrica de ser, pensar e agir, bem como, pelo racismo estrutural, e pela força coercitiva do mito da democracia racial sobre a classe trabalhadora brasileira, as organizações sindicais e políticas de esquerda se perderam, ao não se permitirem compreender a dinâmica da estruturação do capital – e da sociedade – nacional a partir da ação do racismo e do machismo enquanto elementos estruturantes das nossas relações sociais, dos nossos abismos no acesso aos direitos trabalhistas, e de nossas desigualdades. Todas elas.

Em um artigo publicado em 2017, Farias nos lembra que:

“os herdeiros dos imigrantes, mesmo quando absorveram novas vertentes marxistas, o fizeram de forma mecânica e economicista, não apreendendo a principal contradição do capitalismo brasileiro: o racismo. E o fizeram, justamente por se espelhar no trabalhador e intelectual europeu que não vivia naquele momento, de maneira mais efetiva, as contradições de raça e classe nos países europeus, algo que ocorrerá nas décadas seguintes, com a imigração de africanos e árabes, e que, surpreendentemente, foi amplamente absorvida pela analítica marxista contemporânea como um fenômeno a ser entendido na Europa,” (Farias, 2017, p. 408).

 O capitalismo é o sucesso da sociedade antinegro e antinegritude, e o racismo é o seu combustível. O professor de Antropologia da Universidade da Califórnia, João H. Vargas (2020), nos coloca um questionamento não meramente retórico, mas inquietante: “A antinegritude é constitutiva da Humanidade. Ser humano é não ser negro. Tendo isso em vista, como elaborar políticas públicas, práticas sociais ou noções de ser que questionam o conceito de Humanidade?” (Vargas, 2020, p. 18).

Segundo o autor, a antinegritude é uma forma de “naturalização da presença”, enquanto não cidadania, entendendo esse conceito como “o pertencimento à família humana”. Para Vargas, “esse mundo constituído exige a degradação do Outro, um Outro paradigmaticamente negro”. Explicitar essa dinâmica antinegritude na sociedade brasileira, talvez seja um dos maiores desafios, tanto no campo das ciências, quanto no das formulações de políticas públicas.

A estagnação social, econômica e política da população negra sempre foi um projeto de sociedade. Um pacto eficiente e duradouro, mesmo a população negra estando dentro da chamada classe trabalhadora. Ainda segundo Farias (2017), a condição social da população negra, no Brasil, se explica pela escravidão, mas, também, “deve-se em conta ao racismo como ideologia de dominação e exploração. Racismo gera mais valor! E gera mais valor não no ato em si.” (Idem, 410).

A população negra sempre esteve aquém das condições econômicas, trabalhistas, sociais e políticas para participar em pé de igualdade de um processo de lutas e conquistas da classe trabalhadora. E, em situações de crises, é a primeira a sentir mais profundamente os impactos. 

Concluindo a sua reflexão, Farias (2017) nos apresenta um deslocamento epistemológico ocorrido no campo das esquerdas no pós-Segunda Grande Guerra Mundial, com a emergência de uma esquerda “pós-moderna”, a qual, aos poucos, com o seu foco não mais nas categorias de análise que pautavam a revolução das relações de trabalho, mas em categorias como poder, atores sociais, protagonismo e resistência. Assim, ainda segundo Farias, cujo pensamento em muito subsidia esta reflexão, a esquerda brasileira, a tradicional, e a pós-moderna, não conseguiu dialogar, na perspectiva de ouvir e de falar com e pelo Brasil.

É como se não houvesse uma predisposição para conhecer – o que não faltam são produções acadêmicas sobre a temática étnico-racial no Brasil – e reconhecer as múltiplas realidades produzidas pelo racismo. Talvez, seria necessário um “mea culpa”, ou, uma mudança de paradigma reconhecendo a centralidade da problemática racial no debate sobre os destinos da classe trabalhadora no Brasil, e, consequentemente, uma transformação na forma como as propostas de ações políticas, que, mesmo quando se propondo progressistas, mais tutelam e subordinam, do que promovem a efetiva emancipação.

