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Nasce o Sol a 2 de Julho: Independência do Brasil na Bahia só foi possível graças à luta Negra
A Cabocla Catarina Paraguaçu esculpida por Manoel Inácio |
*por
Ademar Oliveira Cirne Filho
E
assim foi escrito!
Ademar Oliveira Cirne Filho |
Na manhã ensolarada de 2 de julho de 1823, quando se deu a independência do Brasil na Bahia (a independência do Brasil já havia sido proclamada no dia 7 de setembro de 1822), o alferes e poeta Ladislau dos Santos Titara (em epígrafe) saudava com seus versos os heróis da memorável e épica batalha de Pirajá, ocorrida em 8 de novembro de 1822, que representou a principal vitória das tropas brasileiras sobre as portuguesas, pois a conquista de Pirajá permitiu a entrada do exército nacional na cidade de Salvador, que estava sitiada pelo comandante em armas da Bahia, o português Inácio Luís Madeira de Melo.
Parecia destino traçado. Depois de mais de uma semana de fortes chuvas que insistiam em cair sobre a capital baiana, exatamente naquele dois de julho o sol nasceu como nunca se tinha visto. Era o astro rei dando os parabéns à vitória dos baianos e as boas-vindas às tropas de várias regiões que entravam triunfantemente pela estrada das boiadas, hoje Rua Lima e Silva, bairro da Liberdade, para expulsar as tropas portuguesas e concretizar definitivamente a independência do Brasil na Bahia.
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O
Primeiro Passo para a Independência da Bahia Artista: Antônio Parreiras |
Apesar
da batalha de Pirajá ter sido o momento fundamental para a vitória final dos
baianos, esta guerra frontal teve início muito antes, já que desde fevereiro de
1822, antes mesmo do grito do Ipiranga proferido pelo príncipe regente, D.
Pedro, já havia na Bahia o enfrentamento às tropas do português Madeira de
Melo, recém-nomeado Comandante em Armas da Província da Bahia. Foi neste
momento, portanto, que os verdadeiros heróis da libertação começaram a aparecer
no cenário da luta, que culminou no processo de libertação do Brasil das garras
de Portugal.
Um dos
motivos que agitava a população e os militares baianos pelos idos de 1822 era a
insatisfação com o novo comandante da província, fiel defensor das ideias
lusitanas. Com a intenção de impor a sua autoridade, Madeira de Melo resolveu
inspecionar as infantarias, que eram formadas na sua maioria por brasileiros,
atitude esta que deu início aos primeiros conflitos entre tropas brasileiras e
portuguesas no dia 19 de fevereiro de 1822.
O
Forte de São Pedro, bem como as localidades das Mercês, Avenida Sete de
Setembro, Praça da Piedade e Campo da Pólvora viraram verdadeiros campos de
guerra, onde de um lado estavam aqueles que pretendiam impor ainda mais o julgo
português ao Brasil e, do outro, aqueles que lutavam pela libertação do país.
Naquele mesmo dia, as tropas portuguesas invadiram o Convento da Lapa alegando
que existiam militares baianos escondidos no local. Na tentativa de proteger a
instituição religiosa e até mesmo os baianos que se encontravam no recinto, a
Abadessa Sóror Joana Angélica se pôs em frente à porta do Convento, impedindo a
entrada dos soldados portugueses e sendo atingida por um golpe de baioneta que
ocasionou sua morte um dia depois.
O mês
de março de 1822 foi marcado não apenas pela chegada de tropas portuguesas para
reforçar o exército do governador Inácio Luís Madeira de Melo, mas também pelo
deslocamento das tropas baianas para região do Recôncavo do Estado, no intuito
de organizar a resistência contra os lusitanos.
Nesse
diapasão, cidades como São Francisco, Santo Amaro e principalmente Cachoeira,
devido à sua situação econômica (ainda era um local de concentração de
proprietários de terras) e em função da sua localização geográfica estratégica,
tornaram-se vanguarda e, até hoje, preservam nas suas memórias a importância
desta luta.
A mais
importante batalha travada nesta região ocorreu em 25 de junho de 1822, quando
a Vila de Cachoeira foi bombardeada por marujos portugueses que dispararam
balas de canhão a partir de um navio ancorado no Rio Paraguaçu, enquanto os
vereadores cachoeiranos prestavam grande homenagem a D. Pedro, aclamando-o
príncipe regente perpétuo do Brasil e o povo, apoiando este ato, saía em marcha
pelas ruas da então Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira.
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Câmara Municipal de Cachoeira |
Após
quase três dias de confronto, aproveitando-se do conhecimento da região e
sabendo das dificuldades de manobras do navio no rio, os baianos tomaram o
barco e prenderam os portugueses, marcando assim o desligamento da Vila de Cachoeira
do domínio português.
Na
visão de muitos historiadores, esta passagem da história nacional retrata uma
independência que antecedeu ao 7 de setembro 1822, de D. Pedro. Pelos feitos
heroicos de seu povo, em 1837 a antiga vila foi elevada à categoria de cidade,
com a denominação de Heroica Cidade da Cachoeira.
Além
da já citada Joana Angélica, algumas outras pessoas atuaram de forma tão
marcante no processo de Independência da Bahia que são até hoje lembrados pelos
livros de história. Nomes como General Labatut, Corneteiro Lopes, Maria
Quitéria Barros Falcão, Joaquim José de Lima e Silva, João das Botas, não
deixaram de permear a memória dos brasileiros.
