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sábado, 22 de julho de 2023

O consagrado SUS e os deserdados do sistema provenientes da periferia conquistense


"(...) nenhum paciente que acessar o serviço de Urgência e Emergência poderá ficar sem atendimento. Muito menos ser dispensado ou encaminhando a outra unidade de saúde, nem mesmo por outro médico, “sob nenhuma justificativa.”

 

*por Herberson Sonkha

 

Os serviços de Saúde pública não chegam à periferia de Vitória da Conquista como preconiza o Sistema Único de Saúde (SUS). Se for exame urgente dura uma eternidade. Se for uma consulta também urgente só é autorizada depois que o paciente vai a óbito. Se chegar enfermo à beira da morte na porta do Pronto Socorro só será atendido se for para encaminhar ao IML para atestar o óbito.

Tente se colocar no lugar de quem vive na periferia e tente acessar tais serviços e descobrirá o quão difícil é essa via-crúcis. Alguns dirão que estou blefando, mas a verdade é que desafortunadamente isso tem pouca ou nenhuma relevância para a gestão (pública ou privada) porque não quer dizer absolutamente nada. Ninguém vai preso em Vitória da Conquista sem direito a fiança por negligencia médica ou administrativa. Infelizmente, quem morre é que perde a vida!

Entretanto, se a mesma situação ocorresse com alguma pessoa trabalhadora pouco instruída, provavelmente seria presa ou demitida por justa causa. Esse é o Brasil, um país que não é para amadores. Ser uma pessoa branca, ter dinheiro e conhecimento no Brasil faz toda a diferença, principalmente na hora de acessar o atendimento no sistema de saúde público ou privado. Essa gente sempre sabe acionar o sistema para que funcione adequadamente. O sistema do capital é bruto!

A verdade é que não importa como chamamos o sistema, pois, o que conta mesmo quando uma pessoa da periferia chega adoentada na porta do hospital público ou credenciado ao SUS é que as engrenagens não fazem realmente o sistema funcionar adequadamente como está previsto. Neste caso, se funcionasse significaria que a pessoa da periferia seria atendida em conformidade com o que preconiza o sistema de saúde pública do país. Mas, essa parece não ser a finalidade sistêmica.

A finalidade do conjunto de serviços públicos de saúde é fazer funcionar para oferecer a atenção à saúde para a população da periferia, seu maior público e a principal razão para existência do Sistema Único de Saúde (SUS). É para isso que o SUS constrói esses diversos “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde”, de modo que possa se apropriar de tecnologias e integrá-las ao sistema de apoio técnico, logístico e de gestão visando a integralidade do cuidado.

O pouco que conheço das diretrizes do nosso imprescindível e indispensável Sistema Única de Saúde (SUS) vem de minha participação no combativo Conselho Municipal de Saúde. Contudo, quando se trabalha em cargo administrativo de um grande e referenciado hospital público, como o Hospital de Base de Vitória da Conquista, se conhece na prática os “arranjos organizativos” para oferecer ações e serviços de saúde à população, sabe como funciona os bastidores de qualquer pronto-socorro porque a matriz da arquitetura de atendimento é a mesma: o SUS.

Isso lhe permite saber quais, quando e onde estão os gargalos que causam interrupções (por negligencia ou sabotagem) no fluxo de atendimento, pois a quebra é imediatamente percebida. Essa racionalidade é absolutamente compreensiva, contudo a experiência vivenciada na porta do Pronto Atendimento é algo deprimente que degrada a dignidade da pessoa humana.

Passei recentemente por esse flagelo e foi angustiante, pois além de minha situação de desconforto pessoal por causa da dor e das incertezas do acolhimento de quem busca ser atendido em um hospital público, sentir a dor (física e moral) das outras pessoas. Essa situação causa asco porque como militante irredutível na defesa do SUS, isso aumenta exponencialmente ao participar da dor, da desesperança, da frustração e da angustia de quem mora na periferia da cidade e procura com certa urgência o atendimento público de saúde em Vitória da Conquista.

Existem vários gargalos que são verdadeiras doenças crônicas que destroem o tecido social da rede de atenção à saúde de modo quase incurável que tornam a vida da população periférica conquistense uma verdadeira via-crúcis. Uma boa parte desses gargalos estão na gestão municipal e são pertinentes ao fluxo da Atenção Primária. A minha via-crúcis aconteceu há uns três dias atrás (18), exatamente depois de meio dia, quando comecei a sentir uma dor na parte frontal da cabeça que se tornou um incômodo, intensificado pelos espirros e uma tosse que não era seca e nem tinha muco. Uma sensação de gastura de algo que estava aranhando a garganta. Depois de chegar do trabalho por volta das 19 horas, os sintomas persistiam e eu fiz uso de Dipirona que teve efeito de alivio imediato.