No Brasil, o reconhecimento da existência do racismo ainda é um longo processo educativo. Mesmo no campo da esquerda, há uma demora em compreender que só alcançaremos um mínimo de igualdade quando desenvolvermos uma empatia necessária para reconhecermos no povo que mora nos morros, nas jovens mães solo, nas comunidades rurais negras e quilombolas, nas comunidades do povo de terreiro, nos grupos culturais afros, na juventude negra, não apenas um outro, ao qual, no máximo, arvoramos dizer representar.

A morte do João Pedro, um adolescente negro, executado por policiais dentro de sua casa, na presença de seus parentes e amigos, ou, a do João Vitor, jovem negro pré-vestibulando, de 19 anos, assassinado quando estava com a sua turma distribuindo cestas básicas para pessoas em situação de rua, são diariamente reafirmadas por outros milhares de assassinatos de jovens negros, no modus operandi do Estado, com a anuência de boa parte da população. São mortes que já não chocam. E, talvez, nunca tenham chocado. E são todos jovens negros, filhos de uma "classe trabalhadora" que, nunca conheceu, por exemplo, o que é ter uma carteira assinada. Ou, o extermínio da população negra impacta verdadeiramente o coração da esquerda, ou, continuarão, os seus representantes, distantes, geográfica e discursivamente, com os mesmos pseudos projetos de "emancipação da classe trabalhadora", na verdade, "passando pano" para uma sociedade racista, cujo maior objetivo é a nossa eliminação física e simbólica deste país. Pois, não somos invisíveis, nunca fomos. Somos, diária e sistematicamente, e de diversas formas, apagados e apagadas.

Nas últimas duas décadas, o Brasil se viu pressionado a criar, em especial, via o Estado, no âmbito das políticas públicas, estratégias de superação das desigualdades decorrentes do racismo a operar nas instituições. A responsabilização do Estado enquanto agente perpetuador das assimetrias sociais, com recortes étnico-raciais e de gênero, demarcou, desde a Constituição Cidadã de 1988, uma pauta urgente de promoção da equidade racial nas condições de participação da população negra na vida social, econômica e política.

Foi apenas nos governos de esquerda, entre os anos de 2003 e 2016, que alcançamos um pequeno ensaio desse processo de reparação histórica. As políticas de promoção da Igualdade Racial conseguiram promover a institucionalização, a reflexão acadêmica e o debate social em torno do racismo. Após um século desse tema sendo coibido enquanto um grande tabu social, todo o esforço e as estratégias dos movimentos negros alcançaram o nível da visibilidade e da agenda política nacional.

A esquerda, ao assumir o projeto da luta política eleitoral de ocupar os espaços de governo, estrategicamente, abriu mão de promover, via governos, as grandes reformas estruturais, as quais promoveriam uma guinada para uma perspectiva socialista de sociedade. Havia uma proposta de atualizar a agenda nacional no projeto liberal de Estado de Bem-Estar Social. De um lado, o neodesenvolvimentismo. De outro, as políticas sociais de acesso ao mínimo de direitos sociais. E, como nos lembram Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, no Brasil, são as pautas do movimento negro que forçam a esquerda para a esquerda.

Os grandes marcos legais e sociais dos governos da frente de esquerda dos governos Lula e Dilma foram as políticas públicas que promoveram, nas mais diversas áreas, o acesso mínimo à cidadania, às oportunidades, e ao reconhecimento da diversidade cultural de milhões de cidadãs e cidadãos e suas comunidades. Estamos falando de diversos segmentos sociais da população negra que conquistaram significativa visibilidade nos nossos governos democráticos e populares.

