Translate
Seguidores
Cartas ao povo...
*por Josafá Santos
Em momentos de ataques à Democracia, à liberdade dos povos, à Liberdade de Expressão, aos Direitos Humanos, ao Estado de Direto, ou em momentos onde o povo se rebela contra tiranias, é comum textos, cartas, manifestos, serem produzidos e lidos, tornados públicos e eternizados. Mais que um simples gesto, isso tem um peso que ultrapassa o simbolismo. Faz justamente tirar do mundo das ideias, do mundo simbólico, essa ideia, estruturá-la em forma de pensamento, de pensamento fazê-la verbo e, fazer desse verbo, uma CONSTRUÇÃO MATERIALIZADA. Materializada, torná-la então ato continuo, práxis, caminho a seguir, agindo segunda ela.
Em 1977, em pleno Regime Militar, o jurista Godofredo Guedes escreve a “Carta Pela Democracia”, documento que ficou marcado na História do nosso país como um manifesto pela reabertura política, já que, em 31 de março de 1964, uma junta militar havia aplicado um golpe e aqui instalado uma ditadura, a endurecendo ainda mais em 1968. O documento atravessou gerações, completou hoje, no dia 11 de agosto de 2022, Dia do Estudante, exatos 45 anos, inspirando um novo texto, uma nova carta-manifesto, novamente em resposta a um novo ataque, a um nova série de ameaças ao Estado de Direito, por parte das mesmas hienas de plantão, atemporais como são todos os chacais e suas crias. “A cadela do Fascismo está sempre no cio”, como nos disse Bertolt Brecht.
Entre agosto e setembro de 2018, estávamos às vésperas da
eleições presidenciais. O clima era tenso para onde se olhasse, onde se pusesse
os pés. Uma onda de mentiras havia varrido o país, a internet havia sido
transformada num inferno, um terreno fértil de inverdades que se espalhavam
como um vírus, envenenando as relações sociais em todas as esferas, desde o
núcleos mais básicos, das famílias às instituições, fossem elas pequenas,
médias ou de grande porte, públicas ou privadas. Não foi diferente nos
ambientes educacionais; das escolas de ensino Básico às universidades, o mesmo
clima de animosidade. Sou Professor; a partir daqui, me detenho a falar do MEU
chão de fábrica.
Nessa “fatia” social que é o mundo acadêmico,
encontraríamos (e ainda encontramos) os mesmos elementos do “resto do bolo
social”. Sujeitos que se posicionavam contrários à possível eleição de um grupo
abertamente oposto a TUDO que represente uma democracia e sujeitos que aberta
ou dissimuladamente apoiavam justamente esse mesmo grupo, trabalhavam e
sentavam-se lado a lado. A escola funciona como uma das poucas instituições
onde o trabalhador e o “produto” trabalhado são também seres humanos. No caso
específico da “fábrica” onde sou operário, trabalhamos com jovens pré e
adolescentes, sujeitos claramente identificados como ainda em formação,
especialmente com relação à suas convicções e ideias sócio politicas. Em meio
ao clima desequilibrante daquele momento, começamos a perceber pelos corredores
e já nas salas de aula mesmo, uma série de manifestações, por parte de alguns
estudantes mais afetados, ações e comportamentos completamente inadequados,
inaceitáveis em qualquer espaço ou tempo. Falas e atos racistas, homofóbicos,
misóginos, extremistas, começavam a se tornar frequentes e a ganhar força a
cada dia. Algo se fazia urgente, no intuito de se barrar, educacionalmente, o
que já estávamos vendo como um aviso de perigo, ou mesmo como algo que já havia
ultrapassado o conceito de “aviso”. Em tempo, registro que falas de cunho
similar, também já se ouviam, nem tão murmurosamente, entre educadores.
Eis que certo dia, durante o intervalo, fechei a porta da
sala dos professores, pedi silêncio e a atenção dos presentes. Relatei que
tanto eu quanto outros colegas já estávamos ficando preocupados com os relatos
que nos chegavam, a cada dia, sobre os eventos que descrevi acima. Sugeri um
ato, uma atitude simples e prática para tratarmos a questão. Sugeri que
fizéssemos um banner, de quatro metros por um, e que o fixássemos no pátio da
escola, onde todos os estudantes e demais frequentadores daquela Unidade de
Ensino claramente o veriam ao chegar, ao frequentar e ao sair. Em tal banner,
uma espécie de “carta-manifesto”, onde o corpo docente daquela escola estaria
ABERTA E DIRETAMENTE se posicionando sobre o momento político e seus
desdobramentos no campo social.