Como na canção de Humberto Gessinger, da banda Engenheiros do Hawaii, esperei “Que a noite traga/Alívio imediato”, mas infelizmente não foi bem isso que aconteceu, a madrugada foi tensa com a sensação de asfixia e a dor ficou mais intensa. No dia seguinte, passei a manhã toda deitado, desencorajado, e, com uma “murrinha” no corpo. Além dos sintomas já descritos, tive febre a tarde. Então, me dei conta da gravidade do que estava acontecendo comigo e pedi ajuda a minha companheira Gabrielle (que já havia me advertido sobre a necessidade de irmos ao hospital) e decidir ir à Unidade de Pronto Atendimento – UPA.

Para minha surpresa não tinha tanta gente na UPA e nem demorei tanto assim na sala de recepção. Depois de algum tempo aguardando, dentro do esperado, fui chamado à sala de Acolhimento (Classificação e Risco) e três funcionários realizaram o procedimento de classificação e risco. Uma enfermeira e dois técnicos de enfermagem no movimento de divisão social do trabalho realizaram sincronicamente os procedimentos de abordagem, a aferição e as anotações.

Apesar do olhar indiferente do técnico que causou em nós estranhamento, ao aferir meus sinais vitais inicialmente, à medida em que era reconhecido pela enfermeira pareceu-lhe conveniente a mudança no olhar. Não obstante, ser contraditório porque o olhar de acolhimento a qualquer paciente deve ser incondicional, pois normalmente a enfermagem consegue discernir isso no estado de adoecimento. A doença deixa qualquer pessoa mais fragilizada, principalmente quando se trata de perfis socioeconomicamente mais vulneráveis. Normalmente se procura no profissional um amparo e suporte no sentido de lhe mostrar que o atendimento é a possibilidade de aliviar a sua dor.

Saudamos a enfermagem por esse papel maravilhosamente indispensável! A enfermagem é uma profissão fundamental e muitas vezes pouco compreendida, a enfermagem deve aplicar a metodologia na assistência ao paciente, pois está dotada do instrumental cientifico para desempenhar o seu trabalho. Por isso, considero importante realizar no acolhimento a anamnese. É essencial, enfim, a enfermagem deve realizar essa parte da prática clínica com a finalidade de relembrar o paciente certos acontecimentos relacionados à saúde para dar suporte ao atendimento com a identificação de sintomas e sinais atuais. É preciso fazer entender com maior precisão possível o histórico que leva toda e qualquer pessoa ao pronto atendimento. Afinal ninguém vai passear num Pronto Socorro.

Procedeu a aferição da pressão arterial (PA) e com o oxímetro verificou o nível de saturação, ambos interconectados ao monitor, uma plataforma de monitoramento simultâneo. Antes que houvesse a conclusão e eu fosse informado sobre os sinais, sem maiores avaliações sobre os níveis dos meus sinais vitais, entregou-me um papel timbrado com a logo do Governo do Estado da Bahia do lado esquerda e da UPA do lado direito, impresso em meia página, dizendo-me que a UPA estava em reforma e, por isso, estava priorizando atendimento amarelo (urgência) e vermelho (emergência).

Segundo o que apontava aquela anamnese (comprometida ou pouco profissional porque não identificou que eu era um paciente com uma PA alta de 16X14) eu era um paciente sem maiores riscos, por isso fui classificado pela cor verde (pouco urgente), não o azul (não urgente). Portanto, poderia ser atendido em uma outra unidade para onde estava sendo realocada aquela demanda pelos serviços de Pronto Socorro, orientando-me para que fosse a um dos hospitais: a Unimec ou ao São Vicente.

Esse tipo de realocação de atendimento não deveria ser comum na rede de saúde pública, pois a Gestão da Unidade de Pronto Atendimento passou a existir para distribuir a sobre carga da rede regional (Sudoeste), evitando o excesso de atendimento do Hospital de Base. Para isso que serve estatística e planejamento de gestão da Região Sudoestes da Bahia, especialmente porque pode prevê qualquer tipo de contingenciamento, redirecionando seus pacientes ao Pronto Socorro do próprio Hospital de Base (HGVC).

Neste caso, não foi o que aconteceu e todos os pacientes foram expostos às condições de sobrecarga na rede em função de uma reforma (planejada?), embora não houvesse nenhum relato de interdição por causa de riscos de contagio gravíssimo. Um bom exemplo dessa situação revela que causou mais dor e agravamento do quadro de adoecimento de uma paciente, uma mulher negra jovem, com quadro clinico de Pielonefrite, uma infecção viral nos rins que lhe causava intensa dor, profundo desconforto e mal-estar desde as 17 horas, mas só foi atendida às 22:30.

Mesmo assim, não lhe prescreveram nenhuma medicação para aliviar a dor e o desconforto, apenas lhe mandar embora às 23:30. Não quero nem discutir as consequências desastrosas ou até mesmo letais para aquela jovem senhora, caso aconteça a generalização da infecção renal. 

