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quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Primeira Fliconquista: Zezé Motta e o cordelista conquistense Davi Neves

O cordelista José Walter confabulando com o noviço Davi Neves na Fliconquista


*por Herberson Sousa Silva


Estive na Feira Literária de Vitória da Conquista (Fliconquista) realizada entre os dias 15 a 19 de novembro de 2023, no espaço do Centro de Cultura Camillo Jesus Lima. A programação extensa contou com artistas e intelectuais conquistenses respeitadíssimos, a exemplo do advogado, historiador e escritor Prof. Dr. Ruy Hermann Araújo Medeiros, o cordelista José Valter (irmão do compositor e musicista Moraes Moreira), o infante estreante escritor de literatura de cordel Davi Neves e outros nomes do circuito nacional da grandeza de Zezé Motta, Daniel Munduruku e Jean Wyllys.

As pessoas corretamente parabenizam pela grandiosidade do feito, contudo, quase sempre pecam ao silenciar os bastidores (homens e mulheres trabalhadoras), uma vez que eles dizem muito sobre a eficácia e grandeza de qualquer evento público ou privado. Por isso, não poderia deixar de evidenciar a curadoria do evento pelo brio da atividade, sob o auspício do Estado da Bahia. O primor e o profissionalismo da gestão da Curadoria da professora Dra. Ester Figueiredo e da Curadoria Adjunta do professor Dr. Elton Becker, extensivo ao Coletivo BarraVento e toda a equipe responsável pela atividade.

Confesso que saí daquele lugar culturalmente rejuvenescido porque encontrei por lá muito mais que transações comerciais. Aliás, aflorou o sentido lúdico, a maravilhosa gastronomia popular e a verve cultural de uma autêntica feira campesina. Contudo, também sair convencido de que esse novo formato de exposição pública que estimula a produção artístico-cultural erudita e popular se não veio para ficar, vai criar muitas insatisfações nesse ano de 2024.

Antes de discorrer sobre a Fliconquista, parafraseando a ideia de andanças pelo país e do descansar em paz depois de uma tentativa frustrada de golpe (08 de janeiro de 2023) do saudoso compositor, cantor e colega economista Gonzaguinha (“Vida de viajante”, 2014), me resta guardar as lembranças e saudades "dos amigos que lá deixei”. Nesse sentido, peço licença a você leitor (a) para abrir uma aspa para abordar rapidamente a ideia e o sentimento popular e coletivo desse lugar histórico que se constitui como feira.

A meu ver, o espaço e a ideia de feira não é apenas uma área pública destinada exclusivamente aos negócios. Antes de qualquer coisa, a feira é um lugar plural; repleto de produtos sem agrotóxicos da agricultura familiar; das aromáticas culinárias populares; da legítima música de viola caipira, regada a uma saborosa purinha do alambique; da boa prosa com trocas de afetividades entre pessoas amigas; e da convergência harmônica entre os vários falares, religiosidades, tradições e culturas regionalistas populares.

Falar sobre isso é fundamental, principalmente porque em tempos de recuperação indicadores de pobreza-extrema, vender frivolidades exige muita pirotecnia midiática ou engano. Por isso, quem disputa com êxito a vontade da maioria das pessoas são as grandes corporações capitalistas com seus vocativos excessivos para estimular o mercado de consumo. Essas propagandas destituídas da localidade içam para cima os negócios do famigerado shopping time, e, para driblar a tradição cultural local, publicizam jargões como o “ecletismo” cultural.

Nesse contexto de desfazimento da cultura do povo do campo e da periferia da cidade, a feira-livre e, especialmente, a música popular brasileira, viraram alvos fáceis de jargões publicitários que vão ressignificando tudo que ameace as vendas empresariais. É preciso compreender que esses vocativos descomedidos, massificados diariamente por publicistas (não apenas por esse tipo de profissional) nas megaempresas privadas, principais meios de comunicação (escrita, falada e televisada) do país, vão influenciando e moldando de sobremaneira a opinião pública a favor de interesses exclusivistas de mercados privados.