Não foram políticas pensadas por algum ser iluminado. Foram cunhadas na luta e na construção coletiva de séculos. Inclusive, dentro do Partido das Trabalhadoras e dos Trabalhadores, bem como, de outros partidos, principalmente ao se propor não se furtarem ao diálogo aberto com os diversos segmentos negros, e, em muitos diretórios, mantendo organizado e ativo um setorial – ou, secretaria – de combate ao racismo. Há, hoje, em diversos setores da esquerda, não obstante este período de estado de exceção no qual estamos mergulhados enquanto sociedade, um acúmulo teórico e metodológico em todas as políticas públicas, no que diz respeito ao combate ao racismo e à promoção da equidade étnico-raciais e de gênero, numa perspectiva transversal e interseccionalizada, enquanto garantia dos direitos constitucionais.

Para além da estruturação dos três instrumentos de políticas públicas de promoção da Igualdade Racial, em Vitória da Conquista, podemos afirmar a conquista de quatro grandes áreas que tiveram projetos significativos. A educação, com a implementação da Lei 10.639/03; as comunidades quilombolas, com o reconhecimento de mais de trinta comunidades junto à Fundação Cultural Palmares; a gestão, através dos cursos de formação de lideranças e gestores em políticas de promoção da igualdade racial, via a aprovação de dois grandes projetos em editais (2009 e 2014) da SEPPIR; e o acesso ao ensino superior, com a manutenção do Pré-Vestibular Quilombola, com doze anos de existência, uma parceria com o Conselho das Associações Quilombolas do Território do Sudoeste Baiano e o voluntariado de mais de cento e vinte professores e professoras neste período, recebendo mais seis importantes premiações, a nível nacional e estadual, ao promover a preparação e o suporte técnico no atendimento a mais de mais de dois mil jovens, de Vitória da conquista e região, e mais de quinhentas aprovações quilombolas em universidades públicas da Bahia, inclusive mantendo a Casa do Estudantes Quilombolas Dandara dos Palmares, na qual convivem cerca de vinte jovens da região. Tais ações, ao mesmo tempo em que apontam para uma efetividade das políticas de igualdade racial, chamam a atenção para necessidade de uma melhor estruturação das políticas, para que, de projetos de determinado governo ou gestão, alcancem o caráter de políticas de Estado.

Não existe política pública de superação das desigualdades sociais sem o efetivo enfrentamento do racismo. Da mesma forma que não existe política de igualdade racial que aconteça paralela à gestão (PASSOS, 2013). Uma política de igualdade racial, no âmbito da administração municipal, precisa ir além, e escapar das armadilhas de ser reduzida, ou, a um cargo administrativo para barganha política, ou, a se restringir à promoção – organização e realização – de eventos em praça pública, quando das datas emblemáticas do povo negro, prática que já é uma ação histórica dos próprios movimentos sociais negros.

A maior missão de uma política pública de promoção da igualdade racial é a de garantir, nas políticas públicas, a transversalidade e a interseccionalidade de classe, raça e gênero, a partir do diálogo permanente e propositivo, na saúde, na educação, na cultura, no desenvolvimento social, no meio ambiente, na agricultura, e nos Direitos Humanos, tendo como referência os já referidos instrumentos da construção da política de igualdade racial.

A coordenação de Igualdade Racial, dentro da estrutura administrativa dos nossos governos, sempre teve um papel importantíssimo para a proposição das políticas específicas para a comunidade negra. Há, sim, uma necessidade de avaliação profunda do que avançamos e do que estagnamos. Inclusive, quanto ao papel do movimento social, autônomo e crítico; o papel da academia, dialogando e pesquisando; o papel dos conselhos, em especial do Conselho de Igualdade Racial, o qual necessita ser fortalecido, e que se constitui enquanto um espaço de representatividade dos segmentos sociais e da luta negra e indígena em Vitória da Conquista. Desde 2007, Vitória da Conquista marca presença, de interlocução e construção, no Fórum Estadual de Gestoras e Gestores Municipais de Políticas de Igualdade Racial, e desde 2009, no Fórum Estadual de Educação Escolar Quilombola.