Não se pode negar atendimento, sob nenhuma hipótese porque é obrigatório em qualquer Pronto Socorro ou Pronto Atendimento, vedada a realocação, sobretudo quando a mesma acontece sem a presença médica. Esse procedimento de risco é questionável à luz do Conselho Federal de Medicina. Saímos da UPA com meia folha de papel oficio, xerocopiada e não tinha nenhuma assinatura que o tornasse um documento institucional.

A impressão informava apenas que a UPA estava em reforma e, por esse motivo, o impresso teria a finalidade de informar a população que havia suspensão de atendimento para classificação verde e azul. Dizia de maneira expressão (atenção) que a medida de suspensão estava amparada no Ofício 175/2023 expedido pela Direção Geral e pela Portaria Interna 11/2023.

Peça vênia, mas não é legal e humanizado burlar uma Portaria do Conselho Federal de Medicina que obriga atendimento, usando um documento institucional para coagir a alguém com intensa dor a aceitar a via-crúcis de ficar correndo entre hospitais. Citar um Ofício ou uma Portaria Interna que ninguém viu apenas pela força institucional. 

O título informava que se tratava de “FICHA DE ENCAMINHAMENTO PARA UNIDADE BÁSICA OU DE REFERÊNCIA”. Mas, qual ficha? Nenhum formulário com dados cadastrais fora entregue a qualquer paciente. Apenas um pequeno texto, no qual haviam dois parênteses a ser marcado, verde ou azul, confirmado que o atendimento deveria ser realizado na Atenção Primária ou de Referência. Com destaque da mensagem com a seguinte afirmativa: “Não foi observado instabilidade clinica que demande atendimento de urgência”.

Assim como eu, dezenas de pessoas foram dispensadas pela enfermagem, contrariando preceitos legais, sem sequer saber se essas pessoas tinham qualquer condição para se deslocarem até os hospitais sugeridos. Ignorou-se o perfil socioeconômico da população que acessa esse serviço público diariamente. Sobre isso, a RESOLUÇÃO CFM nº 2.077/14 do Conselho Federal de Medicina é inexorável em seu Art. 3º ao afirmar peremptoriamente que nenhum paciente que acessar o serviço de Urgência e Emergência poderá ficar sem atendimento. Muito menos ser dispensado ou encaminhando a outra unidade de saúde, nem mesmo por outro médico, “sob nenhuma justificativa”.

A via-crúcis se estendeu ao deslocar-me até o hospital Unimec por volta das 17:50, quando me deparei com um hospital superlotado com gente sem atendimento desde as 09 horas da manhã e o funcionário da recepção informou-nos imediatamente que havia suspendido a realização de preenchimento de ficha de atendimento no Pronto Socorro porque devido à sobrecarga e isso incluía as pessoas de 09 horas da manhã sem atendimento.

O Art. 4º dessa mesma resolução diz que o Hospital de Urgência e Emergência deve determinar a forma adequada do sistema de fluxos para pacientes, não obstante determinar normas que quantifique adequadamente a equipe médica para não ficar sem atendimento como menciona o Art. 3º da mesma.

O sistema só funciona adequadamente se a Gestão Hospital adotar todas as medidas que determinam seu funcionamento, pois as condições materiais, profissionais e estruturais são insubstituíveis. O Art. 5º diz também que é necessário a presença do médico coordenador de fluxo dos Serviços Hospitalares de Urgência e Emergências em qualquer unidade com mais de 50.000 atendimentos/ano no setor. Só o município de Vitória da Conquista possui 370.868 habitantes (IBGE, 2022), portanto dispensa qualquer explicação sobre a necessidade.

Dado a superlotação do Unimec, minha companheira redirecionou-nos ao hospital São Vicente, onde ela fez a ficha de atendimento e realizou-se o acolhimento e definiu-se a classificação e risco. Ao contrário da UPA, que realizou o procedimento com três pessoas na sala de classificação e nenhuma informação fora dada, no Hospital São Vicente um único enfermeiro fez o acolhimento e identificou que estava com a PA de 16 por 14, altíssima. Imediatamente fui reclassificado com amarelo e atendido.

No entanto, minha companheira ficou profundamente afetada e insurrecionada com a estrutura disponível no Pronto Socorro para acomodar do lado de fora quem aguardava o atendimento. Apenas 10 cadeiras e um minúsculo espaço interno, e na área externa um banco de madeira com 5 lugares e a degradante calçada como refúgio para quem procura atendimento do SUS.

Os relatos de quem aguardava há mais de 13 horas (corresponde a três jornadas de trabalho) pelo atendimento é deprimente e humilhante. Pessoas diziam que a dor havia passado, mas não poderia ir para casa porque precisava do Atestado Médico. Na verdade, eram pessoas que aguardavam atendimento da classificação verde e tinham que entregar o atestado na empresa, pois não levar significava desconto do salário mínimo. Talvez, esse desconto não faça a menor falta a quem ganha acima de três salários mínimos, mas para mulheres e homens que trabalham na linha de produção da DAS, esse desconto faz muita falta sim.


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