O capitalismo e sua classe burguesa dominante conquistense são contrários aos interesses das populações localizadas nos imensos rincões de pobreza (e abaixo da linha de pobreza) de qualquer município brasileiro. Essa pauperização as tornam vulneráveis intelectual e materialmente, por esses mesmos mecanismos de mercados voltados à reprodução do capital.

Não é à toa que os noticiários de grande circulação no país focam pedagogicamente nas explicações desses especialistas em publicidade e estruturas de mercado, como se as mesmas fossem uma verdade tautológica (exemplo, o sal é salgado) que sinalizam com isenção dos interesses dos capitalistas (como se fosse possível) tempos mudanças profundas de comportamento de consumo da sociedade, movidas pelas novas tendências de mercado, naturalizando a dinâmica mercadológica.

Essa ideia de modernidade capitaneada pelos marqueteiros, visa consubstanciar expressões, a exemplo de ecletismo, com algo de última geração, como se a modernidade fosse uma ruptura paradigmática com a superação efetiva de todas as formas de atraso cultural, científico e do progresso da humanidade nas franjas na sociedade. Além de isentar a classe dominante e o capitalismo da exploração de trabalho humano e da apropriação privada de excedentes, causadores da decadência (material, intelectual e cultural) no mundo do trabalho, criminaliza as várias formas de vivências do campo e das periferias como sendo destituídas de elementos culturais e “cafona”.

Isso tem a ver com a imputação de táticas dos interesses capitalistas para auferirem lucros exorbitantes nas operações de mercado. Não existe, absolutamente, nada além de retocar a maquiagem para dar nova aparência (ou nova roupagem) a mesmíssima forma de vender mercadorias e serviços. É o desserviço do lixo da indústria cultural (a exemplo do agroboi) sendo envernizado de “cultura”.

Gosto de ir ao mercado (não esse capitalista que nós conhecemos), pois existe muita inteligência, sabedoria e conhecimento popular acumulado fora desse espectro do controlado pelo capitalismo. Portanto, nada mais saudável do que ir à feira-livre pechinchar uma lata de óleo de feijão catador; ouvir repentes e cantadores do povo; comer um pastel com caldo de cana; comprar um bom cordel ou um vinil (LP) de Elomar Figueira, Bezerra da Silva ou Sex Pistols - tudo ali à sua vista, enfileirados em cima do saco de nylon para você escolher.

Antes que as más línguas me chamem à atenção, gostaria de salientar que a feira é um conceito antigo, ele surge muito antes do capitalismo e da civilização liberal burguesa. Ir à feira era um comportamento recorrente desde 500 a.C. no Oriente Médio com os árabes, persas, turcos e judeus. Já existia antes da feira-livre assumir essa condição mercadológica atribuída pela sociedade moderna. Consequentemente, muito antes de ressurgirem na Idade Média com o sentido de festividade religiosa.

Mas, não se pode negar o entrelaçamento do profano e pagão, a religião e o comércio andaram juntos durante séculos. A palavra feira tem origem latina e quer dizer “dia santo” (ou feriado). A feira-livre era um lugar de reunião no dia de “folga” em um determinado dia da semana em que as várias pessoas se encontravam nessa área pública com a finalidade de negociarem seus excedentes - produtos não industrializados. Com o tempo o poder público instituiu regras e passou a organizar, fiscalizar e tributar essas transações. Fecho aspas para retomar a Fliconquista dizendo que foi com esse espírito sóciohistórico e anticapitalistas que fui tomado pela “pletora de alegria” ao rever velhos e novos amigos na feira literária.