Não existe política de equidade racial sem o diálogo direto com os povos tradicionais e as comunidades negras. O avanço na construção do plano de um governo que responda aos anseios emancipatórios da classe trabalhadora está em propormos respostas às demandas acumuladas, após séculos de escravidão, superexploração servil, racismo e sexismo.

Importante ressaltar a necessidade do diálogo com o movimento negro histórico, e que também se reinventa em novos formatos de organização e novas linguagens. O diálogo com a academia, em especial com um significativo universo de pesquisas que são desenvolvidas, inclusive por estudantes cotistas negras e negros, quilombolas e indígenas do próprio território de Vitória da Conquista. Essa memória coletiva, indígena e afro-conquistense, precisa ser valorizada, seja pela academia, seja pela administração pública. A cultura é dinâmica, as religiões afro-brasileiras também o são, assim como o racismo também o é. Essas comunidades do povo de santo existem porque mantiveram vivas as suas memórias ancestrais.

Entretanto, desde a desafiadora implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, e das Diretrizes da Educação Escolar Quilombola, passando pelas políticas de cotas nos concursos públicos e nas universidades, às políticas de desenvolvimento das comunidades quilombolas, até às políticas de garantias de direitos das religiões de matriz indígena e africana, vimos aumentar, por parte de setores neoconservadores da sociedade, o discurso neofascista deliberadamente racista de não aceitação da relevância e centralidade dessas pautas.

É importantíssimo que avancemos, neste momento, dentro do partido, de fora para dentro, e de dentro para fora, na construção do setorial de Combate ao Racismo. Sem essa discussão, há o real perigo de todas as demandas ligadas à promoção da equidade racial diluírem-se no convencional caráter universalista do comum das políticas públicas, grande responsável pelo aprofundamento do fosso social entre negros e não negros no Brasil.

Promover políticas de igualdade racial exige que aprofundemos o debate sobre os Direitos Humanos, e que conheçamos como se estrutura o racismo em nossa sociedade. Hoje, falamos em racismo estrutural, racismo institucional, racismo epistêmico, racismo religioso, racismo lúdico, categorias que têm sido construídas nos últimos vinte anos por grandes teóricos e teóricas para dar conta desse complexo fenômeno social.

O próprio texto de João Vargas (2020) nos aponta para a limitação do conceito de “racismo” para dar conta do que acontece com a vida da população negra em uma sociedade “antinegritude”. E, ao começarmos a compreendermos do que se trata cada uma dessas categorias, passaremos, enquanto militantes do campo da esquerda, a compreender o como se dá a “necropolítica” nesta sociedade e neste sistema "anti-negro". E só é possível pensamos sobre essas categorias se compreendermos qual o papel das políticas públicas – e do Estado – em um sistema ultraneoliberal.

Há três décadas, segmentos do movimento negro levantavam a bandeira da reparação histórica, que significaria o pagamento das dívidas da sociedade brasileira para com a população negra. De vinte anos para cá, a efetividade reparatória traduziu-se em políticas de ações afirmativas ou "políticas de promoção da igualdade racial".

E já encontramos seríssimas resistências, mas tivemos alguns avanços, principalmente em termos garantias jurídicas e legais. O Decreto 4.887/2003, que regulamenta o processo de autorreconhecimento das comunidades quilombolas, o Estatuto da Igualdade Racial, as diretrizes nacionais das políticas de educação quilombola e de educação para as relações étnico-raciais, as diretrizes das políticas de saúde da população negra, as diretrizes dos direitos das religiões de matriz africana, os planos municipais de política de Igualdade Racial são, sim, fruto de muita discussão e amadurecimento histórico e comunitário.

