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sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Cartas ao povo...

*por Josafá Santos

 

Em momentos de ataques à Democracia, à liberdade dos povos, à Liberdade de Expressão, aos Direitos Humanos, ao Estado de Direto, ou em momentos onde o povo se rebela contra tiranias, é comum textos, cartas, manifestos, serem produzidos e lidos, tornados públicos e eternizados. Mais que um simples gesto, isso tem um peso que ultrapassa o simbolismo. Faz justamente tirar do mundo das ideias, do mundo simbólico, essa ideia, estruturá-la em forma de pensamento, de pensamento fazê-la verbo e, fazer desse verbo, uma CONSTRUÇÃO MATERIALIZADA. Materializada, torná-la então ato continuo, práxis, caminho a seguir, agindo segunda ela.

Em 1977, em pleno Regime Militar, o jurista Godofredo Guedes escreve a “Carta Pela Democracia”, documento que ficou marcado na História do nosso país como um manifesto pela reabertura política, já que, em 31 de março de 1964, uma junta militar havia aplicado um golpe e aqui instalado uma ditadura, a endurecendo ainda mais em 1968. O documento atravessou gerações, completou hoje, no dia 11 de agosto de 2022,  Dia do Estudante, exatos 45 anos, inspirando um novo texto, uma nova carta-manifesto, novamente em resposta a um novo ataque, a um nova série de ameaças ao Estado de Direito, por parte das mesmas hienas de plantão, atemporais como são todos os chacais e suas crias. “A cadela do Fascismo está sempre no cio”, como nos disse Bertolt Brecht. 

Entre agosto e setembro de 2018, estávamos às vésperas da eleições presidenciais. O clima era tenso para onde se olhasse, onde se pusesse os pés. Uma onda de mentiras havia varrido o país, a internet havia sido transformada num inferno, um terreno fértil de inverdades que se espalhavam como um vírus, envenenando as relações sociais em todas as esferas, desde o núcleos mais básicos, das famílias às instituições, fossem elas pequenas, médias ou de grande porte, públicas ou privadas. Não foi diferente nos ambientes educacionais; das escolas de ensino Básico às universidades, o mesmo clima de animosidade. Sou Professor; a partir daqui, me detenho a falar do MEU chão de fábrica.

Nessa “fatia” social que é o mundo acadêmico, encontraríamos (e ainda encontramos) os mesmos elementos do “resto do bolo social”. Sujeitos que se posicionavam contrários à possível eleição de um grupo abertamente oposto a TUDO que represente uma democracia e sujeitos que aberta ou dissimuladamente apoiavam justamente esse mesmo grupo, trabalhavam e sentavam-se lado a lado. A escola funciona como uma das poucas instituições onde o trabalhador e o “produto” trabalhado são também seres humanos. No caso específico da “fábrica” onde sou operário, trabalhamos com jovens pré e adolescentes, sujeitos claramente identificados como ainda em formação, especialmente com relação à suas convicções e ideias sócio politicas. Em meio ao clima desequilibrante daquele momento, começamos a perceber pelos corredores e já nas salas de aula mesmo, uma série de manifestações, por parte de alguns estudantes mais afetados, ações e comportamentos completamente inadequados, inaceitáveis em qualquer espaço ou tempo. Falas e atos racistas, homofóbicos, misóginos, extremistas, começavam a se tornar frequentes e a ganhar força a cada dia. Algo se fazia urgente, no intuito de se barrar, educacionalmente, o que já estávamos vendo como um aviso de perigo, ou mesmo como algo que já havia ultrapassado o conceito de “aviso”. Em tempo, registro que falas de cunho similar, também já se ouviam, nem tão murmurosamente, entre educadores.

Eis que certo dia, durante o intervalo, fechei a porta da sala dos professores, pedi silêncio e a atenção dos presentes. Relatei que tanto eu quanto outros colegas já estávamos ficando preocupados com os relatos que nos chegavam, a cada dia, sobre os eventos que descrevi acima. Sugeri um ato, uma atitude simples e prática para tratarmos a questão. Sugeri que fizéssemos um banner, de quatro metros por um, e que o fixássemos no pátio da escola, onde todos os estudantes e demais frequentadores daquela Unidade de Ensino claramente o veriam ao chegar, ao frequentar e ao sair. Em tal banner, uma espécie de “carta-manifesto”, onde o corpo docente daquela escola estaria ABERTA E DIRETAMENTE se posicionando sobre o momento político e seus desdobramentos no campo social.