Foi nesse lugar lúdicos e de oportunidades, que estreou o noviço Davi Neves (ou Dadá Neves) com seu encantador livreto de literatura de cordel, sendo acolhido carinhosamente por quem lhe concedera os primeiros ensinamos sobre cordel, o experiente mestre cordelista José Walter. O cordelista em questão é o irmão do genial musicista Antônio Carlos Moraes Pires, o nosso saudoso baiano de Ituaçu Moraes Moreira, membros fundador dos Novos Baianos e defensor árduo do papel e do legado do movimento musical Tropicália, fundando em 1967 por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Davi Neves não é somente um autor precoce com uma audaciosa verve da escrita autoral do gênero literário popular, mas também é o mais novo cordelista a escrever no começo da adolescência. Seus versos embalados pela rima cordelista, inspirados pelas canções do pernambucano de Petrolina Geraldo Azevedo, deram origem ao folheto como o seu primeiro trabalho escrito autoral com direito a declamar no palco alternativo da Fliconquista alguns decassílabos, sob os olhares com expectativas da plateia e entrevista da TV Sudoeste. Depois dessa experiência, Dadá Neves se tornou o mais novo escritor a integrar a feira literária.

A bem da verdade, a poética de Davi Neves tem a simbologia da água saborizadamente nordestina escondida no caule do vistoso Cacto Mandacaru nordestino. Um guardião do líquido precioso da crítica tão ausente no planeta, antes de padecer a humanidade sua poética injeta o antídoto contra o esquecimento existência da cultura no mundo. E o faz utilizando-se dos espinhos da crítica literária cordelista para enfrentar sem tergiversar a distopia e a ignorância que leva ao colapso do mundo.

 Se atacado, Davi Neves se defende magistralmente contra-atacando com seus acúleos ideológicos pontiagudos da crítica social. Um broto promissor no sudoeste da Bahia, na entrada do portal do semiárido baiano, contrapondo ao oásis da indústria da cultura de massificação. Como meu saudoso pai bem dizia (embora o golpe de 2016 tenha servido para escancarar as fragilidades ideológicas e intelectuais do mundo cultural), “espinho que fura já nasce com ponta”, devo concordar que nesse caso em particular, esse noviço espinho poético de verve crítica já nasceu com ponta afiadíssima.

Nesse sentido, admito que nada poderá ser tão pior ao conquistense, quanto ao atual momento de distopia cultural da população promovido pela ineficiente (ou ausência) política municipal de cultura de Vitória da Conquista. Ressalte-se que esse lugar de autoridade da cultura conquistense foi ocupado recentemente por um notável compositor e cantor brasileiro, que infelizmente nada pode fazer porque jamais discutiu uma vírgula se quer de política pública de cultura. Sem protagonismo algum no combate desse cenário de horror fascista das distopias.

A distopia mata e contra isso, a rica e extensa programação da feira da Fliconquista, sobretudo a narrativa poética autoral de Dadá Neves e a inigualável voz da deusa do ébano, Zezé Motta, nos mantém vivos. Obviamente, que faço menção a atriz gigante inesquecível da dramaturgia brasileira e a inconfundível interprete musical, a musa negra Zezé Motta. Quantos “suspiros dobrados” o público em clímax exclamou ao ouvir a denúncia crítica antirracista da militante do Movimento Negro Brasileiro, vibrou com a admirável performance de palco e a cantou com a interpretação única de uma playlist riquíssima da Música popular Brasileira (MPB).

Li boquiaberto os versos de cordel de Dadá Neves, a genialidade poética desse garoto me fez ficar maturando uma justificativa plausível que pudesse explicar àquela sentimentalidade. Meu cérebro entrou em êxtase, meu peito disparou batidas aceleradas, causando a inturgescência vascular que levou meu corpo estremecer. Talvez, naquele exato momento eu tivesse apreendido o real significado daquela metáfora de Caetano Veloso, “pletora de alegrai no show de Jorge Benjor”.

Não tem porque perguntar de onde conhecia o garoto prodígio. Conheci a matriz genética de Davi Neves e soube desse desejável rebento desde que era apenas um projeto em construção de Ser Humano no ventre da mamãe Fabiana Neves. Aliás, Bia Neves sempre foi esse tipo de ser humano admirável preocupada com o processo de formação moral, intelectual e cultural de suas crias.

Com o papai Marcelo Neves, um intelectual, militante combativo e professor também não foi diferente, pois, os dois se complementam. Ambos sincronizaram energias criativas, inteligência, dedicação e comprometimento nesse processo. Por vezes, vi Marcelo Neves lacrimejar os olhos de contentamento por causa de Davi e Bianca, isso não exclui o indefectível Gustavo, o grande Guga, meu colega economista.