Alguns olhares se arregalaram. Antes que alguém me dissesse
que “não poderíamos, em hipótese alguma, tomar partido de A ou B, dentro da
escola”, me expliquei. Sugeri que nos posicionássemos PÚBLICA E ABERTAMENTE a
favor do ARTIGO V DA CONSTITUIÇÃO DE 1988, que seria descrito no tal banner.
Expliquei que estaríamos nos posicionando a favor DA DEMOCRACIA, DA LIBERDADE
DE EXPRESSÃO, DO ESTADO LAICO, DO ESTADO DE DIREITO. Que também ficasse
registrado o nosso completo DESACORDO com qualquer ato ou fala ou manifestação,
de preconceito de qualquer ordem, como racismo, homofobia, misoginia, preconceito
social, religioso, de quem quer que fosse. Frisei que não faríamos qualquer
menção de defesa ou de ataque a qualquer candidato ou partido. Reforcei que a
ideia seria um REGISTRO MATERIAL do nosso posicionamento enquanto educadores
(as), sobre uma questão, sobre um Artigo Constitucional, que tratava
diretamente sobre os pilares de um Estado de Direito. Encerrei a minha fala,
minha ideia, frisando que tal gesto, simples e prático, serviria como uma
referência aos estudantes, sobre algo tão basilar quanto o respeito a um
convívio social civilizado em suas básicas aplicações. Confesso que, conhecendo
a “fábrica” onde trabalho, não esperava efusivos aplausos de todos. Mas o que
veio foi pior.
Com exceção de três únicos professores presentes naquele
momento, que se posicionaram a favor da ideia, o que se seguiu foi um silêncio,
longo, incômodo e frio. Os colegas se olhavam, olhavam para o teto, para o
chão, para o celular, para os desenhos da toalha da mesa, paras as próprias
unhas, para o relógio, do pulso ou da parede. Por fim, dois colegas se
manifestaram: um, questionando “se tal ato seria prudente, ou mesmo legal (do
ponto de vista jurídico mesmo), se aquilo não seria estar nos posicionando
politicamente a favor de um das correntes em disputa presidencial naquela
eleição”; outra colega questionou se produzir esse banner surtiria efeito,
especialmente citando palavras tão difíceis como “Estado de Direito, misoginia,
etc...”.
Até me preparei para um debate, para novas explicações,
pois pensei que poderia ter dito algo de difícil compreensão, mas de imediato
me lembrei de ONDE estava e a QUEM me dirigia: estava em uma Escola, e diante
de pessoas que haviam passado anos por universidades e que eram profissionais
da educação. Me lembrei do “bolo social” fora da escola, me vi diante de uma de
suas “fatias”. Não houve continuidade da discussão, pois tanto metade do grupo
já estava se levantando e se retirando, e por que eu também já havia retirado a
minha proposta, diante da óbvia resposta que recebi.
Dois meses depois, ocorreram as eleições e, quatro anos
depois, aqui estamos nós. Não vou relatar o inferno que atravessamos. Os
jornais já nos fizeram e fazem isso todos os dias. Ao menos os sérios. Não
acredito, claro, que aquele simples banner, exposto no pátio de uma Escola,
quatro anos atrás, mudaria o rumo das urnas, os nossos dias desde então, o
nosso mundo de hoje. Mas também acredito que em muitas outras escolas e demais
instituições outros tantos “eus” da vida tentaram o mesmo ato quixotesco, com
os exatos mesmos resultados.
2022. 11 de agosto, Dia do Estudante. Em cerimônia efetuada
na USP, uma nova Carta Pela Democracia e pelo Estado de Direito, assinada por
mais de uma centena de entidades civis, partidos políticos e por mais de UM
MILHÃO DE CIDADÃOS é lida ao vivo e em ato continuo é lida conjuntamente em
todas as capitais e em diversas cidades pelo país. Vemos, uma vez mais, um ato
que traz algo do mundo simbólico para o mundo real, que promove a manifestação
material de uma ideia. Um ato que solidifica mais uma vez, o aviso de muitos
que fincam, PÚBLICA E ABERTAMENTE, o seu posicionamento contra todo tipo de
ameaça à LIBERDADE, ao nosso POVO, à nossa CIVILIZAÇÃO. É um claro aviso que
estamos do lado OPOSTO aos dos chacais, das hienas, das cadelas fascistas no
seu eterno cio, demônios que são.
A pergunta que não consigo calar, que não consigo NÃO
fazer, por mais que a prudência me cutuque, é: Se eu fizer essa proposta, hoje,
aqui, nesse ambiente, propondo aquele mesmo banner gigante, dentro ou mesmo nos
muros de fora da minha, da nossa escola, com os exatos mesmos dizeres... qual
seria a resposta?
*Josafá Santos
Historiador, Grdn. em Psicologia.
Vit. Da Conquista, BA
11 de agosto de 2022, Dia do Estudante.
0 comments :
Postar um comentário