Alguns olhares se arregalaram. Antes que alguém me dissesse que “não poderíamos, em hipótese alguma, tomar partido de A ou B, dentro da escola”, me expliquei. Sugeri que nos posicionássemos PÚBLICA E ABERTAMENTE a favor do ARTIGO V DA CONSTITUIÇÃO DE 1988, que seria descrito no tal banner. Expliquei que estaríamos nos posicionando a favor DA DEMOCRACIA, DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DO ESTADO LAICO, DO ESTADO DE DIREITO. Que também ficasse registrado o nosso completo DESACORDO com qualquer ato ou fala ou manifestação, de preconceito de qualquer ordem, como racismo, homofobia, misoginia, preconceito social, religioso, de quem quer que fosse. Frisei que não faríamos qualquer menção de defesa ou de ataque a qualquer candidato ou partido. Reforcei que a ideia seria um REGISTRO MATERIAL do nosso posicionamento enquanto educadores (as), sobre uma questão, sobre um Artigo Constitucional, que tratava diretamente sobre os pilares de um Estado de Direito. Encerrei a minha fala, minha ideia, frisando que tal gesto, simples e prático, serviria como uma referência aos estudantes, sobre algo tão basilar quanto o respeito a um convívio social civilizado em suas básicas aplicações. Confesso que, conhecendo a “fábrica” onde trabalho, não esperava efusivos aplausos de todos. Mas o que veio foi pior.

Com exceção de três únicos professores presentes naquele momento, que se posicionaram a favor da ideia, o que se seguiu foi um silêncio, longo, incômodo e frio. Os colegas se olhavam, olhavam para o teto, para o chão, para o celular, para os desenhos da toalha da mesa, paras as próprias unhas, para o relógio, do pulso ou da parede. Por fim, dois colegas se manifestaram: um, questionando “se tal ato seria prudente, ou mesmo legal (do ponto de vista jurídico mesmo), se aquilo não seria estar nos posicionando politicamente a favor de um das correntes em disputa presidencial naquela eleição”; outra colega questionou se produzir esse banner surtiria efeito, especialmente citando palavras tão difíceis como “Estado de Direito, misoginia, etc...”.

Até me preparei para um debate, para novas explicações, pois pensei que poderia ter dito algo de difícil compreensão, mas de imediato me lembrei de ONDE estava e a QUEM me dirigia: estava em uma Escola, e diante de pessoas que haviam passado anos por universidades e que eram profissionais da educação. Me lembrei do “bolo social” fora da escola, me vi diante de uma de suas “fatias”. Não houve continuidade da discussão, pois tanto metade do grupo já estava se levantando e se retirando, e por que eu também já havia retirado a minha proposta, diante da óbvia resposta que recebi.

Dois meses depois, ocorreram as eleições e, quatro anos depois, aqui estamos nós. Não vou relatar o inferno que atravessamos. Os jornais já nos fizeram e fazem isso todos os dias. Ao menos os sérios. Não acredito, claro, que aquele simples banner, exposto no pátio de uma Escola, quatro anos atrás, mudaria o rumo das urnas, os nossos dias desde então, o nosso mundo de hoje. Mas também acredito que em muitas outras escolas e demais instituições outros tantos “eus” da vida tentaram o mesmo ato quixotesco, com os exatos mesmos resultados.

2022. 11 de agosto, Dia do Estudante. Em cerimônia efetuada na USP, uma nova Carta Pela Democracia e pelo Estado de Direito, assinada por mais de uma centena de entidades civis, partidos políticos e por mais de UM MILHÃO DE CIDADÃOS é lida ao vivo e em ato continuo é lida conjuntamente em todas as capitais e em diversas cidades pelo país. Vemos, uma vez mais, um ato que traz algo do mundo simbólico para o mundo real, que promove a manifestação material de uma ideia. Um ato que solidifica mais uma vez, o aviso de muitos que fincam, PÚBLICA E ABERTAMENTE, o seu posicionamento contra todo tipo de ameaça à LIBERDADE, ao nosso POVO, à nossa CIVILIZAÇÃO. É um claro aviso que estamos do lado OPOSTO aos dos chacais, das hienas, das cadelas fascistas no seu eterno cio, demônios que são.

A pergunta que não consigo calar, que não consigo NÃO fazer, por mais que a prudência me cutuque, é: Se eu fizer essa proposta, hoje, aqui, nesse ambiente, propondo aquele mesmo banner gigante, dentro ou mesmo nos muros de fora da minha, da nossa escola, com os exatos mesmos dizeres... qual seria a resposta?

 

*Josafá Santos
Historiador, Grdn. em Psicologia.
Vit. Da Conquista, BA
11 de agosto de 2022, Dia do Estudante.

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