E, frente ao que vivemos neste momento de recrudescimento do racismo, das práticas neofascistas, do aprofundamento da necropolítica do Estado brasileiro contra as populações negras, indígenas e quilombolas, precisaremos decidir, enquanto campo da esquerda, se recuaremos, ou se avançaremos na perspectiva de construirmos efetivas políticas que promovam reparação histórica, equidade de direitos, reconhecimento das alteridades, e respeito às diversidades, ou se vamos nos valer do Estado para, mais ainda, invisibilizar as populações historicamente marcadas pela opressão e o não-poder.

Não entendo que tenhamos a receita pronta. Estamos em meio a duas graves crises – sanitária e política –, e precisamos ter a coragem de fazermos o que precisa ser feito: ouvir as comunidades. E, mais uma vez, só é possível ouvi-las quando se está presente. Só é possível estar presente se “subir o morro”; se entrar “porteira adentro” nas comunidades quilombolas; se buscar entender o drama em que vive quem simplesmente quer manter em paz os cultos aos seus ancestrais; ou ouvir os lamentos das mães que diariamente temem e choram o desaparecimento de seus filhos.

Quando iniciava a reflexão que desencadearia na construção deste texto, deparei-me com uma recente entrevista com o antropólogo Kabengele Munanga, sobre a condição da população negra no contexto da Covid-19, na qual ele diz: “Se o Brasil, como povo, decidir ficar no capitalismo, tem que humanizar esse capitalismo. Não dá para ficar do jeito que está. A maior decisão está no próprio povo, que deve decidir o futuro de seu país. O modelo de democracia neoliberal que nós temos é um modelo em crise" (MUNANGA, 2020).

Nesta perspectiva, acredito que o processo eleitoral deste ano, por si, histórico, seja a grande oportunidade de fazermos uma avaliação serena e madura do que já acumulamos, do que não podemos mais errar, e do que queremos – e devemos – avançar enquanto um projeto político que promova a vida, a dignidade, a justiça social, a reparação histórica e o reconhecimento para todos os segmentos que compõem a classe trabalhadora brasileira. Enfim, a cidadania, numa perspectiva emancipatória.


25 de maio de 2020 – Dia da África

 

 

Referências Bibliográficas

_____. Bate papo com o autor de Clóvis Moura e o Brasil. Disponível em:
https://www.instagram.com/p/CAgp_p0nCd5/

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. In: Estudos Avançados, n. 17, vol. 49, USP, 2003.

CUT NOTÍCIAS. “Questão de raça precisa ser obrigatória nos casos e morte por Covid-19, diz deputado”. Disponível em:
https://www.cut.org.br/noticias/questao-de-raca-precisa-ser-obrigatoria-nos-casos-e-morte-por-covid-19-diz-deput-bc8d

FARIAS, M. Uma esquerda marxista fora do lugar: pensamento adstringido e a luta de classe e raça no Brasil. SER Social, v. 19, n. 41, p. 398-413, 6 fev. 2018.

MUNANGA, Kabengele. Mudar as coisas: intelectual deve influenciar na mudança. ECOA, Por um mundo melhor. UOL, 18 de maio de 2020. Entrevista concedida a Gabriel Rocha Gaspar. Disponível em:
https://bityli.com/Cv7WK

PASSOS, Flávio José dos Passos. Políticas Públicas de Igualdade Racial: a democracia necessária. Disponível em:
http://blogdocaporec.blogspot.com/2013/02/politicas-publicas-de-igualdade-racial.html

VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. EM PAUTA, Rio de Janeiro, 1o Semestre de 2020 – n. 45, v. 18, p. 16 – 26, In: Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/47201

 

 

________________________________
* Flávio José dos Passos, mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP, doutorando em Estudos Étnicos pelo Pós-Afro da UFBA, professor da rede pública de ensino, técnico de nível superior na Coordenação Municipal de Políticas de Igualdade Racial de Vitória da Conquista, militante negro e filiado ao PT, desde 2004.

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