Dadá Neves não é somente o mais jovem da tríade, mas também o mais novo conquistense a participar com obra autoral da Fliconquista. Ouvi-lo é um grande estímulo para qualquer pessoa, inegavelmente escrever o seu primeiro cordel é gratificante e estimulador. Enfrentar as câmeras, o público, o microfone e os olhares mais atentos da plateia sem hesitar é simplesmente prodigioso.

Noutro extremo, um deslumbre, a encantadora matriarca da música negra brasileira de resistência, Zezé Motta. Possivelmente, uma das mais cortejadas atrizes negras do Brasil. Ali pertinho de você, esbanjando simpatia, negritude e empoderamento feminino como se estivesse cantando exclusivamente para seu deleite. Tudo ao seu alcance.

Indiscutivelmente, a Feira Literária de Vitória da Conquista disse a que veio. Nessa primeira edição do Fliconquista, qualquer pessoa que desejasse conhecer as instalações, assistir a um espetáculo, ver uma exposição em cartaz de artista plástico, comprar livros, blusas, cordel, ou acessar a qualquer outra opção em exposição, poderia fazê-lo. Um público, relativamente grande em Vitória da Conquista, atendeu ao chamado do evento artístico- cultural.

A sociedade brasileira ainda carrega traumas indeléveis do golpe fascista no Brasil, por isso, a todo instante estamos ligados com essa gente culturalmente ignorante e intelectualmente estúpida. Surpreendentemente, havia muita gente circulando livremente como transeunte por todo circuito cultural sem nenhuma problema porque jamais se correria algum risco de ser abordado pela infame descaracterização da bandeira do Brasil (àquela defraudada para fins escusos), sem ataques fascistóide, sem gesto de arminha, sem motociata, sem símbolo da suástica, sem firulas, sem deboches racistas de caráter étnico-raciais ou ofensivas às populações lgbtqiapn+ e, obviamente, sem super-cachê para financiar o movimento do submundo agroboy.

A feira literária parece ter superado a tese da mentalidade e da lógica de promover cultura na Bahia anterior ao surgimento da feira. Não apenas nega peremptoriamente à antítese nesse curto lapso temporal (não menos virulento) sob a égide fascista da extrema-direita, como promove a síntese do poderá ser o devir cultural. Surge de modo potente como uma nova quadra da história que sinaliza na direção da superação e substituição do vitupério dos tempos sombrios do “rei mal coroado”.

Não se iluda, a Fliconquista assinala tempos alvissareiros. Quiçá uma época de intensa insubordinação cultural (classe, raça e gênero) capaz de insurgir-se politicamente contra o establishment reacionário conquistense. Infelizmente existe uma branquitude ordinária, sem estofo intelectual e parasita que se comporta arrogantemente como se fosse uma espécie de elite social, econômica e política do município.

Por isso, não deixa de ser um acinte ver a nossa intelligentsia de esquerda, oprimida, explorada, expropriada, asfixiada e circunscrita por imposição do capital (rigidamente controlado pela ordem civil burguesa) ao labor para a sua subsistência. Contudo, fala-se em tempos alvissareiros, àqueles em que acessávamos as múltiplas formas de expressão da arte marginalizada, uma alavanca que atiçava a consciência crítica das pessoas com essas atividades organizadas por uma despretensiosa vanguarda intelectual e artística de esquerda de nosso município.

Talvez, a Fliconquista seja essa feira que poderá ocupar esse vazio existencial de nosso tempo deixado pela mediatização das relações de troca, principalmente quando direciona seus holofotes sobre essa nossa gente marginalizada e subsumida pela alienação promovida pela ideologia burguesa como crença.  Nesse sentido, a Fliconquista poderá se tornar nos anos vindouros na melhor opção de escolha artístico-cultural para humanizar e fortalecer a luta pela emancipação humana. É o que eu realmente desejo!


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