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Imagem do caboclo |
A
figura do Caboclo também está presente nas memórias e comemorações da
Independência da Bahia desde 1824, quando a população, para relembrar a entrada
do exército pacificador em Salvador, enfeitou uma carreta tomada do inimigo na
batalha de Pirajá, pôs sobre ela um velho de descendência indígena e a levou,
em cortejo, da Lapinha ao Terreiro de Jesus. O ritual se repetiu no ano
seguinte e, em 1826, foi esculpida a imagem do caboclo que circula nas ruas até
os dias de hoje. Alguns anos depois apareceria a imagem feminina da Cabocla
acompanhando o Caboclo.
Boa
parte da identificação popular dessas figuras reside no fato delas representar
os heróis que lutaram na Independência e que não são comumente lembrados: os
soldados esfarrapados, os batalhões de índios usando armas tribais, de negros
escravizados e libertos, os sertanejos, a população voluntária que se organizou
por conta própria em grupos para lutar (e que formaram maior contingente das
tropas da Bahia).
Como
Labatut informou em um ofício ao Ministro José Bonifácio “nenhum filho de
proprietário rico tinha se apresentado como voluntario
Papel do
povo negro na libertação
Símbolo
de luta e resistência, o Caboclo e a Cabocla no 2 de julho são muito
mais que uma representação cívica. Eles retratam os heróis invisíveis, quase
sempre anônimos, que foram o maior contingente das tropas baianas. Alguns
desses, foram resgatados do esquecimento com foi o caso de Maria Felipa,
mulher negra, capoeirista, marisqueira que, liderando outras mulheres,
enfrentou e derrotou soldados portugueses defendendo a costa da Ilha de
Itaparica, conforme relata o pesquisador Ubaldo Osório Pimentel em seu livro ‘A
Ilha de Itaparica’, de 1942.
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Imagem de Maria Felipa |
Agregando
simbolicamente todas as etnias que se uniram contra os colonizadores, o Caboclo
e a Cabocla são, na verdade, a personificação do protesto feito pelo povo
pobre, pelos indígenas, pelos negros, pelos voluntários forros, pelos
sertanejos e por todos aqueles que lutaram por uma liberdade que até hoje não
se concretizou por inteira.
Além
disso, esses seres, com o passar do tempo, tomaram uma dimensão espiritual,
sendo relacionados diretamente com os cultos religiosos de matriz africana. São
visitados por muitas pessoas que depositam pedidos de ajuda e fazem
agradecimentos por graças alcançadas pela ajuda do Caboclo e da Cabocla, sendo
também o dia 2 de julho uma data que, na Bahia, vários terreiros de Candomblé e
Umbanda tocam seus Atabaques em saudação aos Caboclos e Caboclas das matas
brasileiras.
Ao
contrário do que se pode imaginar, o festejo do 2 de julho é muito mais um
grito por justiça e de revolta contra o exército português e a elite
aristocrática brasileira, do que uma festa de celebração pela vitória de 1823,
que, no fundo, apenas beneficiou aos membros da elite branca baiana, que, após
um ano de expulsão dos portugueses, se mantiveram no poder, dando continuidade
a uma sociedade escravista e patriarcal, sem considerar em nenhum momento o
esforço feito por setores populares, na maioria composto por negros, escravos e
forros, que tiveram participação fundamental na defesa da cidade do Salvador
logo após ao enfrentamento de fevereiro de 1822, quando os membros da elite
baiana deixaram a cidade e foram se juntar aos fazendeiros e produtores de cana
de açúcar do recôncavo baiano.
Neste
momento, entrou em cena a participação daqueles segmentos sociais
historicamente conhecidos como “partido do povo negro baiano”, um grupo
composto em grande parte por jovens negros, moleques como eram denominados pelos
portugueses, brancos pobres, negros escravos cedidos pelos senhores para serem
incorporados as tropas nacionalistas com a promessa de liberdade após a
vitória.
Mesmo
assim, apesar de hoje já se ter bastantes registros sobre a participação deste
suposto partido negro, da sua fundamental importância na expulsão dos
portugueses e consolidação definitiva da independência do Brasil na Bahia, os
livros de história continuam minimizando sua participação e sua importância,
relegando ao esquecimento estes heróis nacionais que deram suas vidas, não
apenas com a intenção de libertar o Brasil de Portugal mas, com certeza,
pensando em ampliar essa libertação com o fim da escravidão, construção de uma
sociedade mais justa e igualitária.
Porém,
sabemos que nem 1823 nem em 1888 (abolição da escravidão) possibilitaram ao
povo negro a sua verdadeira liberdade. Apesar de livres institucionalmente, os
negros continuaram discriminados, tratados como inferiores, vivendo em péssimas
condições, sem oportunidade de trabalho digno, sofrendo práticas racistas
cotidianamente, já que esta libertação não foi acompanhada de medidas para
inserção dos libertos na sociedade.
Apesar
dos avanços e conquistas da população negra em direção à sua afirmação e
inclusão socioeconômica, cultural, religiosa e institucional, resultado da
criação de organizações do movimento negro, da criação de leis e organismos de
reparação, ainda não se alcançou plenas condições de liberdade e afirmação. O
racismo persiste e os propósitos do “Partido Negro da Independência da Bahia”
permanecem vivos, como quando o sol que brilhou no dia 2 de julho de 1823.
___________________________________
*Ademar é graduado em História pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA), pós-graduado em História do Brasil pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) Mestre em Ensino das
Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia, Ogã de
Iemanjá do Terreiro Ilê Axé Oxumaré e Coordenador do Coletivo de Entidades
Negras.
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